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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.2 São Paulo Apr./June 2012

 

ARTIGOS

 

O vazio e a negatividade como fatores na "Mudança catastrófica" de Bion

 

Void and negativity as factors in Bion's "Catastrophic change"

 

El vacío y la negatividad como factores en el "Cambio catastrófico" de Bion

 

 

Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

Correspondência

 

 


RESUMO

O artigo procura explorar de que forma o vazio e a negatividade funcionam como fatores no estado de “mudança catastrófica” descrito por Bion. Esse é um estado polivalente, pois, como dizia Bion, tanto pode representar um colapso quanto uma erupção ou desobstrução. O vazio, o lugar onde o objeto estava, desafia o psiquismo a modificar a frustração (por intermédio do pensamento) ou a evadir-se dela (mediante a evacuação da dor psíquica): mas o vazio (no-thing) deve ser diferenciado do nada (nothing). A negatividade foi amplamente empregada por Bion na elucidação de estados de não pensar, seja ao usar uma linguagem do desdizer, ao estudar a negação dos elementos de psicanálise, ou a imaginar uma grade negativa. As ideias de Bion podem ser aprofundadas mediante um resgate das formulações pioneiras de Hegel e mediante a contribuição de André Green sobre o trabalho do negativo. Quatro fragmentos clínicos procuram ilustrar a conjunção constante entre vazio, negatividade e mudança catastrófica.

Palavras-chave: vazio, negatividade, mudança catastrófica, apagamento, linguagem apofática.


ABSTRACT

The paper explores in which way void and negativity work as factors in the state of “catastrophic change” described by Bion. This is a polyvalent state because, according to Bion, it can represent a break-down, so much as a break-up or a break-through. The void - the place where the object was - defies the psyche to modify frustration (through thinking) or to evade it (via evacuation of psychic pain): but, void (no-thing) must be differentiated from nullity (nothing). Negativity has been widely used by Bion to clarify states of un-thinking, either by using a language of unsaying, by studying the negation of psychoanalytical elements, or by imagining a Negative Grid. We can deepen Bion's ideas by rescuing Hegel's pioneering contributions and through André Green's work on the negative. Four clinical vignettes are introduced to illustrate the constant conjunction between void, negativity and catastrophic change.

Keywords: void, negativity, catastrophic change, erasure, apophatic language.


RESUMEN

El artículo busca explorar de qué forma el vacío y la negatividad funcionan como factores en el estado de “cambio catastrófico” descrito por Bion. Este es un estado polivalente, pues, como decía Bion, puede representar tanto un colapso como una erupción o desobstrucción. El vacío, el lugar donde el objeto estaba, desafía al psiquismo a modificar la frustración (a través del pensamiento) o a evadirse de ella (mediante la evacuación del dolor psíquico): pero, el vacío (no-thing) debe ser diferenciado de la nada (nothing). La negatividad fue ampliamente utilizada por Bion en la elucidación de estados de no-pensar, ya sea al usar un lenguaje del desdecir, al estudiar la negación de los elementos de psicoanálisis, o al imaginar una Grade Negativa. Las ideas de Bion pueden profundizarse a través de un rescate de las formulaciones pioneras de Hegel y mediante la contribución de André Green sobre el trabajo del negativo. Cuatro fragmentos clínicos buscan ilustrar la conjugación constante entre vacío, negatividad y cambio catastrófico.

Palabras-clave: vacío, negatividad, cambio catastrófico, supresión, lenguaje apofática.


 

 

O vazio é a potência da forma
(Bion).

I. Mudança e catástrofe

Em seu magnífico ensaio sobre a negação, Freud (1925, p.237) assinala que, na fase inicial em que o ego só se ocupa do prazer, três elementos ficam constantemente conjugados: aquilo que é “ruim ao ego”, o que “lhe é estranho”, e tudo que “lhe é externo”. Dessa forma, cristaliza-se a equação segundo a qual “o que não é meu é ruim”.

Com o desenvolvimento do pensamento psicanalítico, vários autores foram reconhecendo a importância metapsicológica de elementos constantemente conjugados, seja por oposição, complementaridade, simetria ou conflito. Foi assim que algumas configurações básicas foram se impondo, como prazer e dor, interno e externo, consciente e inconsciente, integração e desintegração, e muitas outras.

Desde o início de sua carreira, Bion reconheceu, em personalidades psicóticas, o predomínio de configurações mais complexas, como, por exemplo, as constituídas por referências dispersas à curiosidade, arrogância e estupidez. Nesses casos, o analista acaba se defrontando com os efeitos de uma catástrofe psicológica primitiva, uma vez que o orgulho, em razão do predomínio do instinto de morte, evolui para a arrogância e não para o autorrespeito. Como o analisando recorre com frequência à identificação projetiva para se comunicar com o analista, cabe a ele oferecer-se para albergar as partes excindidas e projetadas, uma vez que elas têm uma curiosidade de penetrar o interior do objeto para, como diria Meltzer, encantar-se com suas belezas e mistérios. No entanto, como a identificação projetiva é um recurso que se serve de atalho, permitindo ao sujeito sentir-se ilusoriamente poderoso, isso favorece o crescimento da arrogância e da estupidez. O resultado é um “objeto obstrutivo”, ou seja, um objeto que impede a real comunicação com o outro, aquela que desperta ansiedades persecutórias mas também depressivas.

