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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.2 São Paulo abr./jun. 2012

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: PASSAGENS I - ENTRE O MODERNO E O CONTEMPORÂNEO

 

Uma questão de imagem: Uma situação clínica e os primórdios do modernismo Brasileiro1

 

A matter of image: A clinical situation and the beginning of Brazilian Modernism

 

Una cuestión de imagen: Una situación clínica y los orígenes del Modernismo Brasileño

 

 

Silvana Rea

Graduada em cinema pela Faap e em psicologia pela PUC-SP, mestre e doutora em Psicologia Social pelo IP-USP, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

Correspondência

 

 


RESUMO

a partir de um caso clínico, os movimentos associativos da autora dirigem-se à artista plástica Anita Malfatti, precursora do modernismo brasileiro, e às suas relações com Monteiro Lobato e Tarsila do Amaral.

Palavras-chave: Anita Malfatti, anorexia, arte moderna, modernismo, psicanálise.


ABSTRACT

This work stems from a clinical situation by which the author associates to the artist Anita Malfatti, a precursor of the Brazilian modernist movement, and her relationship with Monteiro Lobato and Tarsila do Amaral.

Keywords: Anita Malfatti, anorexia, modern art, modernism, psychoanalysis.


RESUMEN

Partiendo de un caso clínico, las asociaciones de la autora se dirigen a la trayectoria de Anita Malfatti, precursora del Modernismo brasileño, y sus relaciones con Monteiro Lobato y Tarsila do Amaral.

Palabras-clave: Anita Malfatti, anorexia, arte moderno, modernismo, psicoanálisis.


 

 

I

A cultura produz e veicula imagens que significam e revelam momentos históricos em suas diferentes sensibilidades. São imagens que confirmam nossa relação com o mundo e ao mesmo tempo modificam as relações de cada um consigo mesmo e com a própria cultura. Nas sociedades contemporâneas, o culto do tempo presente do consumo, entre outros, leva à emergência de uma cultura narcísica, centrada no eu (Lasch, 1986), ou no colapso do sentido de si, presente em nossas clínicas com diferentes faces.

A psicanálise, na visão de Winnicott, considera a imagem como constitutiva do self primário, pois “antes de ser um si mesmo, a criança é imagem de si mesma” (Luz, 1998, p.180). Ou seja, o início do sujeito em sua primeira formação identitária dá-se pela imagem que aparece refletida no olhar materno.2

Recebo em meu consultório a voz pálida e emagrecida de Joana, que a mim se apresenta como alguém que se sente muito feia. Com questões ligadas à anorexia, ela me conta que a mãe, miss adolescente em sua cidade natal e com problemas de sobrepeso quando adulta, sempre se preocupou com o possível engordar da filha. “Desde muito cedo entendi que não seria aceita nem gostada se fosse como sou”, diz ela. “Não gosto do meu corpo”.

Ora, o ego é corporal, como já afirmava Freud (1925/1969). Mas para o sujeito contemporâneo, o corpo integra-se na identidade, a ponto de eles se tornarem identificados. Em um mundo abstrato e de relações virtuais, é o corpo que nos dá alguma certeza sensorial, constituindo formas do falar humano (Eagleton, 1998). No caso de Joana, a fala de um corpo inaceitável, um corpo como lugar em débito porque distante de um ideal (Miranda, 2001). Como lamenta: “por que não sou igual a minha mãe? Minha mãe é linda. E eu sempre me senti muito feia por não atender à expectativa dela”.

Ela faz grande esforço para corresponder a uma imagem idealizada. Uma imagem de corpo que a nossa cultura valoriza. Mas também uma imagem que atenda ao espelhamento materno, fusional e narcísico. Ao ser olhada pelo olhar autorreferente da mãe, que engordava e se via na filha, Joana não pôde ser vista. O reflexo que mirava não a refletia, dificultando a formação de um sentimento identitário anunciado pela diferença. Um espelhamento opaco, portanto, que rejeita quem ela é, pois nos olhos maternos Joana só pôde perceber o próprio rosto da mãe.

