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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.4 São Paulo out./dez. 2011

 

RESENHAS

 

O tempo, a escuta, o feminino

 

 

Renato Mezan

Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Professor titular da PUC-SP

Correspondência

 

 

Editora: Casa do Psicólogo, 2011, 458 p.
Editora:
Casa do Psicólogo, 2011, 458 p.
Resenhado por: Renato Mezan

 

Silvia Alonso e a clínica do singular: uma leitura de O tempo, a escuta, o feminino

Argentina, início dos anos 1970: os ecos do Maio francês ainda reverberam na comunidade analítica. Importantes mudanças estão em curso, tanto nos referenciais teóricos - o kleinismo dominante se vê questionado pelo "retorno a Freud" proposto por Lacan, e que em suas diversas ramificações estava revolucionando o panorama da psicanálise na França - quanto no plano das instituições. Divergências profundas soe o lugar social do analista, soe a formação tradicional e soe a gestão política da apa (Associação Psicanalítica Argentina) resultam na saída de vários memos prestigiosos, inconformados com o que consideravam defeitos insanáveis naquela sociedade e aspirando a uma participação mais ativa na esfera do que então começava a se denominar "campo da saúde mental".

É em meio a essa efervescência que Silvia Leonor Alonso vive seus anos de formação como analista e os escritos reunidos no livro, que comentarei a seguir, dão testemunho de quão decisivamente ele influiu em seu modo de praticar e de pensar a psicanálise.1 Os seminários com Armando Bauleo e algumas supervisões com Marie Langer airam para ela os caminhos que desde então vem percorrendo; quatro décadas depois, graças à compilação em volume de boa parte da sua produção escrita,2 o leitor pode perceber a cada página as marcas deixadas por aqueles mestres e verificar como é verdadeira a afirmação que ae a coletânea: "a clínica cotidiana tem ocupado parte significativa de meus dias, e, certamente, só posso sustentá-la alternando-a com momentos ora de reflexão, ora de troca com colegas" (p. 11).

A "construção do analista" estudada num dos capítulos da oa situa no plano dos conceitos o percurso da própria autora: quem se inicia na profissão segue "vicissitudes pessoais" e "caminhos identificatórios" singulares, que o levam da perplexidade e da idealização (do seu analista, da teoria...) até a "apropriação da herança recebida" de que fala Freud em sua conferência soe Goethe. E tal herança não é pequena: trata-se do passado da psicanálise que moldou o seu presente e fornece instrumentos para o pensar. Desse presente faz parte o trabalho clínico, mas também a inserção dos analistas no mundo em que eles e seus pacientes vivem e que, portanto, determina as modalidades de sofrimento psíquico com as quais irão lidar.

No caso de Silvia Alonso, o "mundo" irrompeu de modo dramático sob a forma da barbárie militar, que a levou a deixar seu país no final de 1976. Foi em São Paulo, primeiro na PUC e em seguida no Instituto Sedes Sapientiae, que encontrou um novo lugar de pertinência, vindo a fazer parte do Curso de Psicanálise e do Departamento que dele se originou. Nesse âmbito, o que vem marcando sua atuação - como professora, supervisora, participante de comissões e do primeiro Conselho Editorial da revista Percurso, coordenadora de um grupo de trabalho soe o feminino, conferencista e colaboradora em publicações da área - é a consistência de um pensamento clínico em permanente movimento, alicerçado num sólido convívio com a oa de Freud e com os escritos de dezenas de outros autores (as "referências bibliográficas" do livro coem nada menos que dezoito páginas).

Os textos escolhidos para compor o volume se dispõem em quatro partes. A base da qual partem é um minucioso estudo dos tempos psíquicos, pois, para a autora, "o tempo é artesão do psiquismo" (p. 101). Os resultados dessa investigação, assim como o das etapas da constituição do sujeito, são utilizados para compreender a formação do analista e o exercício da escuta (partes IV e II), e também nos artigos que, a meu ver, formam o centro da oa, a respeito do feminino, do materno e da histeria (parte III). De permeio, somos indados com comentários de filmes que ilustram as problemáticas abordadas (Antes da chuva, Gritos e sussurros, Sonata de outono, Pequena Miss Sunshine e outros), e com lúcidas notas soe aspectos da sociedade contemporânea - certos ideais alienantes, a força das imagens, exigências excessivas de desempenho - que influem direta ou indiretamente soe o psíquico, contribuindo para plasmar sujeitos cuja fragilidade emocional e identifi-catória está na raiz daquilo com que se defronta o analista em seu trabalho cotidiano.