A questão central subjacente a essa configuração é a do crescimento psíquico necessário para que o sujeito esteja em uníssono com a verdade última, com o “O”, de Bion. Em linguagem fenomenológica, não é difícil entender que esse processo implica em mudança, bem como em catástrofe, caso o continente encarregado de conter essa verdade não esteja aparelhado para isso. Por essa razão, Bion (1970, p.15) nos diz que “o problema psicanalítico é o problema do crescimento e o de sua resolução harmônica entre o continente e o conteúdo, repetido no individuo, no par e, finalmente, no grupo, intra e extrapsiquicamente” (Trad. autor).

A “resolução harmônica” implica uma transformação estética, já antecipa Bion em Transformations (1965, p.52), ao nos alertar que a veracidade de um insight dependia menos de uma evidência científica do que de uma apreensão estética. Na ausência de um continente que possa abrigar o homem, seu destino filogenético será sombrio, como antecipado pelo solilóquio do padre, um dos personagens de sua trilogia A memoir of the future: “o homem é um experimento descartável como os mamíferos, como os sáurios, como o fogo, como as centelhas que somem no ar, como os problemas quando não há mente para contê-los” (1991, p.398. Trad. autor).

Segundo Bion, sob o ponto de vista metapsicológico, para o analisando com predomínio da parte psicótica da personalidade, o pensamento verbal é uma aquisição infeliz.

O pensamento verbal está tão entrelaçado com a catástrofe e a emoção dolorosa da depressão, que o paciente recorrendo à identificação projetiva o excinde, arremessando-o para dentro do analista [...] Esse fato tende a conferir realidade às fantasias com resultados catastróficos, caso ele se arriscasse a reintrojetar sua capacidade de pensamento verbal (1967, p.32. Trad. autor).

Posteriormente, ele suaviza esse vaticínio ao admitir que “toda evolução ou crescimento mental é catastrófico e atemporal” (1970, p.108. Trad. autor). Na experiência de crescimento, há uma morte da onipotência do self e o nascimento de um novo self, permeado por um sentimento de perda de identidade. Como Bion indaga na Memória, “trata-se de um 'break-down (demolição), de um 'break-up' (erupção) ou de um 'break-through' (desobstrução)?” (1991, p.539).

Suponhamos o caso de Alice, uma personagem que representava o establishment aristocrático. Ao ser transformada em um “despojo de guerra”, após uma invasão do seu país, sofre uma deterioração catastrófica de sua identidade, passando a sentir-se “nua, incongruente, alienada e sem um ponto de referência que fizesse sentido” (1991, p.27. Trad. autor).

De qualquer modo, Meg Harris Williams sugere que Bion, ancorado na peripateia aristotélica, tinha consciência da origem literária do termo “catástrofe”, ou seja, na mudança radical de visão oferecida pela tragédia clássica: é nesse sentido que sua natureza estética torna-se mais evidente.

 

II. Mudança catastrófica

Em Transformations (Transformações), Bion (1965) define transformações como as mudanças controladas nos estados de mente do analisando, causadas pelas interpretações psicanalíticas - que privilegiam o pensar - em oposição às mudanças descontroladas envolvidas em um colapso psicótico - que levam à ação impensada. Ao se referir a um paciente psicótico, ele nos diz:

seus processos de pensamento estavam fortemente perturbados, muitas de suas falas eram incompreensíveis, mesmo após uma análise prolongada. Nas ocasiões em que me parecia apreender algum significado, isso, em geral, dava-se segundo uma experiência estética e não científica (1965, p.52. Trad. autor).

Esse tipo de mudança

é catastrófica no sentido restrito de um acontecimento que produz uma subversão da ordem ou sistema de coisas; é catastrófica porque está acompanhada de sentimentos de desastre nos participantes; é catastrófica no sentido de ser brusca e violenta de um modo quase físico (1965, p.8. Trad. autor).

Williams e Meltzer consideram o conceito de “mudança catastrófica”, em Bion, equivalente ao conceito de “conflito estético” por eles desenvolvido: no fundo, a força motriz que estrutura todo o processo de aprendizagem pela experiência com suas implicações cognitivas, éticas e emocionais.

Bion (1970, p.72) sugere que as observações psicanalíticas demandam a existência de um “cenário convencional” que poderia ser pictoralizado por uma esfera: situação psi-canalítica com a qual o psicanalista precisa lidar poderá ou não estar contida no interior dessa esfera. Este modelo aplica-se com propriedade a certas situações analíticas onde o analisando se posiciona “fora dela”, ou mesmo a situações em que o analisando está “fora de si”. Esse modelo cria uma importante questão epistemológica: o domínio mental pode ser contido na moldura da teoria psicanalítica? Foi para tentar esclarecer essa questão que Bion se dispôs a aprofundar o entendimento da configuração “continente-contido” (♀♂).

Para tanto, Bion (1970, cap. 7, 10, 11 e 12) escolheu uma via engenhosa: estudar a relação do establishment - entendido como a instância individual ou social encarregada de exercer responsabilidade ou poder -, com os indivíduos comuns necessitados de se familiarizarem com as ideias novas, indispensáveis à vitalidade do grupo social. Assim, por exemplo, Freud produziu a ideia nova que criou a psicanálise, cuja manutenção e evolução, no entanto, depende de um suprimento continuado de “gênios”, ou seja, de outros investigadores que não temam sondar o desconhecido. Isso, no entanto, implicará sempre num choque entre uma força explosiva e um continente encarregado de refreá-lo.