Aprisionada nesse espelho cego, ela sucumbe à rivalidade feminina, uma competição à qual se sente fadada a perder. Isso porque nos estágios iniciais é fundamental que a mãe empreste o seu ser ao bebê, para que ele o sinta como criação sua (Forlenza Neto, 2007). Mas aqui, ao rivalizar com a filha, a mãe o recusa narcisicamente, favorecendo uma relação que pode virar uma guerra contra a feminilidade presente na anorexia (Miranda, 2001).

Comigo, Joana debate-se na construção de uma forma identitária. Ora, é na modernidade que a problemática ligada à emergência do sujeito inicia-se. Ou seja, a noção de identidade é uma invenção moderna, resultado da perda das certezas de fundo religioso e da busca por uma nova autocompreensão humana (Henkmann & Lotter, 1998). É o nome dado à fuga da incerteza provocada por essa abertura (Bauman, 2001), ainda que a partir do século XX a noção de uma identidade fixa e externamente evidente tenha se dissolvido.

Privilegiarei, portanto, esses dois aspectos que brotam da nossa experiência analítica: o espelhamento opaco e a rivalidade feminina. E, tomando o paradigma tradição-invenção3 para essa situação clínica, surge o questionamento: como essa paciente, aprisionada ao universo da tradição materna, poderia criar algo original que sentisse como seu? Essa indagação remeteu-me ao modernismo brasileiro e à figura emblemática de Anita Malfatti, que em minhas associações surge na rede de olhares que a ligam a Monteiro Lobato, inicialmente, e depois a Tarsila do Amaral, respeitando o eixo que se origina da clínica: ser olhada por um espelho que não reflete e a competição feminina.

 

II

Só podemos entender qualquer movimento artístico no contexto de alguma tradição, ainda que seja para destruí-la. O moderno na arte, por um lado, apoia-se na tradição do romantismo alemão, em sua busca por uma expressão individual e no valor do papel da imaginação como realização da liberdade e do potencial (Harrison, 2001). Por outro, coloca-se em oposição às tradições do academicismo e do naturalismo, desde o século XVIII comprometidas em agradar ao público burguês. A proposta modernista rejeita a preocupação de conectar a aparência da obra com a do mundo natural, tão cara à arte acadêmica e naturalista. Pelo contrário, a arte moderna inventa uma nova maneira de fazer e pensar arte, organizando formas, cores e materiais em combinações inusitadas, usando a arte para chamar a atenção para a própria arte. Um quadro modernista é antes de tudo um quadro.4 É o que nos apresentam as vanguardas históricas: cubismo, surrealismo, expressionismo e suprematismo russo.

O modernismo, desse modo, propõe uma ruptura com a cultura burguesa e seus critérios de gosto. Mas no Brasil do fim do século XIX e início do XX, a situação tem peculiaridades.

Naquele momento, com a abolição da escravatura e o aporte de imigrantes europeus, São Paulo inicia seu processo de industrialização e de construção da capital, contratando profissionais estrangeiros (Amaral, 1972). A cidade perde suas feições de província de passado pobre: o comércio, a indústria, as relações sociais, a língua falada nas ruas, compõem um perfil de cidade cosmopolita e próspera. O Viaduto do Chá, em 1888, já deslocara o centro em direção aos casarões da Avenida Paulista, inaugurada em 1891 (Fonseca, 2007).

Porém, a rapidez da construção de uma modernidade urbana não foi acompanhada pelo investimento correspondente nas artes. A Pinacoteca do Estado foi aberta apenas em 1905 com a função de expor a produção do Pensionato Artístico, programa de bolsas de estudo para a residência de artistas brasileiros em Paris, cuja avaliação centrava-se em critérios acadêmicos (Fabris, 1994). Fomento tutelado pelo senador Freitas Valle, cujo palacete, a Villa Kyrial, é centro intelectual e artístico, com jantares às quartas-feiras e almoços aos domingos, sempre regados a champanhe, discussões calorosas e cardápios em francês (Amaral, 1972).

