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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.3 São Paulo jul./set. 2012

 

INTERFACE

 

A prova pela imagem

 

The proof by the image

 

A prueba por la imagen

 

 

Georges Didi-HubermanI; Traduzido por Claudia Berliner

IFilósofo e historiador de arte, leciona na École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris), foi professor em diversas universidades estrangeiras, ganhador de prêmios (Académie des Beaux-Arts, Hans Reimer, Napoli e Humboldt), foi curador de exposições (L'Empreinte, Fables du lieu e Atlas), autor de mais de quarenta obras sobre a história e a teoria das imagens

Correspondência

 

 


RESUMO

A pergunta sobre a eficácia argumentativa das imagens (seja no campo do conhecimento ou no campo da ação) é respondida aqui com a noção de "prova" pela imagem, ou seja, a forma concreta como a imagem faz pensar e agir. Isso tudo é sublinhado por meio da obra de Bertolt Brecht, Walter Benjamin ou Ernst Bloch, analisando as montagens de imagens a partir das quais é possível um novo modo de pensar a história.

Palavras-chave: Bertolt Brecht; Walter Benjamin; Ernst Bloch; imagem; montagem; dialética; desordem; história.


ABSTRACT

The question on the argumentative efficacy of images (whether in the field of knowledge or in the field of action) is hereby answered through the notion of "proof " by the image, in other words, the concrete way which the image leads to thinking and acting. All this is underlined through the work of Bertolt Brecht, Walter Benjamin or Ernst Bloch, through the analysis of montages of images, from which a new way of thinking history is possible.

Keywords: Bertolt Brecht; Walter Benjamin; Ernst Bloch; image; montage; dialectic; disorder; history.


RESUMEN

La pregunta sobre la eficacia argumentativa de las imágenes (ya sea en el campo del conocimiento o en el campo de acción) es respondida aquí con la noción de "prueba" por la imagen, es decir, la forma concreta en que la imagen hace pensar y actuar. Todo esto es subrayado mediante la obra de Bertolt Brecht, Walter Benjamin o Ernst Bloch, analizando los montajes de imágenes a partir de los cuales es posible un nuevo modo de pensar sobre la historia.

Palabras clave: Bertolt Brecht; Walter Benjamin; Ernst Bloch; imagen; montaje; dialéctica; desorden; historia.


 

 

Que "prova" - e prova de quê - uma imagem supostamente nos dá? Uma prova é algo que geralmente se administra por meio de uma argumentação que, por sua vez, pede para ser exposta. Ora, as palavras prova e exposição podem ser entendidas de diversas maneiras, o que é muito problemático e, portanto, muito interessante colocar em ressonância. Quero apenas lembrar que no começo de seu belo livro Relações de força - subintitulado História, retórica, prova -, Carlo Ginzburg inspirou-se em uma divisa humanista, "provando et riprovando", lembrando que em toda prova talvez haja o gesto artesanal da sondagem, do teste, ou seja, o gesto heurístico de "tatear, como o fator de violão que bate delicadamente na madeira do instrumento" (Ginzburg, 2000, p. 11)." Quanto à exposição, ela muitas vezes está no cruzamento entre um sentido argumentativo e um sentido visual. Que fazer com essas dimensões desdobradas? Estarão definitivamente dissociadas? Caso não estejam, por que vias ajuntá-las? Abordarei essa questão por intermédio de um objeto específico - objeto de pensamento e objeto de imagens ao mesmo tempo -, que é o Arbeitsjournal ou Diário de trabalho, escrito por Bertolt Brecht em seus anos de exílio, durante a Segunda Guerra Mundial (Brecht, 1976).

 

Montagem

Quer se trate de expor um argumento teórico em seu Diário de trabalho - o que, quase sempre, é feito com a ajuda de imagens incidentes, o que é feito à prova de imagens, por assim dizer -, quer se trate de dramatizar um argumento histórico em peças teatrais como A vida de Galileu, em todos os casos a questão da montagem se impõe a Brecht. Só é possível mostrar, só é possível expor dispondo: não as coisas mesmas - pois dispor as coisas é fazer delas um quadro ou simples catálogo -, mas suas diferenças, seus entrechoques, suas confrontações, seus conflitos. A epistemologia brechtiana quase se poderia resumir em uma arte de dispor as diferenças. Ora, essa disposição, na medida em que pensa a copresença ou a coexistência sob o ângulo dinâmico do conflito, passa fatalmente por um trabalho destinado, por assim dizer, a despor as coisas, a desorganizar sua ordem de aparição. Um modo de mostrar toda disposição como um choque das heterogeneidades. A montagem é isto: só se mostra desmembrando, só se expõe dispondo, só se dispõe "despondo" primeiro. Só se monta mostrando os fossos que mobilizam cada tema ante todos os outros.

É um pouco como se, historicamente falando, as trincheiras abertas na Europa da Primeira Guerra Mundial tivessem suscitado, tanto no terreno estético quanto no das ciências humanas - pensemos em Georg Simmel, Sigmund Freud, Aby Warburg, Marc Bloch -, a decisão de mostrar por montagens, ou seja, por desarticulações e recomposições de qualquer coisa. A montagem seria um método de conhecimento e um procedimento formal brotados da guerra, um registro da "desordem do mundo". Seria a marca de nossa percepção do tempo desde os primeiros conflitos do século XX: teria se tornado o método moderno por excelência (Cf. notadamente Sitney, 1990; Teitelbaum, 1992; Bergius, 2000; Mobius, 2000). E é como tal que ela se apresenta precisamente na época em que Bertolt Brecht, entre outros escritores, outros artistas e outros pensadores, toma posição no debate estético e político do entreguerras.