Como pano de fundo da configuração ♀♂, há uma questão já esboçada pela psicologia homérica: a distância entre o homem e Deus. Nos primórdios, o desenvolvimento mental pressupunha pouca distinção entre ambos, ou na psique individual, entre o ego e o superego. O papel do establishment é orquestrar essa separação no indivíduo ou no grupo, de modo a permitir que um ser comum se beneficie no cotidiano de mudanças catastróficas vividas por um gênio - ou místico, como Bion também entende essa instância. Mas, ao conseguir efetuar essa separação com Deus, o indivíduo torna-se presa de uma configuração insolúvel: “o Deus com quem ele estava familiarizado era finito, mas o Deus de quem ele agora está separado é transcendente e infinito” (1970, p.75-76).

No embate com o establishment, o místico (ou o gênio) pode atuar de forma criativa ou destrutiva, desde que consolide as regras e leis de controle ou as ameace com a divulgação de ideias novas. A ausência, ou prevalência, dessas funções vai depender se o vínculo entre o gênio e o establishment for comensal, simbiótico ou parasítico. Para ilustrar essa questão, Bion escreveu um artigo denominado “Catastrophic change” (“Mudança catastrófica”, 1966)1 , em que ele descreve “a mais poderosa explosão emocional que conhecemos até o presente momento”, qual seja, a revolução que as revelações místicas de Jesus causaram ao establishment rabínico.

Em resumo, a interação ♀♂ pode gerar os seguintes resultados:

a) destruir o significado de uma formulação;

b) instaurar um desequilíbrio funcional no indivíduo, no par ou no grupo; e

c) causar uma perda de limites; é o caso, por exemplo, de um acting-out ou de uma vivência claustrofóbica, caso o acting-out seja reincorporado ao setting psicanalítico.

O conceito de “ansiedade catastrófica” está implícito na descrição que Bion faz do confronto entre a ideia messiânica e a personalidade prestes a “contê-la”. A resistência do pensador ao pensamento não pensado é um “pensamento coluna 2”, ou seja, um pensamento que busca uma aproximação gradual com a verdade, visando proteger-se de uma mudança catastrófica (para uma discussão aprofundada dessa questão, vide Junqueira Filho, 2003, p.167-181).

 

III. Negatividade

Ainda se referindo à negação, Freud assinala que ela é um modo de tomar conhecimento do que foi intelectualmente reprimido, mas não afetivamente (p.235). Ou seja, o reconhecimento do inconsciente por parte do ego é sempre expresso numa fórmula negativa, razão pela qual não haveria mais evidência de que fomos bem-sucedidos em nossos esforços de descobrir o inconsciente do que quando o analisando reage a eles com as expressões “não concordo com isso”, ou “isso nunca tinha me ocorrido” (p.239).

Bion retoma essa questão vislumbrando o potencial criativo da negatividade, chegando inclusive a afirmar que “a capacidade da mente depende da capacidade do inconsciente, de uma capacidade negativa” (1992, p.304). A origem dessa expressão foi tomada emprestada de uma carta que Keats escreveu a seus irmãos, em 21 de dezembro de 1817:

Eu não tive uma altercação com Dilke, mas sim uma interlocução sobre vários assuntos: várias coisas encaixaram-se em minha mente e, de repente, dei-me conta de qual era a qualidade que caracteriza um Espírito Vitorioso, especialmente em Literatura, e de que Shakespeare a possuía em alto grau - refiro-me à capacidade negativa, isto é, quando um homem é capaz de suportar incertezas, mistérios, dúvidas sem se lançar com irritação numa busca por fatos racionais (Bion, 1970, p.125. Trad. autor).

Outra inspiração importante oferecida a Bion no campo da negatividade foi a formulação de William Blake de que a egocentricidade racionalista acaba aprisionando o homem numa caverna cujas paredes são constituídas por um aglomerado de matéria inerte - ideia que evoca as teorizações de Bion a respeito dos elementos - β. Acuada, a percepção humana do mundo fica limitada àquilo que seu “olho vegetativo” consegue vislumbrar por uma fresta: em razão dessa “visão monocular negativa”, a percepção fica turvada e só conseguirá sua purificação através de uma visão interior que irradie as impressões sensoriais de significado, mediante a integração de um acervo de visões bi, tri e quadrioculares (Williams, 1991, p.70-81).

Bion estuda também e detalhadamente a deterioração do vínculo K (conhecimento) pela inveja, deterioração essa que leva à constituição do vínculo -K, mediante o qual se afirma a superioridade moral do desaprendizado. Sob o ponto de vista metapsicológico, o psiquismo imerso nesse estado cria para si um beco sem saída, uma vez que, ao se desnudar de seu potencial como continente, ele engaja-se numa disputa estéril de superioridade/infe-rioridade, que acaba degenerando-se em nulidade (1962, p.95-99).

Sob o ponto de vista clínico, Bion não chegou a especificar quais seriam as instâncias de negatividade dos vínculos básicos de amor (L), de ódio (H) e de conhecimento (K). Esse exercício foi feito por Meltzer (1988, p.19), para quem -L corresponderia ao puritanismo, -H, à hipocrisia, e -K, ao filistinismo. Minhas experiências revelam que -L aproximar-se-ia melhor dos estados narcísicos, e -K, dos estados de onipotência; quanto a -H, creio que a hipocrisia encobridora do ódio representa muito bem o estado de antiódio.