O ambiente cultural paulistano, desse modo, era gerido pela elite, que para tal se associava ao Estado. A aristocracia rural e a alta burguesia urbana estavam por trás de todas as grandes experiências artísticas entre 1900 e 1922, inclusive a própria Semana de Arte Moderna - idealizada pelo pintor e jornalista Di Cavalcanti e por Paulo Prado, intelectual da aristocracia rural formado em Paris, quando sua esposa, D. Marinette, sugere um evento parecido com Deauville5 . Agendada como comemoração do centenário da Independência, a Semana também contava com participantes da burguesia entre seus artistas, como Osvald de Andrade e Guilherme de Almeida (Chiarelli, 1995).

Portanto, diferentemente da tendência mundial, o modernismo brasileiro é uma manifestação artística de elite, ainda que Di desejasse uma semana de escândalos para “meter estribo na burguesiasinha paulistana” (Amaral, 1972, p.123). Posição paradoxal, uma vez que, ao mesmo tempo em que o movimento é regido por um intenso espírito destruidor do passado, ele é apoiado pela tradicional oligarquia dominante, único grupo com condições para acompanhar o que ocorria na Europa e que estimulava reformulações radicais, desde que restritas ao campo estético, evidentemente (Amaral, 2003).

A Semana de 22 foi o marco oficial de rompimento com o passadismo acadêmico e naturalista. Mas, reconhecidamente, Anita Malfatti é a precursora do movimento modernista, antecipando-o em cinco anos na “Exposição de pintura moderna Anita Malfatti”, em dezembro de 1917. É diante da obra O homem amarelo,6 que Mario de Andrade, após uma reação de riso incontido, desperta para o modernismo, adquirindo a tela posteriormente (Amaral, 1972; Batista, 2006). A exposição é a pedra fundamental da apresentação da arte moderna brasileira.

 

III

Anita é filha de um engenheiro civil italiano e republicano, que imigra por motivos políticos. Pela parte materna, descende de alemães. Ela nasce com uma atrofia no braço direito, traço identitário cuja imagem é construída por um sentido mítico: sua mãe, grávida, ao recusar esmola a uma aleijada, é tocada no braço por ela sob o efeito de uma maldição. O que obriga a filha a desenvolver habilidades com a mão esquerda e a usar por toda vida, como marca registrada, um lenço amarrado na mão direita.

Com a morte prematura do pai, a matriarca sustenta precariamente a família com aulas de pintura, atividade que até então enriquecia suas prendas domésticas. Anita também dá aulas, mas, com a ajuda financeira do colecionador de arte, tio e padrinho Jorge Krug, parte para uma temporada de estudos na Alemanha. Ela chega a Berlim em 1910, onde viveria os anos de amadurecimento do expressionismo.

Quando volta a São Paulo em 1914, inicia-se um percurso de espelhamento cego. Primeiramente a família entende que a experimentação de suas obras é fruto da falta de aperfeiçoamento técnico. Ela organiza uma mostra para pleitear a bolsa do Pensionato Artístico, mas sem sucesso, pois Freitas Valle considera seu desenho fraco e um carnaval de cores.

Então, em 1915, novamente financiada pelo tio, Anita parte para Nova York, centro de renovação intelectual e artística. É esse o ambiente que respira na Independent School of Art, escola que prega o posicionamento livre do artista. Lá, firma sua linguagem expres-sionista e produz suas obras primas, como A boba e o próprio Homem amarelo. Diz ela: “achei a escola que tanto desejara encontrar na vida” (Malfatti, citada por Batista, 2006, p.123).

Em 1916, retorna a São Paulo, que a rejeita mais uma vez. Sua produção contraria as expectativas da cultura e da sua família. Jorge Krug impede a entrada das obras “dantescas” em sua residência, a mãe e os irmãos silenciam. Uma transgressão inadmissível.

