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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2011

 

ENTREVISTA

 

Entrevista com Arrigo Barnabé1

 

 

Como tudo começou: andanças até chegar na composição

Eu me interessava muito por música, cultura em geral, arte. Lembro quando escutei Bartók a primeira vez, o Allegro Barbaro: foi um negócio muito impactante para mim. Era algo ritmicamente agressivo e harmonicamente também, era diferente. Havia uma agressividade que entendi perfeitamente. Foi uma coisa que entendi e falei: "isso é um negócio que eu conseguiria fazer."

Lembro também quando escutei o disco branco do Caetano Veloso, em 1969, tinha uma faixa chamada Acrilírico. A música é uma colagem de sons com declamação e quando escutei, falei: "nossa, isso é uma coisa que eu conseguiria fazer" Mas também pensava: "não dá para viver de fazer isso. Como é que você vai viver? Não tem como."

Em 1969 eu estava em Curitiba fazendo cursinho para Engenharia Química, eu gostava de química, achava que era um negócio fascinante, mas não tinha noção do que era engenharia química e nem do que era química. Quando descobri, falei: "Não quero fazer isso de jeito nenhum!". Engenheiro químico é o cara que fica fazendo xampu, trabalhando numa grande fábrica. O que eu gostava na química era o aspecto da pesquisa. Na época, não tinha ninguém que falasse: "Olha, você pode fazer uma carreira acadêmica, pode trabalhar com pesquisa pura." E eu pensava: "Como é que vou viver? Tenho que arrumar um jeito de ganhar dinheiro." Se eu fizesse vestibular em Curitiba ia ter que fazer Engenharia Química lá. A melhor escola do Brasil era no Rio de Janeiro, a Nacional de Química, e o Rio era o sonho da gente.

Imagina, eu morava há um ano em Curitiba, um lugar infernal, um frio, e tinha acabado de sair o Pasquim. Como o sonho era ir para o Rio, fui fazer vestibular na Nacional de Química e pensei: "se passar no Rio, lá eu fico. Lá encontro alguém para me ensinar a tocar bossa-nova" - porque o Rio era a terra da bossa-nova.

Eu teria algumas aulas de piano lá, tocar bossa-nova, mas fui para o Rio e levei pau. Então, vim para São Paulo. Morei numa pensãozinha ali na Tamandaré. Aliás, pensão essa que o Milton Hatoum descreve no Dois Irmãos. Ele fala na pensãozinha na Liberdade. O Milton Hatoum morou lá. Fomos colegas de cursinho.

Eu fazia o cursinho para engenharia e adorava ver meu irmão desenhando. Ele aparecia lá na pensão e eu perguntava dos desenhos da FAU. Ele me levou para conhecer o masp, a FAU - um prédio lindo - e, vendo que eu perguntava sempre, disse: "Arrigo, porque você não faz o curso de linguagem arquitetônica no cursinho?" E eu: "Não sei desenhar, sou péssimo, minha letra é horrível" "Não! Faça o curso de Linguagem, pode ser legal"

Entrei mais ou menos em maio no curso de "Linguagem de arquitetura" e alguns alunos desenhavam muito bem, tinham aquele artesanato, o cara copiava igualzinho. Às vezes, esses caras não eram bem-sucedidos.

Os professores davam um tema e depois analisavam o trabalho: "aqui você não revelou nada, você só copiou." Eles começavam a analisar e as pessoas que não desenhavam tão bem... iam revelando os processos de pensamento que estavam ligados a essa coisa da composição no papel, no plano bidimensional.

Comecei a entender que, apesar de todas as limitações, eu poderia fazer algumas coisas interessantes. Então, digo que comecei a aprender a compor aí nesse cursinho. Fiz um tempo de FAU e comecei a compor. Nessa época, lembro que li o Balanço da Bossa do Augusto de Campos, o ABC da Literatura do Ezra Pound, uma série de coisas que já esta-vam dando uma formação.