Na história da apreensão dos fenômenos inconscientes, Ellenberger (1970, p.312) lembra que se atribui a Leibniz a primeira teoria da mente inconsciente, ao se referir às “percepções diminutas”, acomodadas abaixo de um limiar perceptivo. No entanto, coube a Herbart a introdução de um referencial dinâmico, ao imaginar esse limiar como uma superfície em que uma multidão viva de percepções e representações encena uma luta permanente. As mais fortes empurram as mais fracas para baixo do limiar - negativizam-nas, em certo sentido -, de modo que, reprimidas, elas tentam reemergir, associadas a outras representações. Na bela imagem de Ellenberger, “sob o limiar, as representações obscuras constituem uma espécie de coro que acompanha o drama encenado no palco do consciente” (Trad. autor).

Freud não considerou as contribuições filosóficas ao tema da negatividade, tarefa que coube a Lacan, em razão dos famosos seminários de Kojéve a que ele assistiu, a partir de 1933, sobre a obra de Hegel. Para pensar a relação entre ilusão religiosa, como uma superes-trutura, e a história real, como infraestrutura, Kojéve empregou um vocabulário marxista e uma noção de forma invertida da imagem, que Lacan retoma: se cada religião dá uma imagem invertida do real, a passagem da representação para o conceito traduziria a passagem do reino dos céus para a condição terrena. Segundo ele, a natureza obedeceria apenas ao princípio da positividade, ao passo que sua transformação pelo conhecimento humano obedeceria a um princípio dialético, implicando, portanto, em negatividade. O desejo, por envolver a ausência de uma realidade, passa pela negatividade, definindo a liberdade humana, ou seja, definindo o poder de modificar o que existe em busca de reconhecimento (Roudinesco, 1988, p.157).

Em seu aprofundado estudo sobre o trabalho do negativo - inspirado, evidentemente, no trabalho onírico -, André Green (1999), apoiado em Winnicott, ressalta que a criança, privada de uma resposta materna, impregna-se de uma vivência em que somente o que é negativo é sentido como real: o negativo impõe-se, portanto, como uma relação objetal organizada, independentemente da presença ou da ausência do objeto. Na concepção dos objetos transicio-nais, duas vertentes precisariam ser consideradas. A primeira, adotada por Green, privilegia o lado inverso, negativo, da experiência estruturante, positiva, de criação do objeto transicional. Na segunda, uma vicissitude “negativista” faz com que um negativo potencialmente criativo seja distorcido pela raiva e pela impotência, transformando-se numa paralisia psíquica.

Na solução criativa, a psique estabelece uma realidade fictícia em um espaço que não é o da representação. Na solução negativista, ao investir a falta com maus atributos, a psique espera fazer que o positivo aflore, oferecendo-se como vítima ao objeto. Para conseguir isso, ela efetua uma autoamputação do ego, que visa trazer o objeto de volta, via arrependimento, se bem que, ao mesmo tempo, crie um sentimento de vacuidade ou de lacuna (p.5. Trad. autor).

Bion (1965, p.79), por seu turno, ressalta a necessidade de não confundirmos a não coisa (no-thing) com o nada (nothing), sugerindo que o problema da estrutura psíquica reside em duas possíveis respostas à frustração: modificação ou evasão. Note-se aqui a dupla intervenção do negativo, seja porque ele privilegia a ausência de satisfação, seja porque, ao negar a existência da frustração, ele reduplica o negativo.

Bion, no entanto, vai além, propugnando um estado de não compreensão, paralelamente à restrição de memória e de desejo como forma de apreensão da realidade psíquica. Esse estado de tentar obter o saber através do não saber pode ter chegado a ele tanto por influência do leite recebido pela ama indiana, que o amamentou enquanto lia o Bhagavad Gita, quanto por influência dos místicos neoplatônicos, de Plotino a Meister Eckhart. De fato, Webb e Sells (1997) traçam um oportuno paralelo entre a linguagem psicanalítica de Lacan e de Bion e a linguagem mística do desdizer (unsaying), cuja premissa básica é a incognoscibilidade e a inomeabilidade do objeto do conhecimento. Em razão disso, Bion designa com um símbolo vazio, “O”, a “realidade última, a verdade absoluta, a divindade, o infinito, a coisa em si”, sugerindo sua falta de fechamento referencial (1970, p.26). Lacan, por sua vez, usa o “real” para descrever “aquilo que está faltando na ordem simbólica, o resíduo ineliminável de toda articulação, o elemento forcluído, do qual podemos nos aproximar, mas nunca apreender” (1978, p.288).

Plotino denominou de linguagem apofática - apo, afastar; phasis, falando - a linguagem cujo significado emerge pela tensão entre uma proposição afirmativa e outra que a nega. Webb e Sells preferiram traduzi-la como “linguagem do desdizer” em vez de “teologia negativa”, uma vez que ela questiona a própria noção de teologia - theos, sobre a deidade; logos, uma palavra.

Ao introduzir a ideia de “conhecimento negativo”, Bion distingue a compreensão adulterada (mis-understanding) da não compreensão (not-understanding). O conceito hegeliano de “desconhecimento ou falha de reconhecimento” (méconaissance), adotado por Lacan, amplia o campo desses fenômenos. Desse modo e se necessário, a não compreensão pode ser mobilizada pela psique, conferindo status a -K.

 

IV. A inquietude do negativo

Bion nunca demonstrou interesse explícito em Hegel que, por isso mesmo, nunca é relacionado como uma influência filosófica significativa em sua obra. No entanto, desde 1997, a publicação, na França, de Hegel: l'inquiétude du négatif, de Jean-Luc Nancy, torna-se impossível não reconhecer no léxico de Bion a influência do léxico de Hegel. Senão vejamos.

a) Ao se referir à atmosfera de privação de desejos, que deve pautar toda experiência psicanalítica, Bion conclui:

O sentimento de solidão parece evocar um sentimento, no objeto investigado, de que ele está sendo abandonado e, no sujeito investigador, de que ele está se amputando da fonte ou da base da qual depende para sua própria existência (1963, p.16. Trad. autor).

