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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.2 São Paulo abr./jun. 2012

 

RESENHAS

 

Ensaios psicanalíticos

 

 

Paulo de Carvalho Ribeiro

Médico, psicanalista, doutor em psicanálise e psicopatologia pela Universidade Paris 7, e professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais UFMG

Correspondência

 

 

Autor: Flávio de Carvalho Ferraz
Editora: Casa do Psicólogo, São Paulo, 2011, 345p.
Resenhado por: Paulo de Carvalho Ribeiro

Ensaios psicanalíticos, de Flávio Carvalho Ferraz, tem o poder de conjugar conteúdos psicanalíticos de excelente qualidade com uma escrita tão agradável e fluida que, em muitos momentos, a sensação é de estarmos lendo um texto literário. É plenamente justificada, portanto, a referência feita por Rubens Volich, na apresentação do volume, à capacidade que Flávio tem de “fazer prosear a psicanálise” e à forma “simples, mas profunda” de abordar os diversos temas sobre os quais se debruça. Chama também atenção como a amplitude do campo coberto pelos ensaios não produz nenhuma impressão de dispersão. Ao contrário, há uma continuidade assegurada pela recorrência de determinados conceitos, pela referência reiterada a alguns autores e, principalmente, pela manutenção, ao longo dos ensaios, de uma mesma postura epistemológica cuja marca é a adequação entre as particularidades do objeto da psicanálise e as estratégias para abordá-lo. Não se trata, portanto, de ensaios sobre psicanálise, mas de ensaios psicanalíticos propriamente ditos.

Os dois primeiros ensaios tratam da loucura e parecem dialogar entre si. No primeiro, uma visão panorâmica da história da loucura traz como fio condutor a distinção estabelecida por Foucault entre uma abordagem trágica, em que a loucura ligava-se ao mundo das artes e do pensamento, e uma abordagem crítica, que passou a prevalecer a partir do século XVII, cuja principal característica era a medicalização da loucura e a busca de legitimação científica da exclusão dos loucos. O papel da psicanálise na retomada da dimensão trágica do discurso delirante e o consequente deslocamento desse discurso do registro da desrazão para os registros do sentido e da verdade são claramente apresentados e comentados. Temos assim, nesse primeiro ensaio, não só uma bela síntese dos principais acontecimentos e dos protagonistas mais relevantes dessa história como também uma clara visão de como a psicanálise nela se insere.

O segundo ensaio, que é certamente aquele em que Flávio mostra de forma mais vigorosa sua capacidade de fazer prosear a psicanálise, pode ser visto como uma grande ilustração dos elementos teóricos e conceituais abordados no primeiro ensaio. Nesse sentido, ele poderia ser comparado a uma grande aula prática, que vem dar vida e uma dimensão de realidade às descrições, reflexões e argumentos previamente apresentados. Pelas figuras do louco de rua, descritas em diversas obras da literatura nacional e estrangeira, temos a oportunidade de apreender, de forma quase vivencial, as visões trágica e crítica da loucura. Mais do que isso, Flávio lança mão desses loucos de rua para ilustrar outras formas de consciência sobre a loucura propostas por Foucault. Os contos “A benfazeja” e “Darandina”, de Guimarães Rosa, servem como exemplo da consciência prática e da consciência analítica, respectivamente; ao passo que um personagem do romance Fogo morto, de José Lins do Rego, ilustra a consciência enunciativa.

A escolha dos loucos de rua não poderia ser mais apropriada para nos ajudar a perceber os movimentos de acolhimento e segregação da loucura desde o final do século XV, na Europa, e até o século XX, nas cidades do interior de Minas e do Brasil.

No terceiro ensaio, o tema da loucura volta a aparecer, mas dessa vez numa perspectiva mais psicopatológica e metapsicológica. A perversão como defesa contra a psicose é a ideia central em torno da qual Flávio desenvolve seus argumentos, valendo-se da contribuição de autores como Masud Khan, Stoller e Joyce McDougall, entre outros. Uma reflexão sobre os mecanismos de recusa (Verleugnung) e rejeição (Verwerfung) conduz à proposição de uma hierarquia de defesas e permite formular uma hipótese teórico-clínica, segundo a qual o estado psicótico seria ontogeneticamente mais regredido do que o estado perverso. Uma vez associada a um grau maior de organização do ego e à possibilidade de aquisição de um objeto com características transicionais, a perversão pode servir como defesa contra a fragmentação identitária que ocorre na psicose.

O tema da perversão serve de elo com o quarto, dedicado à apresentação do livro A venus das peles, de Sacher-Masoch. Alguns dados biográficos do autor e os comentários concisos e precisos sobre o masoquismo na teoria psicanalítica desde Freud conferem a essa apresentação do livro de Sacher-Masoch um grande interesse para todos que reconhecem a importância do masoquismo na elucidação das vicissitudes do desejo e da pulsão nas perversões.

