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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.4 São Paulo out./dez. 2011

 

ARTIGOS

 

Limite e simbolização: a influência das ideias de Winnicott na elaboração do conceito de limite de André Green

 

Limit and symbolization: the influence of Winnicott's ideas in the elaboration of André Green's borderline concept

 

Límite y simbolización: la influencia del pensamiento de Winnicott en la elaboración del concepto de límite de André Green

 

 

Talya Saadia Candi

Membro filiado ao Instituto de Psicanálise “Durval Marcondes” da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP, Doutora em Psicologia Clinica

Correspondência

 

 


RESUMO

A autora descreve o diálogo que o psicanalista francês André Green desenvolve com a obra de D. W. Winnicott em torno da noção de espaço transicional e apresenta suas reverberações para uma metapsicologia do limite. Na primeira parte deste artigo, a autora descreve os contextos históricos e clínicos que levaram A. Green a elevar a noção de limite em conceito metapsicológico e, na segunda parte, a autora discute a utilidade deste conceito para explorar alguns aspectos do processo de simbolização inerente ao trabalho de análise.

Palavras-chave: Metapsicologia, Limite, André Green, Espaço transicional, Simbolização.


ABSTRACT

The author presents the dialogue that French psychoanalyst André Green develops with D. W. Winnicott’s work around the notion of transitional space, and shows how the borderline concept emerges from such a dialogue. In the first part of this paper, the author describes the historical and clinical context which brought André Green to raise the notion of borderline to a metapsychological concept, and in the second part, she shows how this concept can be a useful instrument in exploring some aspects of the symbolization process that result from psychoanalytical work.

Keywords: metapsychology; borderline; André Green; transitional space; symbolization.


RESUMEN

La autora describe el dialogo que el psicoanalista francés André Green desarrolla con la obra de D. W. Winnicott en torno a la noción del espacio transicional y presenta las repercusiones de este dialogo para el concepto metapsicológico de límite. En la primera parte del artículo, la autora describe los contextos históricos y clínicos que llevaron a A. Green a elevar la noción de límite en concepto metapsicológico y, en la segunda parte, la autora discute la utilidad del concepto para explorar algunos aspectos del proceso de simbolización inherente al trabajo analítico.

Palabras clave: metapsicología; André Green; límite; simbolización; espacio transicional; proceso analítico.


 

 

Apresentação: André Green e a problemática dos limites

No panorama psicanalítico contemporâneo, o psicanalista francês André Green situa-se no campo teórico como herdeiro do que a psicanálise moderna trouxe de mais inovador, assim, sua obra dialoga tanto com os autores da escola inglesa que se dedicaram a pensar sobre as relações de objeto (particularmente Winnicott e Bion), como com as contribuições de Lacan que permitiram ampliar a reflexão sobre o tema da pulsão e da negatividade na obra de Freud. Esses diálogos levaram André Green a pesquisar a noção de limite e a elevar esta noção num novo conceito metapsicológico. No entanto, esse novo campo metapsicológico não surge exclusivamente a partir de um frutífero diálogo entre as diferentes teorias psicanalíticas, mas se manifesta a partir de uma exigência clínica que propõe ampliar o leque metapsicológico para poder refletir sobre as vicissitudes das análises com pacientes não-neuróticos, pacientes que não se adaptam ao enquadre psicanalítico padrão (regularidade do setting, utilização do divã, associação livre...). Esses pacientes, que encontram-se no limite da possibilidade de análise por apresentar um déficit no nível simbólico, obrigam a considerar o papel desempenhado pelo ambiente e pelos objetos externos no processo de constituição subjetiva e no processo de simbolização inerente ao processo analítico. Entre o movimento pulsional do sujeito e a resposta do objeto, no limite entre o sujeito em devir e o objeto externo, abrem-se os caminhos para o pensamento e a simbolização.

Entre as múltiplas influências teóricas que devem ser lembradas para fundamentar uma metapsicologia do limite, André Green destaca o conceito de pulsão de Freud, a negatividade lacaniana, as noções de transformação e de função alfa de Bion e as questões da transicionalidade e de paradoxo desenvolvidas por Winnicott. O conceito de limite é assim um conceito-chave que reúne postulados de diferentes autores que possibilitam estabelecer as bases tópicas, dinâmicas e econômicas do funcionamento simbólico inerente às formações psíquicas.