Bem como, ao discutir a reversão de perspectiva como método de se livrar de dor psíquica, Bion conclui:

A lição a se tirar dessa discussão é a necessidade de deduzir a presença de dor intensa e a ameaça que ela representa à integração mental. Considerarei, portanto, a dor como um dos elementos de psicanálise (1963, p.61. Trad. autor).

Em relação à dor, eis como Nancy resume a posição de Hegel: “a separação, que em si mesma é manifestação, é a cada momento uma provação singular. Nesse sentido é dor [...] Sofrer dor é, portanto, sentir-se singular. Genericamente, sentir ou ressentir, é perceber-se sensível” (2002, p.40-41. Trad. autor).

b) Refletindo sobre como evoluir da cognição de fenômenos para “sendo aquilo que é real”, Bion alerta que o real é um “vir a ser” (become), razão pela qual a interpretação psicanalítica deve transcender o mero acúmulo de conhecimento (1965, p.148).

Nancy também formula a questão do autoconhecimento em Hegel:

Conhecer-se como alguém singular não é um conhecimento abstrato; é estar, concretamente, diante da insuficiência e da incompletude do self e, em razão dessa falta, colocar-se em relação com um outro, com tudo do outro e com todos os outros que me faltam: é já estar em movimento, é um vir a ser (become) (2002, p.41. Trad. autor).

 

V. Apagamento

Ao fazer um breve apanhado linguístico das defesas pertencentes à constelação do negativo, Green (1999, p.18) deixa exposta sua origem no antagonismo entre forças psíquicas que, como mencionado, foi descrito pioneiramente por Leibniz. Por isso, a rejeição (verwerfung), que Lacan traduziu por forclusão, ocorre quando o significante fundamental é banido do universo simbólico do sujeito. A negação proposta por Freud (verneinung) seria um mecanismo mediante o qual o recalcado é reconhecido negativamente pelo sujeito, mesmo sem ser aceito. Na renegação (verleugnung) haveria uma recusa por parte do sujeito de reconhecer uma percepção negativa - como a ausência de pênis na mulher. Finalmente, a escotomização de Pichon designaria a cegueira inconsciente que faz desaparecer fatos desagradáveis da consciência.

No meu entender, a essência metapsicológica do trabalho do negativo está mais próxima do mecanismo de “apagamento”, da revelação de um objeto graças ao enfraquecimento do seu entorno, como ocorre na revelação fotográfica clássica. Minha preferência afina-se com a formulação segundo a qual a essência da metapsicologia residiria no conjunto das operações econômicas empreendidas pelo psiquismo, com vistas a representar a vivência emocional mediante “artimanhas estéticas” (Junqueira Filho, 2008, p.31).

Apesar de Green descrever várias configurações impregnadas de sentido metapsicológico, como a reação terapêutica negativa, o narcisismo negativo e a função desobjetalizante, minha formulação preferida em relação ao negativo é a magnífica imagem de uma mão estampada na capa de seu livro. Não deixa de ser fascinante sabermos que o homem pré-histórico tinha uma noção intuitiva desse mecanismo de revelação, mediante o qual sua mão ficava “impressa” na rocha em razão do vazio que emergia quando seu entorno era banhado por pigmentos.

Essa noção de apagamento, aliás, também é intrínseca a um segundo sentido da linguagem apofática, que seria o de uma linguagem de desvanecimento (“saying away", segundo Webb e Sells), bem como a um dos conceitos mais importantes da filosofia hegeliana, o de aufhebung. Em alemão, aufhebung designa tanto a ação de supressão, de fazer cessar (sentido usual), quanto a ação de juntar, de reter alguma coisa. Em resumo, é a supressão que conserva.

 

VI. Vazio

Para Bion, a vacuidade (vacancy) tanto “excita voracidade, substituições, prematuri-dade, memória e desejo” (1992, p. 300. Trad. autor) quanto se constitui a potência da forma, como ele afirmou algures. Esse caráter proteiforme da experiência do vazio foi insistentemente lembrado por ele em duas citações, recorrentes em várias obras. Numa, o destaque está no horror vacui formulado por Pascal: “O silêncio desses espaços infinitos me apavora”. Noutra, extraída do Livro III do Paraíso perdido, a cegueira de Milton leva-o a fazer uma invocação teológica e filosófica da luz: “O mundo emergente de águas escuras e profundas / Extraído do infinito vazio e informe”.

Certamente essas percepções influenciaram-no ao elaborar sua teoria de pensamento, de acordo com a qual a expectativa do seio acasala-se com a realização da ausência do seio para conferir satisfação, experiência vivida como a existência de um não seio, ou seja, um seio “ausente” internalizado (1967, p.111). Para desenvolver essa abstração, o não seio foi reduzido a uma mera posição, ao lugar onde o seio esteve, e, posteriormente, a não coisa foi vislumbrada como “o lugar onde a coisa esteve”. No limite, Bion sugere que a origem intrapsíquica da Geometria euclidiana esteja na experiência do “espaço” onde um sentimento, uma emoção ou outra experiência mental, “estava” (1965, p.121. Trad. autor).

