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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2011

 

ENTREVISTA

 

Alquimia Sublime

 

Sublime Alchemy

 

Alquimia sublime

 

 

Sandra Gonzaga e Silva

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ

Correspondência

 

 


RESUMO

Partindo das vivas impressões suscitadas pela entrevista com o compositor Arrigo Barnabé, a autora reflete sobre o fazer criativo, destacando o conceito de sublimação e seus desdobramentos no pensamento psicanalítico.

Palavras-chave: sublimação; objeto sublime; estética; ética.


ABSTRACT

Based on the lively impressions arisingfrom the interview with composer Arrigo Barnabé, the author reflects on creative production, highlighting the concept of sublimation and its developments in psychoanalytic thought.

Keywords: sublimation; sublime object; aesthetics; ethics.


RESUMEN

A partir de las vivas impresiones suscitadas por la entrevista con el compositor Arrigo Barnabé, la autora reflexiona sobre el hacer creativo, destacando el concepto de Sublimación y sus desdoblamientos en el pensamiento psicoanalítico.

Palabras clave: sublimación; objeto sublime; estética; ética.


 

 

Eu sinto uma beleza quase insuportável e indescritível.
Como um ar estrelado, como a forma informe,
Como o não ser existindo, como a respiração esplêndida
de um animal. Enquanto eu viver terei de vez em quando
a quase não sensação do que não se pode nomear.
Entre oculto e quase revelado. É também um desespero
faiscante e a dor se confunde com a beleza
E se mistura a uma alegria apocalíptica.

(Clarice Lispector)

Freud (1908/1974a), em "Escritores criativos e devaneios", já nos alertava para a intensa curiosidade despertada pelos mistérios da criação artística, o fascínio e as emoções insuspeitadas que ela desencadeia em nossas almas leigas.

Li a primeira versão "sem cortes" da entrevista com Arrigo Barnabé tomada pelo ritmo de sua fala viva que traça os caminhos, atalhos e desvios de sua arte múltipla. Atender ao honroso convite da Revista Brasileira de Psicanálise, para comentar a entrevista, pareceu-me então, tarefa impossível. O que dizer que não engessasse e reduzisse a partir de alguma compreensão teórica o vasto campo criativo do artista?

Enquanto me debatia entre o estímulo e a recusa, fui me distrair lendo sobre... arte.

Na bela edição organizada por Inês Bogéa, que reúne fotos e ensaios de diversos autores sobre o Grupo Corpo (2007), Maria Rita Kehl trabalha com o conceito de sublimação, ancorada em Freud e nos desenvolvimentos de Lacan, enfatizando seu estatuto estético e ético. Aí estava um começo! Um fio para tecer alguns comentários, aproximações que dialogassem com a singularidade do fazer criativo, respeitando seus insondáveis mistérios.

A noção de sublimação permaneceu inconclusa na obra freudiana e, via de regra, é pouco valorizada pelos autores psicanalíticos.

Partindo de sua definição como o trabalho psíquico de dessexualização dos destinos e do objeto da pulsão sexual, Maria Rita Kehl vai afirmar:

Do sexual, nem tudo - muito pouco, aliás - pode se realizar no próprio corpo. Até mesmo em pleno ato sexual, muitos de nossos impulsos mais violentos, mais possessivos, muito do que se poderia gozar do corpo do outro é sublimado nas formas da ternura, das declarações de amor, da invenção de uma arte erótica. Do sexual nem tudo se pode gozar. Daquilo que não se goza, o destino do recalcamento produz o sintoma neurótico; o destino da sublimação produz linguagem. Produz a arte. Produz as identificações com o objeto amado/perdido. (2007, p. 52)

Reafirmando a ideia de que na origem de nossa condição desejante está a marca de uma falta, de um vazio, a autora nos permite pensar que o nascimento para a criação, as primeiras emoções estéticas falam dessas marcas.

Myriam Campello (2010), escritora carioca, compartilha com o leitor suas angústias na construção de um texto que lhe fora encomendado para falar do por quê escolhera ser romancista. Lá pelas tantas, "subornada" pela televisão, é capturada por restos de um poema anglo-saxão escrito há mais de mil anos.

Onde está o cavalo que se foi?
Onde está o cavaleiro?