Vou me dedicar a expor neste artigo o diálogo que André Green entreteve com o pensamento de Winnicott para elaborar o conceito de limite, pois acredito que esse diálogo é especialmente útil para refletir sobre os impasses da clínica com pacientes resistentes às exigências do enquadre psicanalítico padrão. A análise dos pacientes-limite representa atualmente uma importante fonte de pesquisa, porém, pareceu-me mais interessante trazer, num primeiro momento, o contexto histórico e clínico que levou ao nascimento do conceito metapsicológico de limite, para, num segundo momento, discutir como esse conceito pode nos ajudar a explorar os diferentes aspectos do processo de simbolização que acontece ao longo do trabalho analítico.

 

1. O limite como conceito metapsicológico

a. O contexto histórico

No ano de 1975, quatro anos após a publicação no Reino Unido da primeira edição do livro O brincar e a realidade de D. W. Winnicott, alguns psicanalistas franceses começaram a demonstrar um vivo interesse pelo legado winnicottiano. J. B Pontalis, editor-chefe da coleção Connaissance de l’inconscient, colaborou pessoalmente para a tradução do livro para a língua francesa e escreveu um prefácio intitulado: "Encontrar, acolher e reconhecer o ausente", no qual ressaltava a importância da obra de Winnicott para o futuro da psicanálise contemporânea. Na mesma época, André Green, por sua vez, dedica à memória de D. W. Winnicott o relatório da sua apresentação no congresso internacional da ipa de Londres, intitulado: "O analista, a simbolização e a ausência no enquadre psicanalítico", no qual já desenvolve suas primeiras concepções acerca do negativo, atribuindo a paternidade dessa fecunda noção a Winnicott. Como pode ser percebido pelo título, tanto do texto do J. B. Pontalis como do relatório de A. Green, é em torno da questão da elaboração da ausência dos objetos primários e do processo de simbolização das experiências subjetivas que vão se dar as contribuições da escola francesa. Hoje em dia, fica cada vez mais claro que importantes desdobramentos dos aportes winnicottianos à teoria psicanalítica tiveram lugar na França, a partir de autores como J. - B. Pontalis, A. Green, D. Anzieu, e mais recentemente R. Roussilon. No caso particular de Green, esse diálogo com a obra póstuma de Winnicott mostrou-se um elemento importante para a elaboração do conceito de limite (Green, 1990b). Esse conceito, que aponta para um lugar de troca, de separação e ligação entre diferentes gêneros de representação e afeto, retrata também a dinâmica e a economia do funcionamento do simbolismo, que serve para pensar e se apropriar tanto do mundo interno dos afetos quanto dos objetos externos.

Para Winnicott, a função do espaço transicional é permitir a elaboração da interminável tarefa de fazer dialogar o mundo interno de fantasias, ligadas ao que Freud denominou de princípio do prazer, e a realidade externa, que deve se submeter ao princípio de realidade.1 É dentro deste espaço intermediário que o impacto emocional produzido pelo contato com os objetos (internos e externos) poderá ser simbolizado, e o sentido, gerado; fora deste espaço, temos o puro excesso, que deve ser visto como o horror de uma realidade que não pode ser apreendida e re-conhecida. Uma das mais importantes funções da transicionalidade é o alívio das tensões que se manifestam quando o psiquismo deve dar conta de uma experiência em relação ao mundo exterior. Este alívio temporário das tensões nesta área do brincar vai funcionar como uma reserva de prazer que possibilita a elaboração gradativa dos excessos afetivos e dos intermináveis conflitos. O sujeito winnicottiano se vê, ao longo da vida, tendo que percorrer uma jornada que lhe permitirá experimentar e simbolizar as realidades internas e externas, que sempre trazem um aumento de tensão potencialmente traumático. Lembremos contudo que, para Winnicott, não existe uma coisa chamada bebê, mas uma unidade mãe-bebê, que não tem um sujeito próprio, mas se configura numa unidade que consiste numa inelutável relação com o outro, que abre paradoxalmente espaço para o encontro com o próprio self. Cabe portanto assinalar que a jornada rumo à realidade externa será também uma jornada que permitirá encontrar e fortalecer os objetos da realidade interna. Para Winnicott, os objetos transicionais são pequenas coisas que podem ajudar nesta tarefa, no entanto estes objetos, substitutos de objetos parciais, tornam-se importantes não pelo valor simbólico, mas sim pela existência efetiva; o objeto transicional deve parecer real pois somente parecendo real e vivo poderá ser usado pela criança para brincar e percorrer a longa jornada que a levará a se apropriar dos objetos e articular o interno e o externo.