A partir de sua experiência com pacientes psicóticos, Bion descreveu uma dialética de existência ↔ não-existência, originada a partir de um objeto que é violento, voraz e invejoso, além de impiedoso, assassino e predatório, norteando-se pela determinação invejosa de possuir tudo aquilo que é possuído pelos objetos que existem, dentre eles, a própria existência. Esse objeto autocontraditório busca um estado de não existência que beira o estupor, mas, ao mesmo tempo, precisa manter um grau mínimo de existência para poder sentir que não existe (1965, p.102).

Como já mencionado, Bion associa a realidade última incognoscível com o símbolo vazio “O”, mas, ao mesmo tempo, busca associá-lo à “imagem de um buraco, ou de uma boca ou vagina vorazes” (1991, p.36, trad. do autor). É curioso notarmos ao longo da obra de Beckett (que fora analisado por Bion) o quanto o nada é exaltado, ao lado do desejo fútil e inatingível de “nunca ter existido”. Em resumo, Beckett procurou alcançar uma literatura da despalavra, uma poética da indigência, uma estética da nulidade, que pudesse descrever o autoexílio de um eu perseguido pela máxima torturante de Arnold Geulincx, discípulo de Descartes: “onde nada podes, lá nada queiras” (Junqueira Filho, 2009, p.58). Assim, se Bion foi o artífice da capacidade negativa, Beckett pode ser visto como o arauto da incapacidade positiva.

 

VII. Observações sobre a clínica da mudança catastrófica

a. A revelação do desamparo consequente ao apagamento da onipotência

Um jovem e bem-sucedido profissional liberal vivia sufocado por uma onipotência aprisionante que o induzira a ter como objeto de desejo largar todas as obrigações e responsabilidades de sua vida “civilizada” e, num gesto heróico, mergulhar solitariamente numa vida selvagem, em que pudesse recuperar o “paraíso perdido da liberdade”.

Numa sessão em que fora pilhado na sala de espera rasgando uns papeis - certificados de sua identidade onipotente? -, ele, ao entrar, solicita-me uma lata de lixo. Vejo-me levantando a lixeira em sua direção e comentando que me parecia promissor um encontro que começava com uma pessoa excretando algo e outra recolhendo a excreção (observação provavelmente evocada por uma memória-sonho acerca da disponibilidade de um seio-toalete).

Conta-me quanto estava angustiado com uns gânglios que o pediatra detectara em seu filho, com a preocupação de que pudesse ser uma doença incurável e com a determinação prévia, acompanhada de indisfarçável irritação, de não me contar nada, porque sabia que eu não teria como ajudá-lo. Mostro-lhe que, ao funcionar passivamente como um lixo recebendo as angústias das quais ele estava querendo se livrar, eu poderia também me sentir vítima da impotência que o afligia.

Apesar de ouvir atentamente minha fala, ele inflamou-se, recriminando-se porque estava dedicando-se a si na sessão, quando, no fundo, deveria estar inteiramente entregue à salvação de seu filho. Chamo sua atenção para a dose de arrogância embutida na pretensão de abdicar da oportunidade de tentar “domar” sua onipotência na sessão, quando, no fundo, ele parecia estar significativamente abalado pela mera ideia de ter de se confrontar com uma eventual impotência em relação à doença presumida do filho.

Ele me interrompe com voz embargada declarando-se impossibilitado de continuar falando daquilo. Concordo que naquele momento o mais importante era acolhermos as emoções que surgiam entre nós. Fez-se um silêncio, fato raro em nossa história pregressa, mas, de repente, noto que ele tamborilava “distraidamente” sobre uma caixa de lenços de papel que eu mantenho ao lado do divã. Sugiro que essa visitação feita com os dedos não fora casual, que os lenços que durante tanto tempo lhe pareceram oferecidos aos fracos, agora estavam disponíveis também para ele.

O resultado foi imediato: abandonou-se a um choro convulso e, sem a menor cerimônia, serviu-se dos lenços para enxugar as lágrimas - apagamento ou liquefação de sua onipotência? Ao final, solicitou-me outra vez o lixo, agora para receber os lenços embebidos de suas lágrimas. Esse desfecho permitiu-me apontar que o recipiente escuro e inanimado, que ele requisitara ao chegar, como um mero receptáculo para descarregar sua raiva e sua impotência larvadas transformara-se ao final em algo vivo, o meu coração, que ele sentia estar pronto para acolher sua impotência explícita.

b. A fotografia e a elaboração do luto

Freud (1917) lembra-nos que, no luto, o mundo torna-se empobrecido e vazio e, na melancolia, isso ocorre com o ego. Quando se perde um objeto amado, em geral a libido, livre, não se desloca para outro objeto, mas volta-se para o ego, caindo sobre ele como uma sombra. Dependendo do grau de narcisismo que envolve a escolha objetal, é possível estabelecer-se um conflito entre o ego e a pessoa amada.

Green (1999, p.77-78) reconhece que a identificação tenta lidar com a ameaça de perder o objeto, apesar de isso implicar uma ameaça de alienação do sujeito. O abandono da relação objetal não seria descrito pela fórmula “tendo e sendo” ou “tendo ou sendo”, mas pela fórmula sendo por falta de tendo. A intervenção da negação anula o sentimento da perda do tendo, ao passo que a identificação, que procura contrabalançar essa perda, incita um “sendo” em comum com o objeto, identificado como uma lembrança da época em que tendo e sendo estavam unidos.