 

Raízes musicais do compositor: ambiente da infância

Minha mãe queria que a gente estudasse música. Ela declamava, tinha esse lado de artista. Até ela terminar o primário havia uma situação financeira mais ou menos confortável, no interior de São Paulo, em Terra Roxa. Meu avô tinha um comércio ali e ela teve uma infância muito boa. Eles iam muito ao cinema, tinham camarote. Era um cinemazinho em cidade do interior, mas ela contava as histórias pra gente, contava todos os filmes que assistiu.

Depois, veio a revolução aqui em São Paulo, meu avô teve os bens confiscados pelo Exército, perdeu tudo. Aí, eles foram parar no Paraná e a vida da minha mãe ficou muito difícil. Mas ela tinha tido essa formação, declamava muito bem, gostava muito de ler - era uma leitora voraz, e nós, é claro, víamos minha mãe toda hora com um livro na mão, lendo, ela ia dando os livros para nós.

Ela achava violino maravilhoso. O Marcos estudou violino, eu e o Paulinho piano, depois ele mudou para o violão. O Marcos também foi estudar pintura. Então a gente tinha esse ambiente.

Na minha infância, sem televisão em casa, fazíamos muitas coisas à noite. Um primo tocava acordeon, nos reuníamos para tocar, muitas vezes nos finais de semana, em festas, ou então, mesmo em dias comuns, quando queríamos fazer uma apresentação na escola.

A música mais antiga que lembro de ter prestado atenção foi Assum Preto, com o Luiz Gonzaga cantando. Lembro do meu pai chegando com o disco em casa e colocando no toca-discos. Isso foi em 1955 ou 1956. Nesse dia meu time, o Santos, tinha perdido do Taubaté, por 4 a 2 e eu tinha acabado de virar santista. Meu pai colocou para tocar o Assum Preto que conta a história do cara que furou os olhos do bichinho para cantar, pelo amor de Deus! Eu comecei a chorar - também porque a música é toda em modo menor - e meu pai perguntou: "Mas por que você está chorando? Por que o Santos perdeu ou por causa da música?" Fiquei com vergonha de dizer que era por causa da música e falei: "porque o Santos perdeu"

Lá em casa havia um sistema de escolha claro e definido. Cada um tinha um time de futebol, uma cor, uma música preferida. Meu sonho era tocar acordeon, achava acordeon o máximo. Eu tinha um primo que praticamente morava com a gente e lembro que um dia a tia Amélia chamou a gente pra casa do meu avô, onde ela morava, porque tinha uma surpresa. A gente parado ali em frente à porta e sai meu primo com o acordeon, um acordeonzinho azul, e toca! Ele não só sai com o acordeon, como já tinha aprendido em segredo. Eu falei: "nunca mais vou tocar acordeon, não posso."

 

Intuição: ser compositor

Eu tinha uma certa dificuldade pra fazer música, embora as coisas mais melódicas fossem intuitivas para mim. Também entendia, na música, quando ela devia ralentar ou acelerar, quando devia crescer ou diminuir em volume. Entendia isso quase sem precisar ler os sinais da partitura. Mas essa é a única qualidade que lembro porque, de resto, eu era comum. Quando estava no conservatório - em 1965, 1966 - lá em Londrina, pensava que se fosse fazer alguma coisa, seria compositor. Quer dizer, conseguiria compor. Mas isso não me passava pela cabeça, naquela época, de jeito nenhum. Naquela época, a gente tinha que ser advogado, engenheiro ou médico.

Para ser músico, você teria que ser um desses meninos prodígio, que com 12 anos estão tocando os Estudos de Chopin. Aí sim, as pessoas admitiam, mas se você não tivesse essa habilidade, esse dom, não poderia cogitar ser músico.