O objeto-espaço da transicionalidade, pela sua característica paradoxal e complexa (sua lógica dialética), torna-se para Green um instrumento valioso para descrever a formação da estrutura psíquica: "Penso que o conceito de transicionalidade não é somente válido entre o interno e o externo, o objeto sendo e não-sendo o seio, mas pode endereçar-se também a todas as estruturas intermediárias do mundo interno". Assim, explica-nos Green, entre as diferentes instâncias psíquicas, também devem existir espaços intermediários que viabilizariam a passagem de um espaço para outro, por exemplo, entre o ego e o id, ou entre o superego e o ego:

Faço a hipótese de que estes lugares, nos quais diferentes lógicas estão em jogo (por exemplo: lógica do id e lógica do ego), viabilizam a passagem criando uma terceira área, como no simbolismo onde a reunião de dois fragmentos separados cria um terceiro objeto pela conjunção de dois pedaços disjuntos. (Green, 2005a, p. 64)

Para André Green, este tipo de experiência que tolera a heterogeneidade e a espera viabilizando o trânsito é paradigmática das formações onde se faz o simbolismo que permite a elaboração psíquica. O limite é uma metáfora que representa estas áreas fronteiriças de reunião e separação, um espaço de jogo que viabiliza um compromisso instável entre diferentes tipos de materiais psíquicos e não psíquicos. Nesses territórios-limites os diferentes tipos de funcionamento mental poderão coexistir pacificamente. Essa co-existência pacífica dos opostos (a tolerância ao paradoxo) elabora a digestão dos excessos de angústia, transforma as forças pulsionais e direciona a psique para formações substitutivas e o simbolismo.

Com Green, o limite se transforma num dos conceitos mais fundamentais da psicanálise contemporânea:

Devemos considerar o limite como uma fronteira móvel e flexível, tanto na normalidade quanto na patologia. O limite é, talvez, o conceito mais fundamental da psicanálise contemporânea. Ele não deve ser formulado em termos de representação figurada, mas em termos de processos de transformação de energia e de simbolização. (Green, 1990b, p. 126)

b. O contexto clínico

No intuito de impulsionar a clínica psicanalítica dos pacientes difíceis, André Green transforma a noção clínica de limite em conceito metapsicológico. Essa procura conceitual o leva ao longo das últimas décadas a estudar comparativamente os autores da British Psychoanalytical Society. Para A. Green, as concepções sobre o espaço transicional e a simbolização, que Winnicott desenvolveu no livro O brincar e a realidade, vieram contrabalançar as descobertas clínicas kleinianas que davam uma importância excessiva à pulsão de morte e aos processos psíquicos internos, inerentes aos movimentos pulsionais, em detrimento de uma elaboração mais aprofundada do trabalho psíquico dos objetos da realidade externa que devem balizar os processos de simbolização. Assim, procurando explicitar o trabalho do ambiente e dos objetos externos, A. Green põe para dialogar a obra de S. Freud, M. Klein, D. Winnicott e W. Bion. Lembrando este momento histórico, Green diz: "Pareceu-me, a partir de um certo momento, que deveríamos revisar a teoria para incluir o papel do objeto" (Green, 2002, p. 48). Levando em conta a demanda do sujeito que se instala em direção ao objeto externo, pela intermediação da ativação pulsional, a maneira pela qual o objeto responde a esta procura determina a estruturação primitiva do aparelho psíquico do sujeito. A resposta do objeto externo deve, portanto, ser incluída na teoria psicanalítica.