Cabe aqui pensar na relação de espelhamento opaco, que já se iniciara em seu retorno da Alemanha. Se o rosto materno inaugura a aparição imagética da criança no mundo, se o olhar da mãe a reflete até que ela possa se “ver como outro de si mesmo” (Ogden, 1996, p. 49), a cultura como espelho também oferece a oportunidade de ser vista para poder se reconhecer na diferença (Luz, 1998). O ambiente - mãe ou cultura - tem importância fundamental na emergência do sujeito, quando, na superfície de reflexão, o bebê vive a experiência de ser. E “ser” na imagem é a base da posterior experiência do fazer criativo, quando na distância entre a mãe e a criança, que se inicia no momento transicional, cria-se o espaço de inscrição do gesto espontâneo no mundo. E essa distância, preenchida pelo gesto inventivo de Anita nas experiências em Berlim e Nova York, não pôde ser aqui reconhecida. Diante dessas obras, na “Exposição de pintura moderna Anita Malfatti”, o escritor e crítico Monteiro Lobato e a artista se encontram e se abalam.

 

IV

Anita era leitora dos artigos de Lobato, que considerava avançados, uma vez que ele rompia a tradição da escrita sobre arte pelo uso de linguagem humorística e dessacralizadora. Já o crítico a conhecia desde o concurso que organizara sobre o Saci, quando, sem meios para entender a tela da artista, apesar de reconhecer o talento, a expõe como hors concours (Chiarelli, 1995; Batista, 2006).

Isso provoca certo interesse e Anita ganha visibilidade no meio cultural mais amplo. E assim, a abertura da mostra de 1917 desperta curiosidade e tem uma visitação expressiva.

Mas, novamente, o espelho que não reflete a surpreende. Dias depois, o artigo de Lobato “A propósito da exposição Malfatti”, ou “Paranoia ou mistificação?” apresenta a arte moderna como uma farsa produzida por olhos doentes, diferentemente da “arte normal”, que é regida por leis de proporção e de equilíbrio, como uma cópia fiel da natureza ou do modelo. O artigo exerceu forte influência, pois o público passa a reagir às obras com risos e insultos. A exposição vira um escândalo público, quadros comprados são devolvidos e sofrem um atentado a bengaladas. Ela perde alunas e, em 1919, vai estudar com o acadêmico Pedro Alexandrino, produtor de uma arte aderida à realidade (Batista, 2006).

Interessante pensar que o impacto da exposição de 1917 leva tanto Anita quanto Lobato em direção a Pedro Alexandrino. Seria uma busca pela forma conhecida da tradição como uma estabilidade após o impacto do novo? Ela estaria tentando corresponder a uma imagem imposta para ser reconhecida? Quanto a ele, é sabido que em contato com a arte moderna pelas mãos de Anita, perde a convicção nos seus critérios estéticos e fica inseguro para voltar a escrever crítica de arte. Até então, para Lobato, o moderno era o naturalismo que sai dos ateliês para captar ao ar livre o ambiente cotidiano. Ele, que se posicionara contra a tradição acadêmica, escreve sobre Alexandrino, o mestre das naturezas mortas. Ele, que até então era moderno em sua crítica, elogia Alexandrino como uma resposta genuinamente paulista às importações de artistas imigrantes (Chiarelli, 1995).

Pedro Alexandrino, portanto, surge como defesa ao valor que permeia a crítica loba-tiana: o nacionalismo e o resgate da cultura brasileira. Para Lobato, São Paulo é uma cidade “que mente à terra”, invadida por uma horda de estrangeiros e pelo francesismo tão ao gosto da elite, como os cardápios da Villa Kyrial. O Pensionato, por sua vez, criava macacos imitadores, artistas “brasileiros na carne que ficavam europeus de espírito”. Seu programa crítico propõe uma arte comprometida com a realidade agrária: o campo e a roça. Nesse contexto, a experiência de Anita é um exemplo negativo de arte brasileira (Chiarelli, 1995, p.236). Diante de suas obras, Lobato perturba-se em seu sentimento identitário. E, sem parâmetros, conclui: só pode ser loucura.

Mirada pelo olhar autorreferente de Lobato, que visa entender a arte moderna a partir do naturalismo, Anita dedica-se, nesse momento, à atividade de aluna e professora. Como diz Mario de Andrade, ela virou “maldita” (Batista, 2006).