 

Formação de músico

Naquela época não tinha escolas de música como hoje. Fiz a usp. O curso de Música da usp era muito ruim. Violão, por exemplo, era um instrumento banido da escola. O diretor da escola falava mal do Villa-Lobos. Os caras eram fanáticos pela Escola de Viena, do Webern, do Schoenberg, do Alban Berg, que a gente gostava também, mas também gostávamos de música popular, de Jimmy Hendrix. Como é que você não vai gostar de Jimmy Hendrix, de Janis Joplin? Era tipo lavagem cerebral. E eu, muito inseguro, não consegui ter um curso já que não havia uma preocupação com a aprendizagem. Sempre fui um aluno responsável, era um filho responsável. Mas, tinha aquela necessidade: se ia fazer música, tinha de saber música. Era um desafio muito grande para mim, não me sentia capaz de fazer aquilo. Eu falava: "não tenho jeito para isso, sou desafinado, sou não sei o quê. Não consigo fazer isso, não consigo fazer aquilo." Exagerava todos os meus defeitos, mas de uma forma que era um tormento para mim. Tentava estudar e aprender e não conseguia! Porque eu tinha uma exigência e era muito difícil.

 

Rir e chorar

Sempre vi que existia a possibilidade de você exagerar muito o que sente, de rir da desgraça, como rir das suas desgraças também. Mas o que mais me tocava era a parte melódica. Chopin, por exemplo, aquelas coisas de Chopin que têm um lado triste. Ave Maria do Gounod, do Schubert, aquelas coisas tristes, aquela tristeza.

Fiz Londrina, uma valsa triste que fala da minha cidade. Na época fiquei até preocupado porque essa música é tristíssima. Pensei que podia ser algum sintoma, algum tipo de problema. Claro que é, não?

Eu tinha esse lado com essas coisas melódicas. Quando entrei no conservatório, comecei a estudar Bach - as 23 Peças Fáceis - depois as Invenções a Duas Vozes. Demorei para entender que aquilo era música. Achava que era um exercício que eu estava fazendo. Quando comecei a entender que era música, aquilo foi um negócio! E me deu o sentido de composição também, porque Bach escreveu as Invenções para alunos que iam ter aula de teclado, de cravo, de órgão, e composição. Aquelas 15 Invenções a Duas Vozes, aquilo é o máximo. É um sentido de composição que tem no Doutor FAUsto, quando ele fala da imitação do canon. E o Bach é completamente polifônico. São ideias que aparecem aqui, aparecem fragmentos da ideia na mão esquerda e as coisas vão se trocando.

Mas a primeira coisa que me pegou mesmo era esse negócio muito triste que eu quase não queria ouvir. Eu achava muito bonito, mas muito triste, muito doloroso. uma coisa que machucava.

 

Um quase estar alegre de tristeza

É que essas coisas têm uma qualidade estética muito interessante. É um negócio que não sei explicar direito, mas em alguns momentos, parece que sintetiza mais a ideia da beleza, que tem menos vulgaridade, digamos assim. É claro que tem que tomar muito cuidado, porque essa coisa que tem esse caráter um pouco triste, ou melancólico, pode ficar piegas. Mas, em geral, ela parece menos vulgar do que a coisa mais agitada, mais viva.

 

Composição e interpretação

Ser compositor é completamente diferente de ser intérprete. Um dos problemas que vejo acontecer, na música popular principalmente, é do intérprete virar compositor. E não é muito legal, porque o intérprete não pensa como compositor. O intérprete tem uma visão técnica da música, ele pensa mais em termos de qualidades virtuosísticas. O compositor não pensa assim. Então você vê muita gente em música popular que é instrumentista e está compondo. E você vê que não tem a mentalidade do compositor, tem a mentalidade do instrumentista, então faz um negócio que não chega, sabe quando a pessoa não tem muita coisa a dizer? Ela está fazendo um negócio baseado apenas em sua habilidade instrumental, então aquilo geralmente é vazio.