 

1. Temporalidades

"Na Psicanálise, tanto o tempo quanto a memória só podem ser considerados no plural..." (p. 22): cada instância tem sua temporalidade específica, e as lemanças estão em constante movimento, rearranjadas pelos movimentos pulsionais/desejantes e pela fantasia.

Há basicamente, diz Silvia no capítulo 1, dois regimes para o tempo mental: "o que passa" e "o que não passa". O primeiro tem duas faces: a da experiência de si, sediada no ego, e a da ressignificação, isto é, da reorganização das marcas do que aconteceu ao sujeito em lemanças e outras formações psíquicas, com o que um novo sentido é atribuído àqueles aspectos do passado. Apoiando-se na leitura de "Leonardo", "As recordações encoidoras", "Projeto de uma psicologia científica" e de outros textos de Freud, ela vai traçando a complexa trama da memória, esse "emaranhado de vivências e cenas/lemanças" que constitui um dos fundamentos da nossa identidade. O processo primário comanda as transformações das marcas inconscientes (p. 40), o que tem impacto direto soe o processo analítico, tornando impossível a recuperação da realidade material - o que é atestado pelos equívocos de Freud ao tentar reconstituir, a partir dos escritos deixados pelo artista, fatos concretos da biografia de Leonardo.

No entanto, longe de invalidar a análise, é isso que circunscreve o campo dela, a saber, a realidade psíquica. O divã não é uma "máquina do tempo" que nos conduziria ao passado tal como ocorreu (p. 56); por outro lado, a atenção exclusiva ao "aqui e agora" privaria, segundo Sílvia, o analisando da possibilidade de ressignificar suas experiências. Para ela, é a atualização do passado na transferência que permite evidenciar o que é específico no inconsciente, a saber, a sua temporalidade (p. 46); a abertura da fala por meio da livre associação possibilita desconstruir os "conglomerados" mnêmicos cristalizados, presentifi-cando a "memória intemporal" própria do processo primário (p. 67).

A leitura com lupa da história de Catarina, a camareira de cuja história Freud toma conhecimento durante suas férias nos Alpes, demonstra que desde o início do seu trabalho ele opera com uma causalidade múltipla, buscando estabelecer nexos entre as cenas narradas e construindo um "tecido" no qual as situar. O procedimento de resgatar nos textos freudianos o que neles há de instigante para uma interlocução com o analista de hoje é um dos pilares do livro: o Freud que dele emerge não é de modo algum - como em certas tradições anglo-saxônicas - o predecessor ilustre, mas um tanto precário do psicanalista contemporâneo e, sim, alguém que tem muito a dizer soe os processos em jogo numa análise.

O que vai emergindo no relato do analisando é acolhido pela escuta do psicanalista, soe a qual há muito a aprender no livro de Silvia. O que a caracteriza é a capacidade imagética, graças à qual vão se formando figuras que orientam a interpretação. Ela insiste bastante nesse componente da função analítica que resulta (para o psicanalista) da maior permeabilidade entre os processos primário e secundário adquiridos por meio da análise pessoal. O capítulo 4 ("Encontros entre imagens e conceitos") é um dos pontos altos da coletânea: servindo-se do estudo de Monique Schneider soe a história da menina e dos cisnes,3 e de sua própria análise do filme Antes da chuva, a autora ilustra com maestria a complexidade da memória e do percurso transferencial, em particular no que tange à perlaboração. A "quea dos tempos" e a "fusão das cenas" que caracteriza a vida psíquica é descrita já em "Projeto de uma psicologia científica", quando Freud relata a história de Emma: uma vivência infantil carente de "ossatura" e, portanto, de sentido (numa loja, o vendedor acaricia os genitais da menina) ganha significação (no caso, sexual e traumática) em virtude de uma experiência na época da puberdade - sentir-se observada pelo vendedor de outra loja - que pelas vias do processo primário desencadeia a neurose: ela passa a ter pavor de entrar em qualquer comércio.