Intrigada com o "telegrama do inconsciente", a imagem de "ausência e morte, a sela vazia, os dois devorados pelo tempo", Myriam constrói sua narrativa concluindo que escreve para se "aproximar da emoção provocada pelo cavalo e cavaleiro perdidos."

E não é disso que trata o tocante relato de Arrigo?

A música mais antiga que eu me lembro de ter prestado atenção é Assum Preto, com o Luiz Gonzaga. E eu me lembro do meu pai chegando com o disco em casa.. Nesse dia o Santos tinha perdido do Taubaté e eu tinha acabado de virar santista. Meu pai colocou Assum Preto e a história do cara que furou os olhos do bichinho para cantar, pelo amor de Deus! Eu comecei a chorar -também porque a música é toda em modo menor - e meu pai perguntou: "Mas porque você está chorando? É porque o Santos perdeu ou por causa da música?". Eu fiquei com vergonha de dizer que era por causa da música e falei: "porque o Santos perdeu".

 

Belo e/ou Sublime

Claro Crocodilo
Arrigo Barnabé

São Paulo, 31 de dezembro de 1999, falta
Pouco, pouco, muito pouco mesmo para o
Ano 2000 e você, ouvinte incauto, que no
Aconchego de seu lar, rodeado de seus
Familiares, desafortunadamente colocou
Este disco na vitrola, você que, agora,
Aguarda ansiosamente o espocar da
Champanha e o retinir das taças, você
Inimigo mortal da angústia e do
Desespero, esteja preparado. o pesadelo...

... Onde andará Clara Crocodilo? Onde
Andará? Será que ela está roubando algum
Supermercado? Será que ela está
Assaltando algum banco? Será que ela está
Atrás da porta de seu quarto, aguardando o
Momento oportuno para assassiná-lo com
Os seus entes queridos? Ou será que ela
Está adormecida em sua mente esperando
A ocasião propícia pra despertar e descer
Até seu coração. ouvinte meu, meu Irmão?

Remexendo no caldeirão inventivo de Arrigo, oferecido com descarada generosidade, encontramos a alquimia que mistura arquitetura, artes plásticas, teatro, composição e as tantas indagações e insatisfações, os assombros pulsionais, as tristezas; temperados pelo humor, num brincar levado a sério como é próprio do saber brincar das crianças.

Não é o Belo, esse objeto de forma acabada, que o artista nos entrega. Estamos no terreno do Sublime com seus efeitos belos, mas também desconcertantes, fugazes, turbulentos e incompletos.1

Na construção de seu objeto sublime Arrigo estabelece uma relação dialógica entre o efêmero e o permanente. São as composições e as performances. Bach e as instalações. Clara Crocodilo e Lupicínio Rodrigues. Explosão criativa num caos aparente que demanda trabalho e organização e que impacta o público numa reação positiva e intensa:

Era uma reação muito boa... você sentia que seu trabalho tinha sentido, que o que você fazia correspondia de alguma forma às expectativas. Quer dizer, tinha gente esperando esse tipo de coisa, querendo esse tipo de coisa.

Em consonância com aquilo que Maria Rita aponta como o valor ético da sublimação, que subjaz à renúncia que está em sua origem, J.D. Nasio (1988), em Lições sobre os 7 conceitos cruciais da psicanálise, vai recuperar a sublimação como um desses conceitos cruciais, ainda que situado no limite da psicanálise. Explicitando a formulação lacaniana: "a sublimação eleva o objeto à dignidade da Coisa", Nasio enfoca o efeito provocado pela obra de arte naquele que a olha. Em suas palavras:

Essas obras não são coisas materiais, mas formas significantes traçadas à semelhança de nosso eu inconsciente narcísico, deslumbram o espectador por seu fascínio e suscitam nele o mesmo estado de paixão e de desejo em suspenso que levou o artista a gerar sua obra. (p. 87)

Por este viés é possível afirmar que a obra de arte retira o espectador que a ela se entrega do lugar de passividade e o convida a realizar, de sua parte, também, um trabalho sublimatório.

 

"Então a gente tinha esse ambiente"

Pensar as várias circunstâncias que engendram o fazer e o viver criativos é pensar suas origens pulsionais, mas também o ambiente, suporte inelutável de nosso desamparo primordial.