 

Era evidente

Até hoje tenho muitas dúvidas, porque tenho interesse em várias áreas. Eu lembro quando compus uma canção, em 1973, Lástima, ou em 1972, uma canção que começava com um trítono descendente e era uma espécie de anticanção. A letra é muito curtinha, dizia assim:

Olha
Desculpa
Eu não cantar
Mais pra você
É que também
Com tanta coisa acontecendo
Eu não consigo mais falar de amor

A letra é só isso. A gente estava vivendo a ditadura, um momento terrível, 1972/ 1973, aquele pavor todo, e não dava para fazer canção. Eu estava começando a compor, fiz essa canção e a apresentei num festival em Londrina com alguns amigos. Conseguimos fazer um negócio que ficou muito bom. Lembro que o Hermeto estava no júri e não queriam me dar todos os prêmios, mas ganhei todos os prêmios: melhor composição, melhor arranjo, melhor intérprete. O Hermeto brigou por isso, mas não tinha dúvida, era um negócio evidente, a coisa era evidente.

 

O compositor criando

Um dos trabalhos do curso de Desenho Industrial na FAU foi o seguinte: recebemos um motorzinho elétrico para fazer alguma coisa. Depois de feito o trabalho esse motor seria devolvido para a fábrica. Minha equipe começou a pensar num negócio conceitual: "Já que vão devolver o motor." A ideia era dificultar ao máximo a retirada do motor, mas com senso plástico. Isso foi em 1972/1973. Fomos num taxidermista e compramos um rato empalhado horrível. Fizemos um carrinho desse tipo que bate e vira, enfiamos dentro do rato com uma bateria de longuíssima duração e colocamos isso dentro de um cubo de acrílico transparente, vedamos o cubo de acrílico, e entregamos para o professor. O resultado era um rato se batendo dentro de um cubo. Era um negócio de artes plásticas. Eles tinham que esperar a bateria acabar, quebrar o cubo de acrílico - que era um material nobre na época - pegar aquele rato, abrir a barriga dele, e tirar o motor. Fora isso, tinha aquele aspecto interessante, um rato se batendo ali dentro, uma metáfora da condição humana frente a um monte de coisas.

O que eu gostava na FAU era estar ligado às Artes Plásticas. Nas aulas de composição na eca surgiu um tema: trabalhar com rádios - mais uma coisa de Artes Plásticas, as coisas do John Cage com rádio. Fiz uma peça para três rádios. Eu não ia escrever uma partitura para rádio. Rádio não é instrumento musical. Aí, criei o seguinte: vedei a sala, que ficou toda escura. Você entrava e à sua direita tinha um cara sentado numa cadeira vestido com um casaco de couro, óculos escuros, com um terço cor-de-rosa na mão, rezando. E do lado dele, uma gaiola, num banquinho, com um rádio dentro, na última estação do dial. À frente dele, uma cumbuca com ração de patinho, enfiei um rádio lá, só com estática, e coloquei dois patinhos vivos. Então, os patinhos ficavam piando e o rádio fazendo barulho. E à sua esquerda estava a Eliete Negreiros - minha amiga cantora - com um vestido preto, de manga curta, tipo camisola, descalça, virada pra parede. Quando a pessoa entrava, ela se virava e ia mexendo o rádio, mudando as estações e as expressões do rosto. Ela fazia expressão de criança, de louca, enfim. Mas as pessoas não viam isso de uma vez, porque estava escuro e entrava uma pessoa por vez, com uma lanterna na mão.

Então a aula de composição não tinha nada de técnica de composição, que era o que eu precisava. Porque ideias, isso eu tinha.