Esta inclusão é particularmente importante para os analistas que trabalham com pacientes que possuem uma dificuldade em fazer uso da situação psicanalítica padrão e que portanto demandam uma implicação maior por parte do analista. Trata-se de pacientes que geram o sentimento de que o jogo pulsional despertado na análise não pode ser vivido sem ter a contrapartida por parte dos objetos e das suas funções constitutivas. De fato, quando tratamos de pacientes que tiveram objetos suficientemente adequados, a parte do objeto torna-se invisível. Nestes casos, o enquadre analítico pode funcionar silenciosamente de maneira a sustentar o andamento do processo analítico; no caso contrário, o enquadre é barulhento e exige um manejo delicado que coloca em jogo um trabalho psíquico por parte do objeto externo. As falhas no desempenho dos objetos primordiais e das suas funções constitutivas do psiquismo estão na origem da condição limite do paciente, condição esta que incide diretamente sobre a relação do paciente com o analista e sobre a possibilidade de instalar um enquadre estável ao longo do processo analítico.

Para Green, a finalidade do trabalho do objeto é a construção de um espaço psíquico intermediário estruturado por um duplo limite, que permite trânsito e dialogo entre, por um lado, o dentro e o fora, e por outro o consciente e o inconsciente. Este duplo limite sustenta um espaço interno/externo tridimensional de respiração psíquica onde pode acontecer um viver criativo movido pelo princípio do prazer e por uma possibilidade de escolha que testa constantemente a realidade externa e promove a transformação dos impulsos e sua utilização na realidade externa.

Quando os limites se apresentam com dificuldades para sustentar a estrutura psíquica e fazer comunicar os diferentes espaços (interno/externo, consciente/inconsciente), eles devem ser assegurados pelo trabalho dos objetos externos, que devem funcionar como zonas intermediárias de para-excitação, de contenção das forças e de figuração dos excessos (continência, rêverie, holding). O trabalho dos objetos vai impulsionar o andamento da simbolização e abrir um caminho entre espaços que possuem lógicas internas diferentes, sustentando as formações egoicas que se caracterizam pela liberdade de trânsito. As funções simbolizantes do objeto, tal como foram denominados por Renée Roussillon (1999, p. 171), são a parte operante do trabalho terapêutico; elas se situam tanto na postura interpre-tativa do analista quanto na sua capacidade de criar, manter e sustentar o desenvolvimento da própria situação psicanalítica.

 

2. A situação analítica como espaço de simbolização: trabalhando os limites

a. Sonho: brincar e negatividade

A tese central de André Green em relação à situação analítica padrão é que esta situação (incluindo o dispositivo analítico, a associação livre, a resistência e a transferência) reproduz as condições materiais e psíquicas necessárias e suficientes para poder criar símbolos e sonhar. A situação analítica deve ter as qualidades do espaço potencial, um espaço virtual no qual pode ser gerado o sentido. Para Green, a constituição deste espaço depende da resposta proporcionada pelos objetos primários às marcas deixadas pela experiência de ausência, pois cabe ressaltar que as características do vínculo com os objetos primários (a flexibilidade, a resistência, o re-conhecimento) serão transferidas na atividade de simbolização. Um dos pressupostos da associação livre é a inibição da satisfação direta do movimento pulsional embutido na fala; assim, ela aciona o registro simbólico, registro este que é um produto da negatividade. O divã, a exigência da associação livre, a neutralidade e o silêncio do analista são dispositivos que promovem a ausência de estímulo e induzem um estado de quase-sono que convida a um sonhar acordado, materializado na atividade da associação livre do paciente. Uma das funções do analista na situação analítica seria ser o guardião do sonho e da associação livre, que é o próprio desenrolar da vida psíquica. Tal como o sono e o sonho, a situação analítica convocaria o narcisismo e a capacidade autoerótica do paciente; ela cria uma neurose narcísica que pode chegar a reproduzir a experiência direta de amamentação do bebê e inclui o adormecer no colo materno.

O símbolo, segundo o dicionário Petit-Robert, "é um objeto cortado em dois que se constitui como um signo de reconhecimento quando os que o carregam podem reunir os dois pedaços" (Rey, 1998, p. 345); o símbolo re-constitui um objeto único a partir da junção de duas partes que foram anteriormente separadas. O simbolismo surge aqui como um processo que produz desligamento e re-ligação, separação e junção, e aponta para um intenso movimento interno de forças pulsionais. A lógica dialética do espaço transicional possibilita a A. Green afirmar que este tipo de lugar que tolera o ilogismo, a heterogeneidade e o paradoxo é justamente o lugar de cortes e suturas onde se forma o simbolismo, o que consequentemente o leva a formular o conceito de limite como um espaço-tempo onde acontece a transformação e contenção de energia necessária para viabilizar o processo de simbolização.