É neste capítulo que encontramos uma útil sistematização das etapas da constituição subjetiva (p. 96ss.): a da satisfação alucinatória e automática do infans, a introdução de "vírgulas na homogeneidade sem cortes" da experiência de si, ocasionada pela presença e ausência do objeto (fort/da), a diferenciação das instâncias com suas respectivas formas de funcionamento, a triangulação edípica que origina o ideal do ego, e com ele a "abertura para o devir". Verdadeira síntese das primeiras cem páginas, esse esquema alicerça os desenvolvimentos soe outros percursos de constituição, em particular os do psicanalista e da menina até sua maturação como mulher.

 

2. A construção do analista

O que escuta um analista? pergunta-se Silvia - e responde: "escuta-se tudo, para poder escutar alguma coisa - o inconsciente" (p. 109). O psicanalista só será capaz de captá-lo se souber air mão de uma parte do seu narcisismo, recusando-se a ocupar, para o analisando, os lugares de mestre e de ideal. Esse tema tem vários desdoamentos ao longo do livro, pois não é coisa simples escapar das tentações hipnótica e pedagógica próprias a certas formas de psicoterapia não-analítica.

O problema da sugestão preocupou Freud por quase quarenta anos. Tendo iniciado sua prática sob o signo da hipnose, era particularmente sensível ao risco de que esta ressurgisse suepticiamente no terreno da análise, mesmo que com o paciente acordado e sem que o terapeuta lhe desse ordens para adotar ou suprimir tal ou qual comportamento. A sugestionabilidade faz parte da psique humana, e, portanto não pode ser eliminada do horizonte do tratamento; a questão é como evitar que ela bloqueie o processo - e isso depende integralmente da postura do profissional.

A cada sessão, assinala a autora, este se defronta com suas próprias resistências, fantasias e desejos, com o "desconhecido em si mesmo"; isso abala suas certezas e referências, e exige "mobilidade" para escutar a partir do lugar da transferência (p. 121). É Piera Aulag-nier, com sua aguda análise do prazer e da resistência no trabalho clínico, que a guia pelos meandros da experiência do analista; ela recorre igualmente a Fédida, a Pontalis e ao Freud de "Construções em análise" para dar conta do recado - e também à sua própria trajetória de "singularização", discretamente presente em toda essa seção do livro.

O ponto central, aqui, é a de que o analista não existe no vácuo, mas numa cultura e numa sociedade, e igualmente em relação com o campo psicanalítico, do qual fazem parte a instituição na qual se formou e aquela a que escolheu filiar-se (quer seja a mesma, ou outra). O pano de fundo dos anos setenta ecoa aqui: Silvia dedica grande atenção às formas de convivência entre os memos de uma associação psicanalítica, deuçando-se soe o "mal-estar inevitável" que resulta do simples fato da pertinência a ela. A idealização necessária para "sustentar" (termo que ocorre com frequência em seus escritos) o desejo de se tornar analista não deve persistir para sempre, sob pena de gerar situações de pura e simples alienação, incompatíveis com a voz própria que se espera de um psicanalista.

Os capítulos 18 e 19 ("Mal-estar inevitável" e "A apropriação das heranças") focalizam essa temática. Nas pegadas de autores como Jean-Luc Donnet, Emiliano Galende e Otto Kernberg, são discutidos fatores da organização institucional e dos processos de formação que inibem a criatividade do estudante, em particular os que advêm da interferência da instituição na análise pessoal dele. Entre os efeitos negativos dessa ingerência, o mais grave é a criação de um lugar de "surdez institucionalizada" (p. 394) ali onde interesses do candidato, do seu analista ou da instituição podem se chocar com os objetivos da análise.