Fiz outro trabalho cujo tema era uma folha de jornal sendo rasgada. Eu não ia escrever uma partitura onde o cara rasga um pouquinho, e mais um pouquinho, aí amassa. Então, vedei a sala inteira. Fiz um trabalho inspirado no Christo, aquele artista que embrulhava as coisas. Embrulhei tudo. Todos os instrumentos ficaram lindos. O piano embrulhado com jornal ficou lindo, os tímpanos, tudo muito bonito. Fiz duas paredes falsas de jornal e coloquei atores embrulhados em jornal atrás delas. O trabalho se chamava Como Embrulhar Pessoas e era dedicado ao professor Toni, diretor da escola. Eu escrevi: "Como Embrulhar Pessoas, dedicado ao professor Toni", coloquei na porta, terminei de fechar e falei: "vocês podem entrar, o tema vai ser apresentado quando entrarem."

Os caras entraram rasgando todo o jornal, aquele maior som de jornal. Entraram todos os alunos e o professor e o espaço estava falseado: eles viam aquele negócio inteiro de jornal. Aí começaram a escutar um som vindo dos atores passando as mãos nos corpos. Aquele som foi aumentando até que um deles dá um soco e sai uma mão de jornal da parede, que eles pensavam fosse a parede mesmo. Aí sai outra mão de jornal, sai outra, os caras vão saindo todos embrulhados em jornal e começam a embrulhar as pessoas que estão assistindo.

 

Tirando do zero

Quando entrei na eca, já tinha feito a parte musical da Clara Crocodilo. Já tinha feito Sabor de Veneno, Lástima e Outros Sons. Isso tudo fiz sozinho. Tudo coisa que ia tirando do zero.

O Clara, fiz com Mario Cortes, mas era a parte musical, porque tem uma parte de dramaturgia. Isso fui desenvolvendo durante uns sete anos. Conseguimos chegar na história, até pensar na narração. Aquilo veio de brincadeira durante ensaios, escutando programas de rádio. Mas a parte musical, propriamente dita, fiz com Mario Lucio em Londrina, em 1972. Eu sentava e ficava escrevendo a partitura, pensando o que a gente ia fazer, como é que ia fazer, bem racional. O Mario é engenheiro eletrônico e é um grande músico, um cara com muita facilidade. Aprendi muito com ele.

 

Invenção

Tem a ideia da invenção, isso tem. O pai do Mario, outro Mario, vizinho na infância, tinha um galinheiro e quando parou com a criação de galinha, o Mario falou: "Vamos fazer um laboratório aqui." Limpamos, lavamos e fizemos um laboratório. Com uns tubos de ensaio, a gente ficava fazendo umas coisas. E meu sonho era fazer foguete. Então eu tinha esse negócio de inventar as coisas. E música é assim, você fica inventando. Tem uma liberdade absurda para inventar. E isso não é bom porque o meio musical é muito cheio de regras. E nas Artes Plásticas você não tem regras, é um negócio muito livre.

Mas essa coisa da coragem é um negócio que é difícil. É muito difícil, tem suas con-sequências, tem suas sequelas. Eu tive que me agredir muito, é difícil, sim.

 

Experimentação e improvisação

O que a gente curtia muito em improvisação era outra coisa. Lá em Londrina éramos um grupo que se reunia pra conversar, discutir, fazer serenata. Eu, Mario Lucio, meu irmão Paulo, Tonelli e os irmãos do Mario, que eram o outro Paulo e o André. Lembro que foi uma antiga namorada de Londrina, Marta Furtado, uma grande pianista, que mostrou o Allegro Barbaro para nós. Ela era uma pessoa que tocava super bem e contou que fez um curso: "Eu estive em Teresópolis, com Koellreutter e a gente fazia improvisação." "Como era a improvisação?" "Todo mundo numa sala escura fazendo som com o que você tinha à mão." Aí resolvemos fazer isso. Eu, o Mario, o Paulinho e o Tonelli. Nos reuníamos na casa do Mario, apagávamos a luz, começávamos a improvisar e gravar. Um improviso totalmente livre. Nisso, alguém abriu o acordeon, pegou as gaitas e alguém teve a ideia de pegar um secador de cabelos e passar na gaita do acordeon. A gente fazia essas coisas. Mas um negócio sem um parâmetro jazzista. Era uma improvisação completamente abstrata que, por exemplo, contava com a chuva. Então estávamos escutando a chuva, alguém começava a raspar um reco-reco bem devagar e isso estimulava uma outra pessoa a fazer outra coisa. Esse tipo de improviso tem a ver com as coisas que eu li do Fabio Herrmann sobre a Teoria dos Campos. Isso tem alguma coisa a ver com esse tipo de improviso.