 

V

Foi no ateliê de Alexandrino que Anita conheceu outra aluna, que se iniciava nas artes plásticas: Tarsila do Amaral.

Diferentemente de Anita, Tarsila é filha de barões do café e neta de “o milionário”, fazendeiro de incalculável fortuna, dono de mais de 400 escravos. Nascida e crescida na fazenda, ela conta que passava o dia como uma cabrita e, ao voltar para casa, encontrava a mãe ao piano Steinway, jantava sopa Julienne com legumes secos importados da França, acompanhada por um bom Château-Laffite e água de Vichy. Para sua educação, contava com mademoiselle Marie, professora belga que morava na propriedade.

Tarsila, portanto, vem da elite cafeeira e se interessa por arte no período em que foi interna no colégio Sacrè Coeur de Barcelona. De volta ao Brasil frequenta o ateliê de Pedro Alexandrino, onde conhece Anita, recém-saída do confronto com Lobato. Tarsila, que considerara a “Exposição de pintura moderna Anita Malfatti” “desagradável”, aproxima-se dela, mantendo correspondência íntima com a amiga, quando, em 1920, parte para uma temporada de estudos em Paris. É por seu intermédio que acompanha de longe as polêmicas que os modernistas protagonizavam, ainda que não compartilhasse do “entusiasmo destrutivo em relação ao passado”. De volta ao Brasil, encontra São Paulo em plena efervescência pós-Semana de 22 (Amaral, 2003, p. 61).

Anita, então, apresenta-a aos amigos Menotti Del Picchia, Osvald e Mario, que se entusiasmam com a beleza e a elegância de Tarsila (Amaral, 2003). Apesar de sua resistência ao modernismo, ela é bem aceita: todos se apaixonam pela sinhazinha (Amaral, 2003).

As duas pintoras tornam-se inseparáveis e o grupo se autodenomina Grupo dos Cinco, com encontros frequentes no ateliê de Tarsila, que vai conhecendo as ideias que rejeitara. Estuda e revê a pintura de Anita. E ela, que não aprovara anteriormente o expressionismo da amiga, adota-a como modelo de modernização e aos poucos muda o próprio jeito de pintar (Amaral, 2003).

Inicia-se, portanto, uma nova situação de espelhamento, agora entre as duas artistas. Era comum que elas trabalhassem simultaneamente sobre o mesmo tema, como os maços de margaridas enviados ao ateliê por Mario de Andrade.

As reuniões do Grupo dos Cinco e as obras individuais elaboradas concomitantemente sugerem a ideia do trabalho artístico realizado como o de uma criança que brinca sozinha na presença de alguém, integrando em si algo do mundo, para que possa utilizá-lo à sua maneira. E se esse alguém disponível é tomado pela criança, ou pelas artistas, como um espelho vivo capaz de refletir o que se passa na brincadeira, inaugura a possibilidade de distinguir entre isolamento e comunicação, solidão e presença, identidade subjetiva e alteridade cultural (Luz, 1998).

Nesse clima, no dia 9 de outubro, por ocasião do aniversário de Mario, elas produzem retratos do amigo. E na mesma data cada uma se dedica ao seu autorretrato (Figura 1). Ora, o autorretrato é tradição na história da arte, ainda que ele rompa a relação tradicional do modelo e do artista, misturando na mesma experiência sujeito e objeto, ver e fazer, construir a si mesmo na visibilidade e se inaugurar como elemento da cultura, questões tão caras para os estágios iniciais do homem. Ele possibilita o olhar-se a partir do próprio espelhamento. Mas, se feitos ao mesmo tempo, cada autorretrato permite o olhar-se a partir do espelhamento que o outro faz de si mesmo.

Essa experiência é interrompida quando o Grupo dos Cinco dissolve-se no fim de 1922, com a partida de Tarsila para Paris. Sem condições econômicas, Anita permanece em São Paulo até obter, pela primeira vez, a bolsa do “acadêmico” Pensionato Artístico (Batista, 2006).