Foi isso que parece ter acontecido com um analisando que perdeu a esposa após 45 anos de casamento. Inconformado com sua falta, espalhou por todos os cantos vazios a fotografia do casal, visando garantir a lembrança do período feliz em que “o tendo e o sendo” estavam unidos. Além do mais, todas as fotos tinham sido meticulosamente tiradas por ele e arquivadas por ela numa espécie de ritual premonitório de seu uso futuro.

Para Susan Sontag (2006, p.26), uma foto é tanto uma pseudopresença como uma prova de ausência. Não podemos esquecer que a foto fomenta a nostalgia e implica sempre um memento mori, ou seja, é uma arte elegíaca e crepuscular que sempre evoca a morte (p.25-26).

Roland Barthes (1984, p.20), por sua vez, entende que a pessoa, ou objeto, fotografada é uma espécie de simulacro, ou eidolon (imagem concebida pela mente), que ele denomina de “espectro da fotografia”, porque evoca o retorno de algo morto.

Se o analisando tentar positivar a falta mediante a fotografia do objeto ausente, ele pode estar se entregando a uma nova forma de alucinação, a uma “verdade louca”, na expressão de Julia Kristeva, uma vez que o objeto ao mesmo tempo “não está mais lá”, mas, com certeza, “esteve lá” (Barthes, 1984, p.167-169).

c. Desarranjos emocionais de uma “castração inata”

Consideremos brevemente as repercussões psicoemocionais de uma falta inata, condição de uma analisanda com agenesia dos órgãos sexuais internos e externos. É claro que a agenesia já implica uma negatividade, mas, nesse caso, a isso se acresce a ausência de um receptáculo que, em termos procriativos, está destinado a acolher a penetração do órgão masculino e, posteriormente, a albergar o desenvolvimento de um novo ser. Bion recorre a esse modelo para descrever o desenvolvimento de uma ideia nova mediante um processo chamado de “psicoalojamento”, com toda a carga de ameaça que a presença desse personagem estranho - que ele denomina Du, tu, em alemão - causa no psiquismo fadado a acolhê-lo, no caso de Roland - personagem representante do pensamento aristocrático.

Roland: Você parece um demônio horrendo. Quem é você? Se não for o demônio, seria um pesadelo? Você não é um pesadelo? Mas também não é um fato.

Du: Eu sou o futuro do passado: a forma do vir a ser.

Roland: Você não é um fantasma?

Du: Meu sorriso é arreganhado como o de um fantasma? Você não gosta destes dentes? Eles são todinhos meus. Eu vou me encravar na tua psique: aquilo que chamamos de psicoaloja-mento. Não é o máximo?! (1991, p.274. Trad. autor).

Na ausência de um receptáculo para alojar o pênis, ele se transforma em um objeto persecutorio, uma vez que a perspectiva de penetração sempre será vislumbrada como uma invasão. Isso foi vivido de forma dramática pela analisanda, que projetou no pai as características dessa figura truculenta, sempre à espreita para penetrá-la com violência. Nesse caso, caberia à análise ajudá-la a construir um “útero psíquico”, única forma de poder transformar o objeto persecutorio em um parceiro procriativo. Infelizmente, esse objetivo não foi alcançado, em parte porque aspectos fálicos da personalidade do analista não puderam se desvencilhar de suas conotações impositivas, em parte porque as defesas onipotentes da analisanda afastavam-na de todo e qualquer contato íntimo.

Green (1999) nos oferece duas formulações úteis nesse caso. A castração significaria a simbolização de uma catástrofe graças à ação de dois agentes desorganizadores: a observação do orgão em falta, que ameaça a integridade do sujeito, e a impossibilidade de constituição do objeto, uma vez que esse sujeito está privado de seu órgão de gozo (p.6364). Ao evocar a discussão da psicossexualidade feminina, Green nos chama a atenção para a sensibilidade de Freud em relação ao negativo.

Para Freud, as mulheres negativizam o gozo fálico localizado para redistribuí-lo ao todo da erogeneidade corporal e relocalizá-lo vaginalmente, quando do encontro com o órgão masculino (p.62-93) - algo impossível neste caso.

d. Garrafa cheia, copo vazio

Um analisando alcoolista chega à sessão ligeiramente alcoolizado, trazendo uma garrafa de “cachaça 51” e dois copos. Informa ao analista que sua intenção é que possam beber juntos. Diante da hesitação do analista, ele se mostra irritado.

O analista valoriza o fato de que, ao lado da proposta de envolvê-lo num acting in - metaforicamente a propaganda apresenta essa cachaça como uma “boa ideia”. É esse, portanto, o aspecto a ser enfatizado psicanaliticamente numa eventual interpretação.

Inspirado nessa avaliação, o analista resolve negar a concretude do acting, tratando-a como mera representação: pega a garrafa fechada fazendo de conta que enche um copo e que bebe o seu conteúdo. Concomitantemente comenta com o analisando que estava bebendo “uma boa ideia”, ou seja, incorporando algo imaterial.

 

VIII. A conjunção constante vazio, negatividade e mudança catastrófica

Bion sempre assinalava a tendência do ser humano de tentar “familiarizar” uma eventual experiência aterrorizadora, ou mesmo o desconhecido, para não enlouquecer (1991, p.382). Segundo Williams, o remédio seria antecipar-nos a um desastre indescritível, tentar descrevê-lo através de uma forma artística (2010, p.45). Nesse sentido, a capacidade negativa funcionaria como o recurso que nos ajudaria a traduzir a mudança catastrófica num conflito estético (2010, p.42). Além do mais, ela nos lembra as raízes teológicas e etimológicas do termo “paciência”, que Bion (1970, p.124) invocou como qualidade necessária ao analista enquanto aguarda a emergência de um padrão na escuridão da experiência clínica. Passio evocaria sofrimento, pathe ressoaria com emoção, ao passo que perturbatio se conjugaria com turbulência.