 

O romper com o pré-estabelecido. Campo de forças

Sim, são forças e você não tem, como no jazz ou na música popular, um campo harmônico nem nada. Você está trabalhando com metáforas, com outro tipo de coisa. Praticamos e curtimos muito esse improviso. Fazíamos um improviso muito abstrato. Eu posso até improvisar, mas improviso pouco. Às vezes, improviso no piano. Mas gosto muito, me interessa muito esse tipo de improviso que é uma coisa que tem a ver com o zen.

Eu ficava espantado quando via que as pessoas gostavam. Não esperava, porque achava que era legal, percebia que era bom, mas sabia que era muita informação nova. Quando as pessoas reagiam positivamente, eu ficava besta. Era como se não fosse eu. Quando eu fazia os primeiros shows do Clara Crocodilo com a banda Sabor de Veneno, em 1980, a plateia urrava no final. Era aquele negócio de ter que voltar, fazer bis. Era uma sensação muito boa, também porque você sentia que seu trabalho tinha sentido, que o que você fazia correspondia de alguma forma a expectativas. Quer dizer, tinha gente esperando esse tipo de coisa, tinha gente querendo esse tipo de coisa.

Em janeiro, quando fiz o show do Lupicínio em Porto Alegre, resolvi fazer um negócio diferente. Peguei a narração do Clara Crocodilo e fiz essa narração falando do monstro que está assolando a cidade e que está sendo procurado pela polícia, como uma lenda urbana.

Dizem que ele é visto na calada da noite, nas ruas da Cidade Baixa. E numa dessas noites, ele encontra uma figura patética, um bêbado, que está chorando e que não teme o monstro. O monstro se aproxima e o bêbado parece querer a sua companhia. Quando o monstro chega perto, o bêbado, com os olhos marejados - é improviso, eu nunca falei igual - diz o seguinte:

Você sabe o que é ter
Um amor, meu senhor

Aí, fiz a ligação do Clara Crocodilo com o Nervos de Aço, com o Lupicínio. Naquela canção que falo do botox, das mulheres, "quando os espelhos lhe dão conselhos", faço umas narrações que têm a ver com o Clara Crocodilo e a interpretação mesmo, aquela coisa gritada.

 

A angústia da criação

É angustiante. É um negócio horroroso porque às vezes você acha que não vai fazer mais nada. É horrível mesmo. E você não consegue fazer. Começa e não sai, não sai. E tem períodos em que as coisas saem mais. Algumas pessoas acham que é bom você estar estressado. Eu não acho. Para mim, o estresse só atrapalha. Tem gente que acha que é bom você ter dificuldade, ter problema. Não, para mim é um horror, prejudica. Angústia e tristeza é diferente. Eu falo de preocupações mesmo. Preocupações que você tem que resolver praticamente. Isso aí é uma coisa horrorosa.

 

Compor resolve ou cria problema?

Compor, sim, é uma purgação. Catarse. Tem esse negócio da purificação, tem um pouco isso, com certeza. Quando consegue fazer, parece que você respira. Por exemplo: fiz uma missa para o Arthur Bispo do Rosário. Foi muito interessante escrever a missa por que tenho formação católica, eu ia à missa, sempre gostei muito de religião e sempre quis escrever uma missa, sempre tive essa vontade. Escutei a Missa Luba, que era o que os congoleses cantavam, e achei aquilo demais. O começo é difícil, mas depois de um ponto, você vai escrevendo, escrevendo, e é tão bom, você fica equilibrado. Vai escrevendo, a coisa vai saindo e você vai encontrando o caminho e é muito bom mesmo. É uma coisa que te dá ar, te dá vitalidade.