À tensão assim produzida entre a análise pessoal e o controle institucional vem se somar, segundo Silvia, a que se instaura entre os desejos de "conhecimento" e de "reconhecimento", este último da parte dos colegas, mas também no seio da sociedade em sentido amplo. "A forma como a instituição responde ao desejo de reconhecimento é fundamental para o sucesso da construção do analista", conclui, observando que tal construção tem melhores chances de ocorrer se a instituição se propuser como um espaço de encontro e de trocas que "propiciem elaborações significativas e não-alienantes" (pp. 398-402).

Uma fina análise dos ideais complementa esta visão a um tempo ética e política da vida institucional. Aqui se mostra útil o estudo das etapas da constituição subjetiva, pois é da passagem do "eu ideal" ao "ideal do eu" que se trata. Ou seja: da fusão à autonomia, do "aprisionamento nos fantasmas dos outros" (p. 406) à possibilidade de pensar e sentir por si mesmo, e de constituir projetos, o que exige investir o tempo futuro como aquele no qual estes poderão tomar corpo e também conceber-se como fonte dos atos capazes de traduzi-los em realidades concretas.

Silvia examina o "tripé" da formação, e soe cada uma das "pernas" tem algo importante a nos dizer. Em resumo, afirma que:

a) a superação de conflitos e resistências (em especial narcísicas) graças à análise pessoal permite ao futuro profissional "tornar-se suporte das transferências dos seus analisandos" (p. 409);

b) a supervisão deve conduzir à formação de um "pensamento clínico" e ao hábito da troca significativa com colegas;

c) quanto ao estudo da teoria, é taxativa - "não se pode sustentar uma clínica a não ser com base num exaustivo conhecimento da metapsicologia na qual se apoia a escuta, e que, a posteriori, nos permitirá entender os efeitos produzidos pelo trabalho de interpretação" (pp. 412-413).

Daí a importância de estudar os conceitos no contexto histórico e teórico no qual surgiram, de modo a compreender a que questões procuravam responder, como foram recebidos e eventualmente criticados, quais são sua utilidade e seus limites - em suma, de modo a evitar que se convertam em dogmas aos quais se adere porque se tornaram pilares da identidade do analista, em vez de ferramentas para pensar.

A referência à origem das ideias no embate com a clínica e no debate entre os analistas que vieram antes de nós é central no argumento de Silvia ainda por outra razão: a necessidade de elaborar o "conflito geracional", que reproduz, no plano da formação analítica, o luto pela ilusão de que o pai é todo-poderoso e imortal (p. 417). Assim como o indivíduo precisa deixar para trás as idealizações infantis, o analista deve ser capaz de integrar e superar as identificações que marcaram o início do seu trajeto no métier. Elas - e o restante do que recebeu como "herança" - vão estar presentes no seu "mosaico identificatório", como aspectos do seu modo de ser analista, como ideais próprios e escolhidos com critério, como sustentáculos da sua mobilidade psíquica: "o que recebeste dos teus pais, apropria-te dele para tornar teu", na frase de Goethe.

É esta concepção exigente do que significa "ser analista" que fundamenta a visão de Silvia em várias questões, da diferença entre Psicanálise e psicoterapias - pois converge com o que diz soe a ética do "não ser guru do analisando" - às suas intervenções nos debates internos do Departamento de Psicanálise do Sedes, nos quais (como recorda na entrevista mencionada atrás) busca manter sempre aberto o espaço da troca e das "elaborações significativas". Herança, como se vê, dos seus tempos de formação na efervescência do ambiente argentino dos anos setenta, da qual ela se "apropriou", e que veio a se constituir no fundamento da sua prática e da sua reflexão.

 

3. O feminino

Um exemplo dessa apropriação que conduz à autonomia está no modo como nossa autora aborda a temática do feminino. Sensibilizada para ela pelas ideias de Marie Langer e pelo trabalho numa maternidade portenha sob a orientação de Armando Bauleo, Silvia a mantém no seu horizonte há quarenta anos, e desde 1997 coordena no Departamento de Psicanálise do Sedes um grupo de pesquisa soe o feminino, no qual, pelo que se depreende dos seus escritos, vem colocando em prática o que acredita dever ser um "espaço de trocas" e uma forma não-alienante de estudar e de transmitir a psicanálise.