Lá, Tarsila e Osvald já estão juntos. Ele, sustentado pelo loteamento de sua chácara para a Companhia City Cerqueira César (Fonseca, 2007), é fundamental para a carreira da pintora. Como ela afirma em carta a parentes, seu desejo é triunfar como a menina primeira da classe. E a Paris dos anos 1920 oferece-lhe essas condições (Amaral, 2003). Tarsivald, apelido atribuído ao casal pelo amigo Mario de Andrade, ingressa com sucesso no mundo artístico e intelectual internacional. Pelas mãos do poeta Blaise Cendrars, eles frequentam a elite parisiense e os salões diplomáticos, enquanto Tarsila estuda com o cubista Léger. Funcionando como uma única célula, Tarsivald encarna plenamente o modelo modernista. Como canta Osvald para sua amada, resumindo a contradição do modernismo brasileiro, Tarsila é a “caipirinha vestida por Poiret”.7

Personagem de peso, Paul Poiret é o costureiro responsável pela imagem de Tarsila, valorizando sua beleza e criando para ela uma aura vanguardista. Consciente dessa estratégia, ela não poupa e paga por um vestido o mesmo valor de uma obra de Léger. E escreve à família: “fiz sucesso como mulher linda”, anunciando o convite para expor no saguão do Le Journal (Amaral, 2003, p.185).

Ora, os signos da vida moderna são o efêmero, o fugitivo e o contingente, o que situa a moda no centro da exigência modernista (Baudelaire, 1995). E como as barbatanas e os espartilhos não servem mais à movimentação do corpo moderno, a moda torna-se o meio de expressar o novo, ganhando o sentido de criar identidades (Chadwick, 2007). E isso Tarsila parece ter encarnado tão bem, como mostra o seu segundo autorretrato, Manteau rouge, de 19238 (Figura 2).

Interessante notar que aqui Tarsila mostra uma escolha pelo padrão de gosto da elite brasileira na elaboração de “imagens de classe” (Miceli, 1996, p.129). Os procedimentos de composição e a pose adotada seguem a feitura de retratos da elite na época, mostrando, pela autoimagem apresentada, o lugar que a artista deseja ocupar e ocupa.

Quando Anita chega, em 1923, novamente encontra um espelho opaco: a Paris dos anos loucos não se interessa pelo expressionismo. E como Tarsila, em plena posse de seu papel de artista e dama da sociedade dedica-se a intensa vida mundana, as amigas se afastam (Batista, 2006).

E se afastam também os amigos modernistas, à exceção de Mario de Andrade, que em correspondência pede a Tarsila o fim das “briguinhas”. Na ocasião, o crítico Sergio Milliet confirma: “Anita não é mais a nossa grande artista. É Tarsila”.9 Ela, por sua vez, em carta à família, diz que disputa com Di e com Anita o primeiro lugar na pintura moderna brasileira, afirmando que não a vê mais como amiga, mas como rival. As dificuldades na relação com Anita são suplantadas por Tarsila pela amizade com a fazendeira D. Olivia Guedes Penteado, colecionadora e grande estimuladora da arte moderna em São Paulo. Juntas convivem com Satie, Cocteau, Strawinsky, entre outros. Anita está de fora (Amaral, 2003).

Mil novecentos e vinte e quatro é o ano em que Tarsila faz seu último autorretrato, que passa a ser a sua marca registrada. Cópia de uma fotografia, ele é refeito em 1926, para o catálogo de sua primeira individual em Paris. E a partir de então é capa de quase todos os seus catálogos (Figura 3).

O rosto suspenso é uma elegante armadura de perfeição ideal. Totem? Remete ao “espelho, espelho meu” da rainha madrasta de Branca de Neve? Imagem produzida e recopiada por Tarsila cujo sentido entrevemos na carta de Mario de Andrade, que diz: “aproximo-me temeroso de ti. Creio que és uma deusa: Nêmesis, senhora do equilíbrio, da medida, inimiga dos excessos [...]” (Amaral, 2003, p.81).