E a rotina também é importante. Agora, o difícil é saber como é que você vai ganhar dinheiro. Você pensa: "pra que eu estou escrevendo? Quem vai tocar? Onde eu vou apresentar isso? Como eu vou fazer isso?" Isso é um horror. Atrapalha muito.

 

A análise impede a criação?

Eu acho que não tem a ver. Pelo menos pra mim. Um período em que fiz análise mais intensamente e foi quando eu fiz O homem dos crocodilos, por coincidência, que é inspirado em "O homem dos lobos".

Por coincidência, quando comecei a fazer análise, eu já estava com Homem dos crocodilos estruturado. Comecei a fazer análise, e, por coincidência nesse momento o ccbb quis que eu fizesse um trabalho lá. Eu propus isso e eles toparam. E aí fizemos a ópera. Eu fazia análise três vezes por semana e para mim não teve nenhum problema. Eu queria ter feito análise antes, mas é uma coisa cara, é um luxo, para mim, pelo menos. Eu era muito duro.

Lembro que o Hermelino fazia análise, ele falou para eu fazer, e falei: "legal, gostaria." Quando vi o preço, falei: "você está louco!" Por outro lado, sou casado com uma analista, então vejo como é o cotidiano. Quer dizer: pra quem paga é muito, pra quem ganha, não é.

Mas achei ótimo. Se tivesse feito antes, minha vida teria sido muito melhor, com certeza. Não tenho dúvida disso. Não acho que atrapalha, não acho que tira a sua criatividade. Ou então, não fui curado.

 

Timidez?

Está cheio de gente que vai para o palco e faz as coisas no palco, mas eu era muito tímido. Eu era chamado de jacu. Lá no interior, jacu é um passarinho que não aparece, se esconde. Eu me lembro que vinha para São Paulo visitar uns parentes e ainda tinha que beijar a mão, pedir bênção dos tios, das tias. Era uma tortura para mim. Eu não comia carne, ainda tinha essa. Minha mãe era vegetariana e parei de comer carne, então ainda tinha esse outro negócio que chamava atenção. Era horrível. Tive que fazer um esforço pra deixar de ser tímido nesse sentido, mas nunca deixei. E me tornei uma espécie de contrário: aquele cara que é tímido e vira extrovertido por timidez. Mas era muito tímido. No colégio, pra vocês terem ideia, os alunos me elegeram presidente do Grêmio porque eu ficava vermelho. Eu ia ter que ficar na frente e ficava vermelho. Me elegeram por causa disso, eles se divertiam.

 

A dissonância

Tem o lado sentimental, que é o das canções. Fiz várias canções que têm muito esse aspecto, Londrina, principalmente, tem um aspecto muito sentimental, que é a coisa da canção sentimental brasileira. Mas as outras, as coisas mais agressivas, são muito dissonantes. Gosto da dissonância como uma ferramenta de agressão mesmo e também porque existe uma beleza nessa agressão. Não é na agressão, mas de certa forma, existe, auditivamente, uma beleza nessa coisa agressiva. Pode ser disruptiva e existe nisso uma beleza, porque as coisas são todas muito escolhidas, muito pensadas.