Sabe-se que o feminino foi a "porta" pela qual Freud entrou para inventar a psicanálise, porta, aliás, escancarada pelas suas "geniais histéricas". Para compreender o que estas lhe diziam e poder intervir com algum sucesso na economia psíquica que engendrava os sintomas, foi criando os conceitos fundamentais da disciplina, e não cessou de refiná-los até os últimos dias da sua existência: pulsão, sexualidade (no sentido psicanalítico), aparelho psíquico, transferência, e assim por diante.

Contudo, mesmo um pensador do seu quilate não poderia escapar por completo ao contexto ideológico e cultural da época. No caso do feminino, se por um lado efetuou rupturas "fundamentais" em relação às ideias então predominantes, por outro algumas delas se mantiveram como "fios na sua teorização", o que faz dela, diz Silvia enfaticamente, "um pensamento não homogêneo, apresentando impasses e contradições" (p. 301).

Mas, à diferença daqueles para quem tais equívocos invalidam as formulações freudianas soe o tema, Silvia não está disposta a jogar fora o bebê junto com a água do banho. Sem complacência com algumas delas - que julga serem "mais sintoma do que teoria" (p. 15) segue passo a passo o percurso de Freud, para nele "garimpar" o que tem valor clínico e metapsicológico,4 e pensar a partir daí - procedimento, segundo ela, indispensável no estudo de qualquer sistema de psicanálise (p. 303).

Uma vez removido o que bem se poderia chamar de "entulho falocentrista", descortina-se o que para nossa autora é o essencial da contribuição freudiana: o ter abandonado as fabulações poéticas soe uma suposta "essência do feminino" em proveito de algo passível de ser investigado com os instrumentos da psicanálise, a saber, o processo pelo qual um bebê "perverso-polimorfo" evolui até se transformar numa mulher. As descobertas de Me-lanie Klein soe a intensidade da ligação arcaica da menina com a mãe - que Freud levou algum tempo para assimilar, mas, com a integridade intelectual que o caracterizava, acabou por reconhecer serem corretas - o levam a falar de uma fase pré-histórica do Édipo como essencial no sinuoso trajeto do "devir mulher". Tema, aliás, explorado em profundidade pelos autores pós-freudianos, que, no entanto não chegaram a um consenso, dividindo-se entre adeptos do "falocentrismo" e partidários da "concentricidade" (pp. 309-310).

Do estudo dessa volumosa literatura, que começa nos anos 1930 e estende-se até os dias atuais, Silvia extrai a pergunta que lhe serve de bússola:

como pensar o sentir e o gozar femininos, incluindo a realidade anatômica e as experiências que dela se desprendem, assim como as intensidades pulsionais correspondentes., sem que isso implique na derrocada do reconhecimento da mediação fálica na constituição do sujeito sexuado, ou sem deixar de lado os determinantes culturais? (p. 310)

Cada termo desta formulação tem seu peso e seu papel na delicada tapeçaria que ela tece nos capítulos centrais do livro. A complexidade do vínculo mãe-filha é ilustrada com a análise do filme de Bergman Sonata de outono, num texto cujo título é um dos seus melhores achados ("A filha não-suficientemente boa"). Dele destaco um tema que ganhará todo o seu relevo nos artigos soe a histeria: a captura da filha na teia do narcisismo materno, com o cortejo de sentimentos ambivalentes e carências identitárias que isso provoca. Tal situação tornará difícil, senão impossível, a travessia desde a ligação pré-edípica dos primeiros tempos até a autonomia da adulta - em particular durante os anos conturbados da adolescência - já que, como Danièle un, Silvia pensa que "o feminino é uma conquista contra a mãe" (p. 333).