No entanto, em que sentido o vazio e a negatividade se constituiriam em fatores de mudança catastrófica? Partamos do aforismo de Kierkegaard, segundo o qual, “o significado mais pavoroso não é tão pavoroso quanto a falta de significado”. É por isso que Williams nos lembra que o pavor, em tensão com amor e ódio, é a antítese da negatividade, da falta de sentido ou da banalidade (2010, p.49). A conclusão que se impõe, portanto, é: dependendo do uso - eixo horizontal da grade - que prevalecer, tanto o vazio quanto a negatividade poderão evoluir para uma mudança catastrófica, como expressão de crescimento mental ou como expressão de paralisia psíquica.

Para o analisando descrito em A, o uso da potência é fundamental, uma vez que, apenas mediante a administração da tensão criativa entre onipotência e impotência, ele poderá vir a construir o seu “paraíso de liberdade”. Não por acaso, ele ficara obcecado por um filme sobre um jovem que se lança em busca de uma vida selvagem, impulsionado por uma canção redentora: “vou me reerguer / calcinando buracos negros em memórias sombrias / vou me reerguer / transformando erros em ouro”.

No caso do viúvo descrito em B, poderiamos aplicar a matemática da alucinóse, de acordo com a qual 1 esposa + 0 esposa = 1 esposa - e não a 0 esposa -, ou seja, o nada (nothing) transforma-se em não coisa (no-thing). Ao torturar-se por ter sido “abandonado” pelo objeto, seu masoquismo implica uma realização do negativo, uma vez que confere à dor um status de gozo, como sugere Green (1999, p.93). Esse mascaramento da dor em gozo é um bom exemplo de mudança catastrófica paralisadora ou desorganizadora do psiquismo.

Por outro lado, a situação da analisanda mencionada em C complicou-se ainda mais em razão de seu pai ter se encarregado de supervisionar as cirurgias reconstrutoras a que ela foi submetida. É provável que a onipotência fálica que ela desenvolveu como defesa se constituisse em uma espécie de negativo do pênis paterno, que estava sempre prestes a penetrá-la, inclusive cirurgicamente. A transformação do pênis de parceiro procriativo em objeto persecutório constitui uma espécie de mudança catastrófica esterilizante.

De acordo com Langer (2004), podemos entender o convite do analisando, em D, para tomar um trago junto com o analista como algo pertencente às “leis do pensamento discursivo” (p.90). Por seu turno, ao privilegiar o campo apresentativo em detrimento do discursivo, o analista acolheu a “boa ideia” do analisando de expressar seus desejos e satisfações informes (p.94), mediante o desafio de poder ingerir de um copo vazio o conteúdo da garrafa. Na linguagem hegeliana, esse conhecimento não seria uma representação (vorstellung), mas uma apresentação (darstellung), um expor-se ou colocar-se em cena (Nancy, 2002, p.11).

O vazio e a negatividade representam duas faces de uma mesma moeda. Ao calçar, por exemplo, apenas um dedo de uma luva, numa visão superficial constatariamos a presença de 4 dedos + 1 não-dedo, mas, se olharmos no interior da luva, encontraremos o dedo invaginado, ou seja, um dedo negativo. É por isso que Green insiste em que o fundamento da negatividade em psicanálise reside nos efeitos da não-presença do objeto (1999, p.100), que, em resumo, tanto podem gerar desprazer quanto mobilizar um espectro de experiências positivas, seja a realização alucinatória de desejos ou a produção de fantasias (p.63).

Um analisando deprimido escreveu em seu blog: “me sinto tapando um buraco, mas tapando um buraco tirando terra de dentro dele com uma pá. Então, o que fazer? O que esperar? Pois é o que me resta, afinal de contas, esperar...”. Hegel adverte que “um ser que seja capaz de conter e suportar sua própria contradição é um sujeito: isso, constitui sua infinitude” (Nancy, 2002, p.42., trad. do autor). Segundo Hegel, a contradição do sujeito é aquilo que, em sendo meu, faz-me sair de mim, ou seja, é aquilo que, em mim, nega-me como eu. O autoconhecimento na negatividade não é mais um conhecimento do que uma vitória que possa amortecer ou domesticar a dor, a morte, o outro ou a alegria. Não se trata do conhecimento de um objeto, mas de um autoconhecimento, do qual o self não vem a ser o seu próprio objeto: ele é o sujeito, e o sujeito é autoconhecimento.

A visão de mundo bioniana transforma as certezas reasseguradoras da percepção corporal, afetiva ou espacial do mesmo modo que a abstração transformou as regras da representação artística, ou a fisica quântica modificou os métodos de observação (Jacobus, 2005, p.229). A teoria e a clinica psicanaliticas puderam, portanto, acolher as mudanças catastróficas intrinsecas ao desenvolvimento e puderam incorporar a capacidade negativa como significativo recurso de investigação.

 

Referências

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Correspondência:
Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho
Rua Helena, 170, cj. 123
04552-050 São Paulo, SP
Tel: 11 3842 3060
mr.junqueira@uol.com.br

Recebido em 21.10.2011
Aceito em 16.12.2011

 

 

1 Artigo publicado no Boletim da SPB; modificado, passou a constituir o capítulo 12 de Attention and interpretation (1970), sob o título de “Conteiner and conttent transformed”.

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