 

Lupicínio

Eu já estava pensando em fazer o Lupicínio, mas aí foi: "tenho que fazer isso já." Já tinha feito algumas músicas, comecei a escolher o repertório e marquei data, porque se não marca data, não faz. Estava pensando nisso desde 2003, mais ou menos. Eu me identifico com as ideias dele, com a coisa da angústia, com o perdedor - sempre são caras perdedores -, esse cara outsider que está nas músicas dele. E acho que tem o potencial interpretativo ali. Dá para exagerar muito, dá pra esvaziar completamente também - pois tem coisas que foram cantadas de forma muito exagerada, dá para fazer o contrário: tirar todo aquele exagero e deixar um negócio bem cool, quase bossa-nova. Enfim, dá para variar, brincar, e eu gostava muito das coisas dele e achava que tinha uma unidade ali.

O Itamar Assumpção tinha feito o disco cantando Ataulfo Alves e quando vi, achei legal o cara escolher um autor e interpretar sua obra. Pensei que se eu fosse fazer, seria do Lupicínio.

Depois, me chamaram aqui para fazer uma homenagem ao aniversário da morte ou do nascimento dele. Fiz umas três ou quatro músicas e o público reagiu bem. Foi um negócio engraçado, parecido com o Clara, em que o público reagia bem.

E eu estava lá cantando Lupicínio do meu jeito, com muito receio, mas as pessoas reagiam bem. Então pensei: "Vou fazer o Lupicínio. Vou começar a fazer no Casa de Francisca - um lugar pequeno, mas está sempre em cartaz. Então todo mundo vê e te chamam para fazer em outro lugar." Aí fui fazer em Porto Alegre. Por causa disso Maurice Capovilla está fazendo um filme chamado Nervos de Aço, inspirado nas canções do Lupicínio. Ele foi assistir ao meu show e me chamou para fazer o protagonista do filme. É nesse sentido que estou falando: você tem que fazer alguma coisa e começar a mostrar e as coisas vão girando em torno. Isso foi uma grande coincidência, o Capovilla ir lá, gostar do show e me chamar para fazer o filme. Então a coisa vai crescendo.

 

O efêmero e o permanente

Sou um compositor. Trabalho com composição, mas tenho um lado de palco e ultimamente tenho curtido muito a performance. A composição é um negócio latente e a performance, não. Ela acontece: é um momento, você está fazendo ali, está vivendo aquilo. É uma coisa efêmera, a composição, por outro lado, não tem essa efemeridade, ela permanece. Você escreveu, está na partitura.

Eu pego um álbum do Bach e faço viver novamente aquelas coisas. Eu instauro um tempo, começa um tempo ali, eu crio vida. Porque quando o sujeito tocou em 1950 o Bach, ele recriou vida. Quando se faz uma composição, existe essa latência, de algo que, a partir do momento em que é executado, vive. É como a poesia. A partir do momento em que você lê o poema, ou que o declama, ele vive. E a performance, não. Você no palco, é um negócio efemeríssimo. Você pode ter documentos, ou então a imagem preservada, mas é algo efêmero.

Tenho curtido muito estar no palco. Não sei se é por que estou ficando mais velho e sentindo falta dessa vitalidade da juventude.

As impressões que ocorrem em todo mundo no decorrer da performance são muito diferentes daquilo que estou sentindo, do que está se passando comigo. E o que está se passando comigo, só está se passando comigo ali, naquele momento. Depois, desaparece.

Posso ver depois, gravado, mas não é nada perto do que está acontecendo enquanto estou atuando. É nesse sentido que há essa efemeridade.

A gente vê a Maria Callas hoje, mas o que se passava quando ela estava fazendo aquilo, o que ela estava vivendo, essa experiência é efêmera. É um negócio que acaba, que tem uma duração. É claro que você tem o registro, mas você estar atuando, estar agindo...

É a interpretação.

 

 

1 Compositor, ligado ao surgimento da vanguarda paulista nos anos 1980, com atuação em diversas áreas, como cinema, teatro, performance.
Entrevista realizada em 14 de fevereiro de 2011, com a participação de: Dora Tognolli, Ignácio Gerber, Raya Angel Zonana, Susana Muszkat e Thais Blucher.
Edição realizada por Cintia Buschinelli.

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