Subsidiando essa tese com fragmentos clínicos extraídos da sua prática e de autoras francesas, ela conclui que "o materno dessexualizado, desfeminilizado, cria um fechamento mortífero que impede o surgimento do feminino também na filha" (p. 338). Mas não é sempre que se dá um destino tão funesto. Nos casos favoráveis, as identificações secundárias possibilitadas por um vínculo menos fusional aem caminho para o "tornar-se mulher"; nesse percurso, o papel-chave cabe à mãe, que, sem se impor à filha como a aranha que "visitava" as sessões da analisanda L., é capaz de a erotizar com seus cuidados e com seu amor, permitindo-lhe atingir "formas singulares de subjetivação e caminhos possíveis de criação" (p. 339).

Cabe aqui uma observação de caráter metodológico, ou talvez epistemológico. A maneira como Silvia trabalha com os conceitos metapsicológicos (magistral, diga-se de passagem) tem como modelo o modus operandi de Freud: um processo ou mecanismo de início detectado em determinada área do psíquico vai sendo paulatinamente reconhecido em outras, o que lhe confere alcance muito mais amplo que o dos seus modestos começos.5

O efeito da sedução materna entra nessa categoria: a "experiência passiva" (na qual o sujeito é objeto da ação de um outro) foi primeiramente postulada no campo da psico-patologia, no qual tinha como determinante a sedução da futura histérica por seu pai. Em seguida ("Três ensaios"), Freud a situa no terreno da sexualidade em geral, atribuindo à mãe a função de despertar o investimento libidinal da criança em objetos não-autoeróticos. Mais adiante, ela reaparece na melancolia (a "soma do objeto caindo soe o ego"), até ganhar toda a sua amplitude na esfera da constituição do sujeito, agora como primeira peça no mosaico das identificações.

A análise da evolução da menina, como se vê, retoma num exemplo particular as mesmas ideias que já encontramos nos capítulos soe os tempos psíquicos e soe a construção do analista. Nisso Silvia acompanha uma tendência que se tornou predominante na Psicanálise pós-freudiana: a que, sem descartar os movimentos pulsionais do sujeito, evita considerá-los apenas como endógenos, e vê no objeto não somente o alvo da pulsão, mas ainda o desencadeador dela. Sob o nome de "teoria das relações de objeto", essa tendência aiga variantes como as de Laplanche ("significante enigmático", "objeto-fonte da pulsão"), de Winnicott (a "mãe suficientemente boa"), de Piera Aulagnier (a "violência da interpretação"), de Bion (a mãe que devolve à psique do filho os elementos alfa metabolizados em beta), e assim por diante, inclusive na teorização do processo terapêutico (por exemplo, a ideia de "dimensão metafórica da escuta" proposta por Pierre Fédida, na qual se inspira a leitura oferecida por Silvia da função analítica).

 

4. a histeria

Mas voltemos à questão do feminino, que para nossa autora não se reduz à vicissi-tudes da dupla mãe-filha, já que ambas existem numa cultura na qual o "ser mulher" está determinado por fatores que transcendem o psíquico, sendo como são de natureza social.

Não é um dos menores méritos do livro de Silvia o de chamar insistentemente a atenção para os aspectos culturais que incidem soe a vida emocional do indivíduo, e contribuem em medida nada desprezível para moldá-la. Sob a denominação genérica de "mal-estar civilizatório", ela se refere com frequência a características bem conhecidas da sociedade atual, que em seu entender não podem ser ignoradas pelo psicanalista - pela boa e simples razão de que são diretamente responsáveis pelas formas que tomam a subjetividade e o sofrimento psíquico nos dias de hoje.

É nas páginas 340 e seguintes, a propósito dos "mitos soe a maternidade", que encontramos as formulações mais amplas e precisas soe esse tema. Retraçando a trajetória que no século XIX conduziu à identificação do feminino com o materno, e a partir de meados do século XX ao rompimento dessa equivalência, ela introduz as dimensões culturais indispensáveis para entender a condição feminina na atualidade: "a estética imposta pelo mercado da moda, os corpos magérrimos, a domesticação imposta das formas corporais e a preocupação com a imagem" (p. 344).

