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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2011

 

ENTREVISTA

 

Onde está Clara Crocodilo, Arrigo Barnabé?

 

Where is Clara Crocodilo, Arrigo Barnabé?

 

¿Dónde está Clara Crocodilo, Arrigo Barnabé?

 

 

José Ottoni Outeiral

Membro titular e analista didata da Sociedade Psicanalítica de Pelotas SPPel. Membro convidado da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ

Correspondência

 

 


RESUMO

O autor faz comentários sobre a entrevista de Arrigo Barnabé tendo em conta o processo criativo.

Palavras-chave: criatividade: processo criativo; espaço potencial.


ABSTRACT

The author makes a comment on Arrigo Barnabé's interview, taking the creative process into consideration.

Keywords: creativity; creative process; potencial space.


RESUMEN

El autor hace comentarios sobre la entrevista de Arrigo Barnabé teniendo en cuenta el proceso creativo.

Palabras clave: creatividad; proceso criativo; espacio potencial.


 

 

A leitura da entrevista de Arrigo Barnabé, que é para ser lida ao som de Clara Crocodilo (Barnabé, 2009), me trouxe, de imediato, a ideia do viver criativo, como escreveu Donald Winnicott. Sigmund Freud descreveu a saúde como a possibilidade de amar e trabalhar e o psicanalista inglês acrescentou, um terceiro elemento, o viver criativo.

É difícil, entretanto, vou avisando desde já o leitor, escrever sobre esta entrevista, tão "histórica" e transparente, pois acredito, como escreveu Octávio Paz, ensaísta mexicano, que a biografia de um artista não deveria ser mais do que um pequeno "pé-de-página". Mas nós, psicanalistas, temos certos hábitos, e um deles, não sei se um "mau hábito", é querer explicar a criação pela vida do artista. Sei que por vezes é impossível não fazer assim, tamanha é a revelação que o artista faz de sua vida, como o cineasta François Truffaut, especialmente na saga de seu alter ego Antoine Doniel, e tantos outros artistas.

Na verdade é possível criar algo, escrever um poema ou admirar um autor (como buscamos as filiações, com tanta frequência, em psicanálise) sem que isso seja revelador de algo que está dentro de nós? Pessoalmente, não sendo absolutamente original no que escrevo, penso que não conseguimos evitar tal fato; creio que o espaço da criatividade é aquele terceiro espaço, que resulta da superposição dos espaços psíquicos da criatura e de seu ambiente.

Mas vamos, então, ao que interessa: a entrevista deste versátil artista que é Arrigo Barnabé.

Ele começa bem, não apenas pelas referências de seus interesses tão variados, de Bartók a Caetano Veloso, de Augusto de Campos a Ezra Pound, como por suas dúvidas. Engenharia química ou a música? Ora, Nietzsche em um de seus aforismas, escreve, de forma muito contemporânea, que o que nos enlouquece é a certeza e não a dúvida. Em outro ele nos sugere que é do caos que nasce uma estrela, e sabemos que é assim.

 

O ambiente familiar

A mãe queria que os filhos estudassem música e ela própria gostava de poesia; e declamava! Os filhos gostavam de arte e música. Um dia o pai trouxe um disco com a música Assum Preto, de Luiz Gonzaga, cego como sabemos, que emocionou profundamente Arrigo Barnabé, lá pelos anos 1955 ou 1956; a música fala de um homem que cegou o pássaro para que ele cantasse melhor. Destino de Tirésias, o cego vidente, o deste Assum Preto do cego Luiz Gonzaga!

O refrão diz:

Furaro os óio do Assum Preto
Pra ele assim, ai, canta mió

Olhar para dentro "pra modo de assim a gente canta mió" comoveu o menino que nos diz ter escondido essa dor do pai; estava assim porque seu time de futebol, o Santos, havia perdido uma partida justo naquele dia...

Ele comenta que compôs Londrina, uma valsa triste, segundo ele; "música tristíssima". Ficou preocupado, seria um sintoma, um problema? E de pronto responde: "claro que é, não?". Mas a resposta que parece certeza é, na verdade, uma interrogação que ele nos faz. Eu escrevo: não tenho esta certeza, como tu também não pareces ter, pela construção da frase. Um pouco sim, um pouco não, às vezes é necessário exorcizar algo que está dentro. É como ele sugere, novamente de forma paradoxal, "um quase estar alegre de tristeza".

Clarice Lispector (citada por Outeiral, 2005) nos ajuda ao escrever:

Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o ultimo fim o sentimento que pareceria apenas vago e sufocador. (p. 4)

Ele comenta como criar é angustiante: "compor, sim, é uma purgação. Catarse. Tem esse negócio da purificação." Certamente a angústia é a pedra angular das experiências emocionais. Mas criar, penso, exorciza os fantasmas ou pelo menos os ajeita um pouco. E ele escreve uma missa para Arthur Bispo do Rosário! Um de nossos grandes artistas.