Pensando na situação analítica, o conceito de limite nos informa sobre o andamento do processo de simbolização: a divisão (e a junção) dos espaços (o sonho de dentro da sessão e o acordar da realidade externa) e dos tempos (a vida e a morte entre uma sessão e outra, entre a noite e o dia). Na situação analítica, o analista trabalha nos limites, ele deve se deixar colocar entre a fantasia e a realidade, o dentro e o fora, o passado e o futuro, e fornecer, para o cenário analítico, o ambiente necessário para a constituição do espaço potencial: um espaço colocado à disposição para ser usado de modo que a experiência do sonhar possa se realizar. Estes lugares-limites nos quais o analista se coloca são representações de entidades psíquicas que ativam o processo analítico, fazendo cortes e suturas e possibilitando o desenrolar (mais ou menos linear ou sem grandes catástrofes) do processo de criação de sentido da experiência subjetiva. Estes lugares-limites são áreas muito particulares, que, tal como a situação analítica e o sonho, toleram a irracionalidade, a atemporalidade, o paradoxo, ativam o jogo entre os mais variadas tipos de representação e promovem a elaboração gradativa das angústias e dos excessos afetivos. Tanto a função do analista quanto o funcionamento do próprio enquadre podem ser vistos como formações intermediárias que mobilizam a simbolização (fazem cortes e suturas) e possibilitam ao paciente confundir e diferenciar as fantasias e a realidade compartilhada, e transitar entre o dentro e o fora, o eu e os outros, o ontem e o amanhã.

Descreveremos a seguir dois trabalhos limites-implícitos na situação psicanalítica que põem em marcha o processo de simbolização. Estes trabalhos, sustentados silenciosa e quase invisivelmente pelo fazer do analista, podem ser visualizados a partir de dois paradoxos winnicottianos constitutivos do espaço transicional: o paradoxo encontrar-criar (que se manifesta pelo fenômeno de ilusão) e o paradoxo destruir-sobreviver, que abre espaço para o difícil encontro com a alteridade dos objetos externos e internos. Nos processos analíticos de pacientes não-neuróticos, estes paradoxos se tornam especialmente barulhentos e dolorosos.

b. Trabalhando nos limites: o fenômeno de ilusão

O fenômeno da ilusão sustenta parte do trabalho psíquico e frequentemente é um dos elementos que permite o estabelecimento da situação analítica. Quando o analista consegue se ajustar de modo suficientemente adequado às exigências pulsionais para aliviar a dor psíquica do paciente, os momentos de ilusão surgem a partir de uma indiscriminação entre o Eu e o outro. É no texto "Objetos transicionais e fenômenos transicionais" que Winnicott nos permite entender a função da ilusão no processo de construção da realidade (Winnicott, 1975, p. 21). Neste texto, Winnicott apresenta um momento mítico na constituição subjetiva, no qual acontece no psiquismo da criança uma primeira expectativa de alguma coisa que venha a apaziguar a dor produzida pela pressão pulsional e dar sentido a esta pressão:

A um certo momento teórico, diz ele, muito cedo no desenvolvimento de todo indivíduo, a criança pequena, num certo ambiente fornecido pela mãe, é capaz de conceber a ideia de que alguma coisa poderia ir ao encontro de sua crescente necessidade provocada pela tensão instintual. Não podemos supor que a criança saiba o que deve ser criado. É neste momento que a mãe se apresenta. Costumeiramente ela dá seu seio e seu insistente desejo de alimentar. A adaptação da mãe às necessidades da pequena criança, quando a mãe é suficientemente boa, dá a esta última a ilusão de que existe uma realidade externa, que corresponde à sua própria capacidade de criar. (Winnicott, 1975, p. 21)