Sem deixar de lado os processos sociais mais amplos que estão na base desses fatores - o consumo como motor do capitalismo em sua forma atual, a espetacularização da vida, a onipresença do tópico "corpo saudável" no discurso médico (inclusive graças às tecnologias da imagem, que tornaram corriqueira a visão do interior do organismo), a retomada desse discurso na mídia, a conversão do corpo em sustentáculo da identidade pessoal, e outros - Silvia se volta para os efeitos disso tudo na psique feminina. E, preocupada em não fazer da Psicanálise uma aia da Sociologia, estabelece um princípio metodológico que situa em seu lugar o papel da cultura no nosso campo:

se quisermos inserir a cultura na causalidade psíquica, [devemos tomá-la] como o mal-estar civilizatório que predomina neste momento da história e que participa na organização dos arranjos pulsionais, outorgando-lhe uma "forma", e não como mero estímulo (a moda) que produziria uma resposta (os sintomas). Tanto a hipótese biologista como a sociogenética deixam de fora o campo da sexualidade, os caminhos pulsionais e desejantes, as vicissitudes do tornar-se mulher, que é o que mais nos interessa como analistas.6 (p. 352)

De modo geral, a sociedade contemporânea impõe aos sujeitos exigências de desempenho muito superiores às que eles podem tolerar, tanto como atores sociais quanto no que tange à auto-imagem. As consequências disso são dramáticas: o narcisismo é submetido a duras provas, engendrando conflitos identificatórios, agudas vivências de desamparo, o recurso frequente a mecanismos de defesa arcaicos como a cisão e a projeção, atuações impulsivas, a busca de marcas que sirvam como "bordas do ego", inclusive na superfície corporal (piercings, tatuagens, cirurgias plásticas etc). A "devoração pelas imagens" (p. 71) favorece o empoecimento da vida interior, e, em conjunto com os aspectos mencionados, contribui para a fragilização do ego, talvez a característica mais saliente das diversas patologias ditas "novas", e que segundo alguns tornariam obsoletos os modelos freudianos, supostamente operativos somente no campo das neuroses "clássicas".

Aos que assim pensam, Silvia opõe uma enfática negativa, e a apoia com um estudo aprofundado das formas contemporâneas da histeria. Este é, a meu ver, o ponto alto da sua coletânea, e, para concluir essas observações, gostaria de me deter um momento no que ela tem a dizer soe o assunto.

O ponto de partida é a ideia de que as "apresentações" das histéricas variam conforme a época e o lugar social, mas todas mantêm o que caracteriza essa estrutura psico-patológica: "a expressão pelo corpo daquilo que não pode ser dito" (p. 174). Opondo-se à eliminação da histeria na classificação do dsm, nossa autora demonstra que a concepção freudiana conserva todo o seu interesse, se a ela incorporarmos os elementos que especificam a época atual.

A "plasticidade identificatória" e a "intensa atividade de fantasia" da histérica a convertem num "radar" tanto do mais manifesto quanto do mais recalcado no meio social em que vive (p. 192-193): na era pós-moderna, isso a torna particularmente sensível às imagens e aos ideais veiculados pela mídia, que parecem ofertar meios infalíveis de obter o que mais almeja - o amor do outro. Nisso, ela não se distingue da Dora absorta na contemplação da Madonna Sixtina no museu de Dresden7 - apenas, no lugar de uma pintura renascentista, o que fascina a histérica do nosso tempo é a silhueta esguia da top-model, ou os opulentos seios que supostamente despertam o desejo masculino.

É assim que Silvia compreende uma das manifestações mais impressionantes da histeria contemporânea: os ditos "transtornos alimentares" (p. 349 ss.). Muito mais do que uma oralidade mal resolvida, o que ela discerne na anorexia e na bulimia é a presença sinistra de um Outro aprisionador e/ou invasivo - e aqui voltamos à díade mãe-filha. Trata-se, diz ela, de patologias da identidade e da sexualidade, potencializadas pela fragilidade egoica de filhas enredadas no narcisismo maligno das suas mães (p. 353 ss.). Os sintomas frequentemente gravíssimos que encontramos nessas afecções podem ser compreendidos como tentativas de "encontrar soluções para os enigmas da feminilidade" (p. 352): o ideal da magreza está ligado à liberação sexual, que desvinculou o modelo de beleza das formas "mais redondas" almejadas por nossas avós, que viam na maternidade a realização suprema da mulher.