Arrigo conta-nos de sua infância povoada de música e literatura:

Minha mãe gostava muito de ler, declamava muito bem... ia dando os livros para nós. Queria que a gente estudasse música... Não tinha televisão em Londrina e a gente fazia muita coisa à noite em casa. A gente se reunia pra tocar... Então a gente tinha esse ambiente.

Winnicott (1971) vai acrescentar ao entendimento dos movimentos criativos a importância do ambiente facilitador, a partir da ilusão inicial da criança, estimulada pela mãe, que lhe permite acreditar que o que ela cria existe realmente. Esta área intermediária de experiência incontestada, quanto a pertencer à realidade interna ou externa, abarca os fenômenos e objetos transicionais, acolhe o nascimento da capacidade de brincar na criança e é "conservada através da vida na experimentação intensa que diz respeito às artes, à religião, ao viver imaginativo e ao trabalho científico criador."

A ampliação da criatividade para além do território da obra de arte, na visão winni-cottiana, considera o impulso criativo como coisa em si, presente em qualquer pessoa e ligada ao sentimento de que a vida é real e significativa, vinculando o viver criativo ao viver propriamente dito.

 

Inconclusões

Em "O mal-estar na civilização", Freud (1930/1974b) mostra-se cético em relação ao alcance mediador dos mecanismos sublimatórios frente às exigências feitas ao homem civilizado, pelos reclames pulsionais e as correspondentes pressões do superego transmu-tadas em sentimento de culpa. Ao incluir a pulsão de morte nos destinos da humanidade, no que tange a seus aspectos autodestrutivos, o fundador da psicanálise, mais uma vez nos surpreende com sua atualidade incontestável.2

Mesmo sabendo que a sublimação não é o remédio definitivo para as vicissitudes do desejo (Kehl, 2007), e os males civilizatórios em suas apresentações contemporâneas, ainda assim contamos com a arte, objeto "gratuito em sua origem e fim" (Wisnik, 2011).

Quer se trate da fruição efêmera das performances ou do impacto estético em sua dimensão permanente de um Tristão e Isolda, de Wagner, podemos criar junto com o artista significações inéditas e provisórias, vivências ilusórias de onipotência.

Como faz Arrigo em seu lugar híbrido de intérprete e platéia:

Eu pego um álbum de Bach e faço viver novamente aquelas coisas. Eu instauro um tempo, começa um tempo ali, eu crio vida.

 

Referências

Campello, M. (2010). Em busca da ficção. Revista brasileira da ABL, fase VII, ano XVII.         [ Links ]

Freud, S. (1974a). Escritores criativos e devaneios. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 9, pp. 145-147). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1908)        [ Links ]

Freud, S. (1974b). O mal-estar na civilização. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 21, pp. 81-171). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1930)        [ Links ]

Kehl, M.R. (2007). Trapos de nuvens. In I. Bogéa (Org.), Oito ou nove ensaios sobre o grupo corpo (pp. 50-55). São Paulo: Cosac Naify.         [ Links ]

Lowenkron, A.M. (2009). Freud e seu tempo: a psicanálise e seus impactos. Teoria e Ficção 2. Trieb, 8(2),346-361. Rio de Janeiro: Imprinta.         [ Links ]

Nasio, J.D (1988). Lições sobre os 7 conceitos cruciais da psicanálise. Rio de Janeiro:, Jorge Zahar.         [ Links ]

Winnicott, D.W. (1971). O brincar e a realidade (pp. 13-30, pp. 98-103). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Wisnik, J.M (2011, 5 de março). De graça. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, Caderno 2, p. 2.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Sandra Gonzaga e Silva
[Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ]
Praia de Botafogo, 210, sala 1102 – Botafogo
22250-040 Rio de Janeiro, RJ
Tel: 21 2526-3219
sagon@globo.com

Recebido em 21/2/2011
Aceito em 11/3/2011

 

 

1 Kehl (2007) prefere referir a obra de arte ao objeto sublime, em contraposição ao Belo com seu apelo ao perfeccionismo e fixedez, o que na visão de Lacan se opõe ao movimento desejante.
2 O trabalho de Aurea Lowenkron "Freud e seu tempo: a psicanálise e seus impactos" com sua consistente discussão de "O mal-estar na civilização" iluminou minhas reflexões sobre o texto.

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