Para Winnicott, existe no bebê suficientemente saudável (e no paciente que não perdeu a esperança e por isso procura uma análise) uma criatividade inata própria do ser vivo. Esta criatividade primária faz com que o bebê esteja, no estado de excitação, "tentando alcançar algo" para aliviar a pressão exercida pela dor da pressão pulsional. A ilusão permite a estruturação de uma experiência de onipotência, ou seja, permite que a criança acredite temporariamente que ela tem o poder de fazer aparecer um objeto externo que pode aliviar a sua dor e satisfazer suas necessidades. Ora, para que a ilusão possa se sustentar, devemos pressupor que haja uma sobreposição (uma junção simbólica) entre o movimento antecipado da criança e o que Winnicott chamou de desejo insistente da mãe de alimentar. É esta sobreposição que cria o paradoxo chamado por Winnicott de "encontrado-criado". O bebê concebeu na fantasia, no momento certo, na medida suficientemente justa, um seio (uma presença, uma interpretação, um ambiente...) que já estava lá, e é esta criação imaginária antecipada que lhe permite tanto usufruir do prazer do seio como do alimento que a mãe deseja lhe dar. Assim, num primeiro momento, diz Winnicott, "a criança se alimenta com um seio que faz parte dela mesma e a mãe amamenta uma criança que faz parte dela mesma" (Winnicott, 1975, p. 21). O paradoxo deve ser aceito e não contestado pela visão objetivista, pois é este paradoxo que permitirá o desenvolvimento de uma área intermediária que Winnicott diz ser neutra e sem conflitos, onde se situa a atividade psíquica imaginativa que se encontra entre o objeto subjetivo produzido totalmente com a força da criatividade originária ligada ao princípio do prazer e o objeto encontrado na realidade externa. Ao ser criada/encontrada, a representação do objeto pode ser investida pelas pulsões e a força da pulsão poderá ser alimentada por esta primeira representação.

O objeto é, segundo Green, investido pela pulsão antes de ser concebido e é este investimento libidinal e agressivo nestes momentos de ilusão que vai permitir que o paciente estabeleça um vínculo significativo com a situação analítica. Com a teoria da ilusão, Winnicott, segundo Green, propõe considerar que o que caracteriza a experiência de satisfação é a coincidência espacial e temporal de dois tipos de processo: um do tipo alucinatório (o seio é criado imaginariamente) e outro do tipo perceptivo (o seio é encontrado). Esta coincidência faz com que o fenômeno da ilusão possibilite não só representar o objeto e a sua satisfação, mas promova uma verdadeira realização do movimento de espera. A realidade psíquica torna-se real justamente porque é feita de atualizações. O fenômeno da ilusão cria um objeto que já estava lá, esperando para ser encontrado, e embaralha consequentemente a fronteira entre a criação imaginária e a realidade externa, entre o Eu e outro. Ora, será a partir da abertura dos momentos de ilusão, devido às falhas inevitáveis do ambiente e à crescente capacidade da criança de suportar a espera e a diferença, que o psiquismo vai trabalhar os limites. Nos hiatos (tempo/espaço) entre o objeto criado e o objeto encontrado, vai se desenvolver a atividade representativa que abre espaço para o domínio da terceiridade.2