É preciso ler com atenção essas páginas, nas quais se fecha o círculo da argumentação desenvolvida ao longo de todo o livro. Metapsicologia, clínica e dialética entre ambiente social e existir psíquico são aqui trançadas num tricô conceitual em que as agulhas se movem com agilidade e precisão.

As mãos que as seguram são as mesmas que, décadas atrás, folhearam as páginas da edição castelhana de Freud. Talvez o mais fundamental do que Silvia absorveu naquela época esteja concentrado na conceituação do psicanalista que transcrevo para encerrar estas considerações:

Psicanalista é aquele que se analisou o suficiente para criar as condições de autonálise demandadas pela prática clínica; que submeteu sua clínica à supervisão, visando a adquirir recursos para suportar as transferências, e que estudou bastante metapsicologia para conseguir perguntar o que está em jogo nos fenômenos clínicos a ele apresentados. Com base nisso, coloca-se como necessidade incontornável para sua prática ... que tenha criatividade suficiente para manter funcionando a situação analítica, na singularidade de cada realidade clínica. (pp. 168-169)

Bauleo, Langer, Barenblitt e outros protagonistas daquele período concordariam, sem dúvida, com tais palavras. Elas expressam com elegância o valor supremo na escala ética legado por eles à geração que formaram, e que norteia nossa autora nas várias dimensões da sua prática: o compromisso com a singularidade e com a autonomia do pensamento, tanto para si como para o outro.

A presença de dois termos em cada uma dessas fórmulas não é casual: ambos são faces da mesma moeda – e, a meu ver, essa é a lição mais preciosa entre as tantas que o leitor encontrará nos escritos de Silvia Alonso.

 

 

Correspondência:
Renato Mezan
[Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP]
Rua Amália de Noronha
198 05410-010 São Paulo
rmezan@uol.com.br

Recebido em 5.9.2011
Aceito em 4.10.2011

 

 

1 Cf. "A construção do analista", entrevista publicada no número 27 de Percurso, 2° semestre de 2011, p. 127-138 (disponível em www.uol.com./percurso. Soe essa época da Psicanálise argentina, cf. Marie Langer et alii, Questionamos I (Buenos Aires, Granica,1971) e Cuestionamos II (mesma editora, 1973).
2 Os termos e expressões entre aspas, ou em destaque, no decorrer deste artigo são citações literais.
3 "Os patos-cisnes", conto russo analisado por Vladimir Propp. Cf. Monique Schneider, "Le temps du conte et le non-temps de l’inconscient", Recherches sur laphilosophie du langage, Université de Grenoble II, n. 1, 1981, p. 1539.
4 Entre as ideias de Freud com as quais não concorda, figuram algumas que têm sentido como teorias sexuais infantis da menina, mas que por vezes ele toma como se fossem "realidades concretas e universalizadas": a "não-aceitação do fato da castração", a "inferioridade orgânica", a "inveja do pênis" como pivô da sexualidade da mulher adulta, etc. (cf. p. 302 ss.).
5 É o caso, entre outros, do narcisismo (do "Caso Schreber" até "Para introduzir o narcisimo"), e da censura moral (de "A interpretação dos Sonhos" até a noção de superego apresentada em "O ego e o id").
6 Esse mesmo cuidado com a dialética entre o social e o psíquico guia a esclarecedora análise do conceito de gênero, introduzido na psiquiatria por John Money e que Richard Stoller foi o primeiro a utilizar na Psicanálise (p. 313 ss.).
7 Cf. o segundo sonho de Dora: uchstuck einer Hysterie-Analyse, Studienausgabe, Fischer Verlag, Frankfurt, 1971,vol. VI, p. 164; Análisis Fragmentario de uma Histeria, Biblioteca Nueva, Madrid, 1975, vol. I, p. 986.