Ora, a idealização de Mario, ainda que se reconheça temeroso, omite o parentesco próximo de Nêmesis com as Erínias e suas funções de propiciar aos homens a fome, a fadiga e a velhice, entre outros males. Na mitologia grega, Nêmesis é a deusa da vingança, que não descansa enquanto “não rebaixa o insolente que se elevou alto demais, provocando com seu sucesso o exagerado ciúme dos deuses” (Vernant, 2000, p.90).

Tarsila volta ao país defendendo o cubismo, poética que elogia a racionalidade da modernidade. É recebida como a “pintora fazendeira”, “que pinta em brasileiro”. Consagrada, seu ateliê paulista torna-se centro para pessoas atraídas por suas obras e por sua beleza (Amaral, 2003, p. 143).

Anita retorna ao Brasil sem provocar qualquer impacto ou menção. Chega a São Paulo em 1928, ano da publicação de Macunaima e data de Abaporu, presente de Tarsila pelo aniversário de Osvald, que inspira o movimento antropofágico, momento seguinte do modernismo brasileiro. Consolidado o movimento, não há espaço para ela, nem para sua experimentação. Desenvolve, então, um método de ensino de arte para crianças baseado na liberdade artística e, após aproximar-se do Grupo Santa Helena, dedica-se à pintura primitiva (Batista, 2006).

 

VI

Cabe agora pensar como a rede de olhares que liga Anita a Lobato e a Tarsila é útil para pensar a situação clínica de Joana.

É na modernidade, quando a identidade perde seu caráter fixo, que a problemática do sujeito centra-se na experiência. No caso do sentimento de “quem eu sou e como sou”, a experiência é a da relação com o outro, maneira que o ser humano tem de encontrar uma forma própria, ainda que temporária. Uma forma que se constrói no espaço entre a mãe e seu bebê, que a psicanálise supõe, entre artista e obra, e entre obra e espectador na arte, entre analista e paciente na clínica.

Como o outro de Anita, Lobato a viu centrado em suas próprias convicções e por isso não pôde aceitá-la em sua diferença. Rejeita a forma que ela apresenta, impondo uma imagem de paranoica ou mistificadora. No lugar da cultura como establishment, ele nega o reconhecimento de seu gesto inventivo, impedindo o espaço para novas experimentações de si.

De fato, as vanguardas quebram a noção tradicional da arte como representação do mundo para afirmar a arte como experiência. No caso do expressionismo, escolha inicial de Anita, trata-se de uma poética que recusa a racionalidade pela valorização do gesto visível nas pinceladas aparentes. Na Alemanha, especialmente, o expressionismo busca, pela deformação e pelo uso da cor pura, modos de colocar o sujeito e sua vivência emocional como centro da operação artística (Brill, 2002).

Recusado o gesto de Anita, como o de Joana, que mal teve como experimentá-lo. Submetida à imagem que o olhar de sua mãe lhe impõe, Joana utiliza o corpo como obra, para dramatizar a sua dor: seu gesto espontâneo substituído pelo materno e a denúncia do quão mortífero é ter que alcançar um ideal inalcançável.

Por outro lado, a experiência de Anita com Tarsila traz o confronto do lenço que oculta a mão amaldiçoada à máscara de deusa de idealizada perfeição. De fato, marcas identitárias muito diferentes. Pois D. Betty, mãe de Anita, significa a atrofia congênita da filha pela maldição de uma mendiga. E recusa a ruptura que suas obras oferecem. Ao passo que os pais de Tarsila sempre consideraram “bem feito” tudo o que a filha fazia e a apoiavam incondicionalmente. Até na dissolução de seu casamento relâmpago com um primo, que gerou sua única filha, Dulce - um escândalo para a época (Amaral, 2003). No confronto das marcas registradas, a relação centrada na rivalidade feminina. Como Joana, diante de uma “mãe deusa vingativa”, que não permite que ninguém se eleve acima dela, principalmente a filha. Joana teria condições de construir seu autorretrato? Nesse sentido, ao recusar o alimento, ela pode marcar uma diferença pela negativa que efetua por deliberação própria, posto que de outra maneira ela sente dificuldade de se posicionar (Winnicott, 1987). Como diz: “tenho muito medo de dizer o que sinto. Tanto medo que acho que nem consigo sentir”.