c. Sobrevivência e simbolização: os limites no tempo

A exterioridade nasce a partir da resposta dada aos movimentos destrutivos provocados pelas rupturas da onipotência. A desilusão progressiva acompanha inevitavelmente o fenômeno da ilusão; os finais de sessões, a descoberta da alteridade do objeto que acontece nos momentos de não-coincidência entre o objeto criado e o encontrado, as ausências do analista e a sua não-disponibilidade produzem experiências que oscilam entre a frustração, o desprazer e o ódio, indispensáveis para promover tempos de quebra necessários para a descoberta dos objetos externos. O processo de simbolização avança a partir das contínuas quebras da ilusão, que instituem rupturas na onipotência e possibilitam testar a realidade externa. As sensações de desprazer, os afetos de raiva, de impotência, as tentativas de negação da falta, de apagamento do objeto, são inevitáveis e provocam impulsos destrutivos que devem encontrar uma reposta adequada do ambiente externo. É a resposta do objeto que permitirá ao sujeito sair de uma construção puramente subjetiva da realidade. Winnicott, no texto sobre o uso do objeto, permite-nos sair do impasse gerado pela construção puramente subjetiva do objeto. "O objeto", diz ele, "precisa sobreviver aos movimentos destrutivos movidos pela frustração que a realidade produz" (Winnicott, 1975, p. 125). A sobrevivência é uma resposta que acontece em dois tempos, ela implica deixar-se atingir efetivamente pela destrutividade num primeiro momento para, num segundo momento, retornar mostrando-se vivo e criativo, mantendo o contato afetivo significativo e o investimento no sujeito. É esta resistência e retomada da ligação depois da perda promovida pelo impulso destrutivo que é decisiva para a descoberta da exterioridade e para o andamento do processo de simbolização. Segundo Winnicott, é a capacidade do objeto de "sobreviver", pois do ponto de vista da criança terá ocorrido, de fato, uma destruição real (uma morte) aos movimentos destrutivos, que possibilitará à criança descobrir a resistência do objeto e a sua verdadeira realidade, percebendo ao longo do tempo que o objeto externo tem uma vida própria e se encontra fora do mundo fantasmático onipotente. Com a noção de sobrevivência, a simbolização não contempla somente a união instantânea de duas partes separadas no espaço, mas também uma dimensão temporal, pois permite religar duas experiências subjetivas que acontecem em momentos diferentes. Neste sentido, Green nos diz que o espaço potencial expressa o simbolismo no tempo. Esta união no tempo deve ser concebida como a realização de um instante antecipado potencialmente que, contudo, será testado e ganhará forma somente no momento da junção das duas partes.

Assim, o trabalho de simbolização da realidade externa propriamente dito começará somente após esse primeiro choque com a realidade, decorrente das falhas dos objetos edípicos. Só após esse primeiro tropeço da ilusão (a primeira morte e sobrevivência) a criança poderá conceber um objeto independente dela mesma e de seus estados internos, um objeto que não será meramente seu próprio "duplo".

A simbolização é um processo e pode acontecer somente a partir de uma antecipação prévia instituída pela alucinação nos momentos de ilusão; o que implica que o psiquismo é chamado a trabalhar nos tempos entre a reunião e a separação, entre a morte provocada pela destrutividade e a sobrevivência do objeto externo.

O simbolismo pode também ser aproximado da concepção - conceber aqui significa formar um conceito - e nos permite imaginar uma ligação entre os dois estágios de separação e de reunificação. Ligação e desligamento são, segundo Freud, as duas funções de base das pulsões de vida ou de amor, por um lado, e de destrutividade, por outro. Estas funções se aproximam do que tenho proposto com os termos de reunião e separação. (Green, 2005b, p. 92)

A noção de terceiridade, conceitualizada por Green, é uma decorrência da funçãolimite. Esta noção faz referência a um terceiro elemento que se localiza entre os dois corpos e permite vivenciar e se movimentar entre momentos ilusórios de união e momentos de quebra e separação, e assim cria pequenas pontes de passagem entre o mundo interno de fantasia e a realidade externa. A terceiridade assinala a existência de um estágio intermediário entre o narcisismo primário fusional e as relações de objeto interpessoais; este estágio é feito da sobreposição de uma camada bebê e uma camada mãe, e por ser feito de sobreposição não é nem a mãe e nem o bebê. Este terceiro objeto-espaço-tempo, que se sustenta basicamente pela esperança de reunião dos próprios corpos que separa e que é paradoxalmente feito de negatividade e de sobreposição (tornando-se um limite feito de carne e sonho), constitui um dos elementos que possibilita criar as novas ligações necessárias para a formação do pensamento.

 

Referências

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Correspondência:
Talya Saadia Candi
Rua Pedroso de Alvarenga, 565, casa 9
04535-000 São Paulo, SP
Tel: 11 3079-0070
talyasc@uol.com.br

Recebido em 11.4.2011
Aceito em 2.9.2011

 

 

1 Vale a pena citar Winnicott: "Suponhamos", diz Winnicott, "que a aceitação da realidade é uma tarefa sem fim e que nenhum ser humano consegue se livrar da tensão suscitada pela colocação em relação à realidade interna e à realidade externa, suponhamos também que esta tensão pode ser aliviada pela existência de uma área intermediária de experiência, que não é contestada (arte, religião). Esta área intermediária está em continuidade direta com a área do jogo da pequena criança 'que se perde’ no seu jogo" (Winnicott, 1975, p. 33).
2 Remeto o leitor interessado nesta noção para o texto "De la terceité" de André Green (2005b).