Entre o masoquismo e “O primado do masculino em xeque”, título do quinto ensaio, a continuidade é evidente; basta que nos lembremos do “masoquismo feminino” postulado por Freud. Nesse ensaio, encontramos uma visão extremamente lúcida e bem fundamentada dos impasses gerados na teoria psicanalítica por uma série de pressupostos bem freudianos e com forte inspiração naturalista, como, por exemplo, o valor intrinsecamente positivo do falo, o valor negativo da vagina, invariavelmente associada à castração, e a primariedade da posição masculina. Ao se perguntar se uma parte importante da teoria psicanalítica não estaria assentada em “uma visão de mundo na qual o masculino é tomado, por definição e a priori, como superior ao feminino”, Flávio abre o caminho para a consideração dos determinantes culturais e ideológicos sob os quais a teoria de Freud, assim como a de Lacan, foram construídas.

Sobre Lacan, a seguinte ponderação crítica merece destaque: ao passar a falar de função paterna em lugar da figura concreta do pai e ao substituir a concretude do pênis pela função estrutural do significante falo, Lacan não consegue se desvencilhar das consequências ideológicas da escolha vocabular e acaba por manter, à sua revelia, o culto milenar à figura paterna e ao órgão masculino, elevado à categoria de símbolo da virilidade, da potência e da fecundidade. De fato, ao se obstinar em manter a lógica fálica e a supremacia do masculino, a psicanálise corre o risco de lançar o anátema da perversão ou da psicose sobre todas as mudanças atualmente em curso, seja na estrutura das famílias, nas formas de exercício da sexualidade, bem como nas posições subjetivas relacionadas ao gênero. Retomando uma formulação de Flávio, particularmente bem encontrada, corre-se o risco de achar que “o mundo vai se tornando 'errado' e a psicanálise se mantém 'certa' em seu poder diagnóstico, quer das pessoas, quer da cultura” (p 156). Em outras palavras, é preciso que a psicanálise cuide-se para não se transformar em uma espécie de guardiã do que só pode ser entendido como um moralismo fálico.

Se, no quinto ensaio, as questões ligadas ao gênero já traziam à baila alguns elementos socioculturais, no sexto e sétimo ensaios os temas abordados vêm nos instalar plenamente no campo de intersecção da psicanálise com os fenômenos sociais. No sexto ensaio, a formação do superego, a origem do sentimento inconsciente de culpa e a noção kleiniana de reparação constituem o eixo da discussão sobre as tendências antissociais. Os pontos de vista de Klein e Winnicott ganham destaque, na medida em que privilegiam a impossibilidade de reparação como aspecto decisivo no aparecimento das tendências antissociais. Klein associa-as à impossibilidade de se alcançar ou manter a posição depressiva, logo, à impossibilidade de aceder à necessidade de reparação do objeto previamente atacado em fantasia e agora percebido como objeto de amor. Winnicott, por sua vez, vê a própria motilidade intrauterina do feto como uma primeira fonte de agressão e atribui à privação da mãe - conceito introduzido por Bowlby - a origem da incapacidade de reparação.

No sétimo ensaio, a violência e o medo são relacionados à questão ética da capacidade de reconhecimento do outro como semelhante. Retomando o ponto de vista de Winnicott sobre o poder do ambiente em promover a integração do sujeito e sua preocupação com o outro, o ensaio nos leva a refletir sobre o papel da psicanálise na prevenção da violência. Caberia ao psicanalista não só reconhecer que o medo da violência tantas vezes manifestado nas sessões de análise não pode ser reduzido a uma projeção no exterior de uma agressividade interna, como também caberia a ele promover a consciência de que o reconhecimento do outro como semelhante pode ser aprendido e está associado às primeiras relações entre os adultos cuidadores e os bebês.

O oitavo e o nono ensaios abordam o delicado problema das fronteiras, ou da ausência delas, entre o psíquico e o somático. Partindo das hipóteses freudianas sobre as neuroses atuais, o oitavo ensaio percorre as diversas teorias sobre o fenômeno psicossomático. Com o auxílio de conceitos introduzidos por autores como Marty, Dejours e McDougall, vai se delineando a insuficiência do mecanismo de recalque, bem como da gênese sexual para explicar esses fenômenos. Paralelamente, o encadeamento dos argumentos vai tornando evidente a necessidade de procurar a fonte das defesas específicas que caracterizam o funcionamento psíquico do somatizador na relação mãe-bebê e nas experiências primordiais relacionadas à sobrevivência. Esse ensaio culmina com a afirmação de que o campo da psicossomática pode ser considerado uma extensão da pesquisa psicanalítica e que conceitos como mentalização e pensamento operatorio, introduzidos pela Escola Psicossomática de Paris, devem ser incorporados ao campo psicanalítico.