Arrigo Barnabé fala de algo muito importante, da intuição de ser compositor. A intuição é coisa de ser levada muito a sério e ele assim o fez. Venceu dificuldades na busca de seu "fado", que é mais forte que "destino". Ele relata que precisou fazer um esforço para superar aqueles temores que sempre se colocam no caminho do fado. "No meio do caminho tinha uma pedra, havia uma pedra no meio do caminho", escreve Carlos Drummond de Andrade; não escreveu como era "exigido" na época "havia uma pedra", mas sim, com liberdade poética "tinha uma pedra"; os poetas são assim: escrevem certo por linhas tortas e são encaminhados por um anjo torto e gauche, desde que nascem. Eles intuem, paradoxalmente, que a menor distância entre dois pontos não é a linha reta, mas a curva. São barrocos. Muitos pensam que é a reta a menor distância, mas estes nunca serão artistas... nem analistas.

É muito interessante quando ele descreve seu processo criativo com a história do motorzinho elétrico. Transgressor criativo. Aliás, Sigmund Freud ao escrever sobre Gradiva nos remete à etimologia da palavra gredde (que origina Gradiva; aquela que vai em direção ao outro). Todo o artista usa a agressividade nesse sentido de, também, buscar um outro. O olhar do outro, o olhar vivo do outro, o olhar que em espelho d'água nos permite a constituição como sujeitos psíquicos; mais trágico ainda é reconhecer que nos tornamos humanos quando há um outro, mas um outro para identificações estruturantes e não para identificações patológicas. O artista cria para si e para um outro. E nesse processo surge um espaço transicional, lugar da criatividade, do viver criativo.

Carlos Drummond de Andrade (Drummond, 2010), o da pedra no meio do caminho, descreve este lugar ao falar da relação entre quem escreve e quem lê:

descubro a estranha relação que nos prende a ambos. Leitor e eu formamos um bicho composto, uno e dividido, uma parte querendo engolir a outra. Sem o leitor, não existo; sem o escrevedor, ele também não. É uma relação dialética, da qual resulta (será?) a terceira figura que não sei como definir, um ser que existe no papel e nos olhos, feito de troca, de abandono e de crítica, de desconfiança, de indignação e carinho. de amor? Ia acrescentar este nome. Calo-me. (p. 17)

O artista comenta uma questão que é bastante frequente: a análise impede a criação? Concordo com ele. A análise amplia, promove a expansão do self, libera de repressões não estruturantes. Estamos falando, é claro, de uma boa análise. Uma boa análise? Aquela, por exemplo, que Arrigo Barnabé diz que não tira a criatividade do paciente. Concordo. Ele gosta da análise e se inspirou em "O homem dos lobos" para fazer "O homem dos crocodilos".

Pois não é que Arrigo Barnabé gosta do nosso grande (gaúcho) Lupicínio Rodrigues! Este eu conheci pessoalmente, bedel da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E Arrigo Barnabé vem cantar, em Porto Alegre, minha cidade, músicas de nosso Rei, da Dor de Cotovelo. E agrada. Vai protagonizar, nos conta ele, o filme de Maurice Capovilla: Nervos de aço!

Pois escuta Arrigo Barnabé: no dia 4 de junho de 2009 encontrei o Lupicínio, em Porto Alegre, madrugada alta, e ele, distraído, me chamou de Dr. Meneses, o médico das "lambisgóias", e perguntou pela Clara Crocodilo! Fiquei surpreso, mas tenho nervos de aço. Ia responder que ela deveria estar em Curitiba, numa penitenciária, mas pensei que poderia também estar dentro de mim ou, quem sabe, o leitor a encontrará na página seguinte desta revista!

Onde estará Clara Crocodilo?

Manoel de Barros diz que quando escreve, noventa por cento é invenção e só dez por cento é mentira. Este pantaneiro, leitor até de Lacan, saberá onde estará Clara Crocodilo?

O leitor poderá se aventurar a tentar essa descoberta se for buscar a música composta por Arrigo Barnabé sobre essa mulher officeboy ou assistir o happening: "Arrigo Barnabé & OABS". .. Procure e talvez a encontre.

A entrevista deste grande artista que é Arrigo Barnabé constitui uma oportunidade em nossa revista para pensarmos, nós, os analistas, na criatividade: que o setting é, antes de mais nada, uma experiência estética que libera a criatividade, o viver criativo, um elemento fundamental da saúde do homem. É isso aí Arrigo Barnabé!

 

Referências

Barnabé, A. & Orquestra à Base de Sopro de Curitiba. DVD (2009).         [ Links ]

Drummond, C. (2010). Uma pedra no meio do caminho. Biografia de um Poema (O leitor e o lido. Jornal do Brasil, 20/04/1982). São Paulo: Instituto Moreira Salles.         [ Links ]

Outeiral, J. (2005). Clínica de crianças e adolescentes. Apresentação à Primeira Edição (2a edição). Rio de Janeiro: Revinter.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
José Ottoni Outeiral
[Sociedade Psicanalítica de Pelotas SPPel]
Rua 24 de Outubro, 838, 302 – Moinhos de Vento
90510-000 Porto Alegre, RS
Tel: 51 3222-4906
joseouteiral@hotmail.com

Recebido em 25/2/2011
Aceito em 11/3/2011

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