Joana parece temer ser destrutiva quando intui a possibilidade de se colocar a partir de algo seu, original e diferente. E logo se recolhe. Como a se ver pelo olhar de Lobato diante das obras de Anita, conclui que o que é seu não é bom, ofende, é loucura. Escondendo de si o que sente, como o lenço que oculta a mão defeituosa, ela se protege do risco de ser “maldita”.

Olhando-se através dessa imagem, Joana apresenta, para as questões alimentares, a importância de a mãe aceitar a excitação motora do bebê que morde ao mamar, que a mãe possa ser destruída por ele sem ameaçá-lo com retaliação ou vingança (Winnicott, 1996). Para Winnicott (1987), o bebê precisa experimentar o aspecto destrutivo da agressividade para criar um novo sentido de realidade - a externalidade. A criação de si e do mundo, de “ser um” separado de “outro”, portanto, dá-se pela função positiva da destruição, posto que a passagem para o objeto objetivamente percebido implica a destruição sem ira do objeto subjetivo. O que é fundamental no trabalho clínico com Joana, que, para construir algo de seu e usar o mundo como objeto, precisa romper a fusão com a tradição materna, inventando-se de uma maneira única. E para isso precisa tolerar e sustentar o impacto disruptivo do novo. É nesse sentido que Winnicott (1975) coloca a destrutividade como uma conquista: por suas qualidades criativas, como nos mostram aqui, os movimentos artísticos da vanguarda - bem como todos os outros -, inventando-se nas rupturas com processos tradicionais e fazendo com isso a história da arte.

 

Referências

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Miranda, M. R. (2001). Anorexia nervosa e bulimia à luz da psicanálise: a complexidade da relação mãe-filha. XVIII Congresso Brasileiro de Psicanálise. O futuro da psicanálise: das construções teóricas às evidências terapêuticas. São Paulo.         [ Links ]

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Referências de obras de Anita Malfatti

Malfatti, A. (1915-1916). O homem amarelo. Óleo sobre tela. Coleção Mario de Andrade. Coleção Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros - USP.

Malfatti, A. (1915-1916). A boba. Óleo sobre tela. Museu de Arte Contemporânea da USP.

Malfatti, A. (1922). Autorretrato. Pastel sobre papelão. Coleção Mario de Andrade. Coleção Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros - USP.

 

 

Correspondência:
Silvana Rea
Av. São Gabriel, 149, cj. 1104
01435-001 São Paulo, SP
Tel: 11 2872-6214
silvanamrea@gmail.com

Recebido em 20.3.2012
Aceito em 11.5.2012

 

 

1 Versão modificada de trabalho apresentado no Colóquio Clínica & Cultura: tradição... transgressão... esquecimento da origem, na SBPSP, em novembro de 2011.
2 Questão abordada também no estágio do espelho em Lacan (1998) e em Meltzer (1995), que mostra a importância do olhar materno como reciprocidade estética.
3 Tradição-Invenção é o tema do 29 Congresso da Fepal.
4 Distinção feita por Clement Greenberg no artigo “A pintura modernista” (1960), citado por Harrison (2001).
5 Feira francesa de Deauville, que durante uma semana apresentava festivais de moda, exposições e concertos (Amaral, 1972).
6 Como não foi possível um acordo financeiro com os herdeiros da artista, não podemos publicar imagens das obras de Anita Malfatti. Elas serão indicadas no texto por seus títulos e o leitor poderá encontrá-las em: <obra-sanitamalfatti.wordpress.com> e <www.passeiweb.com/saiba_mais/arte_cultura/galeria/anita_malfatti>.
7 Poema “Ateliê”, de Osvald de Andrade, 1925.
8 Manteau rouge, que, no caso, é do costureiro Jean Patou.
9 Em carta a Couto de Barros, citada por Amaral, 2003.

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