O nono ensaio talvez seja o que concentra o maior número de contribuições originais. Nele, a referência ao método laplancheano de “fazer trabalhar Freud” é plenamente justificada, pois é exatamente isso que permite ao autor dos ensaios chegar a algumas formulações particularmente esclarecedoras da tortuosa trajetória do corpo em psicanálise. Para citar apenas algumas das ideias mais interessantes e originais, não poderíamos deixar de destacar a que situa o corpo como um “resto”, tanto no sentido de ter sido abandonado como objeto psicanalítico quanto no sentido do que é descartado na própria ontogênese do sujeito psíquico, ou seja, o que remanesce aquém da linguagem e da simbolização. Outro ponto a ser realçado é a possibilidade de se entender o Além do princípio do prazer como uma retomada da intuição clínica inicial, que priorizava o ponto de vista econômico e se encontra na origem do conceito de neurose atual. Ao privilegiar a visão da pulsão de morte como um dispositivo antirrepresentacional e ao assinalar a reabilitação do ponto de vista econômico, Flávio Ferraz nos permite ver o texto freudiano de 1920 como um verdadeiro retorno do recalcado na própria teoria.

No décimo ensaio, uma instigante reflexão metapsicológica sobre os restos diurnos vem revelar uma função dos sonhos muitas vezes negligenciada. Na contracorrente da abordagem que vê nos sonhos o retorno do recalcado e a expressão de um sentido já existente, esse ensaio põe em evidência a função recalcadora dos sonhos e sua importância na transformação dos elementos enigmáticos, desagregadores e inquietantes da percepção - verdadeiros significantes enigmáticos, no sentido de Laplanche -, em representações passíveis de serem expressas discursivamente. O breve relato de um sonho de uma paciente traz uma excelente ilustração do que foi apresentado em termos metapsicológicos e serve de conclusão do ensaio.

O ensaio dedicado à transmissão da psicanálise e à formação psicanalítica conjuga uma exposição altamente lúcida e ponderada da experiência adquirida no Instituto Sedes Sapientiae, com considerações epistemológicas indispensáveis à devida apreciação dos principais problemas atinentes ao tema abordado. Para cada componente do tripé da formação psicanalítica - estudo teórico, análise pessoal e supervisão -, encontramos pelo menos uma ideia original nesse décimo primeiro ensaio. Mas contentemo-nos aqui em citar o princípio fundamental que serve de eixo para todos os outros: o elemento analítico, capaz de assegurar que a formação psicanalítica seja ela mesma analítica, no sentido ético de não se deixar influenciar por nenhum dogmatismo e preservar a mesma liberdade e abertura que caracterizam o enquadre de uma análise.

No décimo segundo ensaio, que trata da alienação e sublimação no trabalho, reencontramos o conceito kleiniano de reparação, dessa vez associado à ideia formulada pelo autor dos ensaios, segundo a qual todo trabalho construtivo tem sua base psíquica na possibilidade de reconstrução do bom objeto. Paralelamente a isso, a associação feita por Winnicott entre o trabalho e o brincar infantil, assim como alguns aspectos da contribuição de Christophe Dejours à psicopatologia do trabalho, conferem um caráter ao mesmo tempo original e abrangente a esse ensaio.

Finalmente, o décimo terceiro ensaio aborda algumas consequências da teoria freudiana sobre a ética. Partindo da exposição dos abalos causados pela teoria do inconsciente nos pressupostos da tradição filosófica que fundamentavam a teoria constituída da ética, as considerações avançam em direção ao impacto das teorias psicanalíticas da sexualidade sobre a ética social e culminam com a afirmação de que a radicalidade da experiência freudiana no sentido da desa-lienação do sujeito impõe uma ética da tolerância totalmente incompatível com objetivos adaptacionistas ou moralizantes.

Para concluir, podemos afirmar que os treze ensaios que compõem o volume fazem jus à consonância que evocam. Pois, se por um lado não possuem o pioneirismo dos famosos ensaios freudianos e não produzem o impacto das grandes descobertas, por outro não lhes falta originalidade, ousadia e rigor, assim como não abrem mão, em nenhum momento, do compromisso com o modo psicanalítico de criar e transmitir conhecimento. Seja para os que se iniciam no estudo da psicanálise ou para aqueles que com ela já estão familiarizados, a leitura dos Ensaios psicanalíticos, de Flávio Carvalho Ferraz, deixará a inequívoca sensação de que muito foi aprendido e de que se trata do trabalho não só de um grande psicanalista, como diz Rubens Volich na apresentação do livro, mas também de um autor com uma enorme capacidade de criar e transmitir conhecimento psicanalítico.

 

 

Correspondência:
Paulo de Carvalho Ribeiro
Rua Bambuí, 25, 1600
30210-490 Belo Horizonte, MG
icaro.bhz@terra.com.br

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