Ernst Bloch foi uma das testemunhas - e um dos partidários - privilegiadas desse debate. Em Héritage de ce temps [Erbschaft dieser Zeit], publicado em 1935 e constantemente enriquecido com passagens redigidas até os anos cinquenta, esse autor pretendeu refutar os ataques de Georg Lukács contra a arte expressionista e a literatura moderna em geral (Bloch, 1935/1978). A arte moderna decompõe a ordem das coisas: desse ponto de vista, é preciso situar na mesma esfera estética obras tão diferentes como as de James Joyce e Franz Kafka, de Marcel Proust e Julien Green, de André Breton e Alfred Döblin (Bloch, 1935/1978, p. 222-231). Ora, Bertolt Brecht faz sem dúvida parte dessa paisagem, com sua obra literária que ele "testa no laboratório do palco graças à objetividade e à montagem" (p. 228. Cf. também p. 213-215, Sur L'Opéra de quat'sous; p. 231-236, Un léniniste du théâtre). Ao ler Héritage de ce temps, entende-se que Brecht praticou a montagem no campo dramatúrgico tal como Aby Warburg o fez no campo histórico, Igor Stravinski no campo musical (Bloch, 1935/1978, p. 215-222) ou Walter Benjamin no campo filosófico.

A montagem faz surgir e ajunta essas formas heterogêneas ignorando qualquer ordem de grandeza, qualquer hierarquia, ou seja, colocando-as no mesmo plano de proximidade, em posição de destaque. É o que Bloch, a respeito do livro Rua de mão única [Einbahns-trasse], publicado por Walter Benjamin em 1928, chama de a "forma da revista":

[É] uma forma de interrupção, enquanto forma de improvisação, em bruscos olhares transversais que captam detalhes e fragmentos, que por outro lado não buscam um "sistema". [...] A "revista" [...] aparece como uma improvisação pensada, um resto da coerência fissurada, uma sucessão de sonhos, aforismos, palavras de ordem entre as quais, no melhor dos casos, uma afinidade eletiva espera se instaurar transversalmente. Portanto, se a "revista", pelo método [argumentativo] que ela possibilita, é uma viagem através da época que se esvazia, o ensaio de Benjamin apresenta fotografias dessa viagem, ou, imediatamente melhor: uma fotomontagem (Bloch, 1935/1978, p. 341-342).

Portanto, no entender de Ernst Bloch, Rua de mão única radicaliza e torna filosófico um tipo de montagem que Piscator e Brecht tinham utilizado em seu teatro como uma "forma auxiliar" da narração épica. Mas Bloch percebe claramente que esse jogo subversivo de aspecto dadaísta, surrealista ou "anarquista", como ele diz, não existe sem um verdadeiro trabalho arqueológico destinado a levantar esse "inconsciente da visão" de que Benjamin falou de maneira tão profunda. Em suma, a aparência aleatória da montagem de heterogeneidades não existe sem uma interpretação argumentada das relações subjacentes: os erráticos fenômenos de superfície não existem sem um questionamento sobre as profundezas - no sentido freudiano do termo -, ainda que, filosoficamente falando, a "substância" tenha definitivamente cedido lugar ao movimento, ao "trabalho", ao agenciamento. Ora, é efetivamente graças à montagem que esse método consegue realizar esse duplo propósito e se pôr, portanto, como "marginal de modo essencial".

Brecht, por sua vez, reconheceu na montagem, e até na fotomontagem, um recurso fundamental da literatura moderna, a começar por Ulisses, de James Joyce, em relação ao qual reconhece que "ele modificou a situação do romance constituindo uma coleção de diferentes métodos de observação" agenciados de maneira heterogênea ou multiplicante (Brecht, 1970a, p. 73). Os romances ruins poderiam até ser reconhecidos, afirma Brecht nessa época, pelo fato de "não conterem nada de fotografável" (p. 57). Agora, os artistas devem, ao contrário, trabalhar para "saber o que é um documento", multiplicando os processos de confrontação, de comparação e de montagem documental (Brecht, 1970b, p.61).

Foi exatamente isso que, a partir de 1928, László Moholy-Nagy chamou de "desordem organizada" (Moholy-Nagy, 1928/1997, p. 227), ou o que, em seu artigo sobre a fotomontagem de 1931, Raoul Hausmann articulou em torno do termo, fundamental, "dialética das formas" (Formdialektik):

Se a primeira forma da fotomontagem consistia numa explosão de pontos de vista e numa interpenetração turbilhonante de vários níveis de imagens, superando em complexidade a pintura futurista, ela passou no entretempo por uma evolução que poderíamos chamar de construtiva. Por toda parte impôs-se a ideia de que o elemento ótico representa um meio de expressão de aspectos extremamente variados; no caso particular da fotomontagem, ele possibilita, por suas oposições de estruturas e de dimensões - entre o áspero e o liso, entre a vista aérea e o primeiro plano, entre a perspectiva e a superfície plana, por exemplo - uma variedade técnica muito grande, ou seja, a elaboração mais profunda da dialética das formas (Hausmann, 1931/1997, p. 232. Cf. também Lugon, 2001, p. 241-293).

 

Dialética

Des-por as coisas seria, no fim das contas, um modo de compreendê-las dialeticamente. Surge, contudo, a questão de saber o que devemos entender aqui por "dialética". O antigo verbo grego dialegesthaï significa controverter, argumentar, introduzir uma diferença (dia) no discurso (logos). Como confrontação entre opiniões divergentes a fim de chegar a um acordo sobre um sentido mutuamente aceito como verdadeiro, a dialética é, portanto, uma maneira de pensar ligada às primeiras manifestações do pensamento racional na Grécia antiga. Foi com Platão, como se sabe, que a dialética adquiriu o estatuto fundamental de um método de verdade que a aparentava, ou mesmo a identificava, com a teoria (theoría) e com a própria ciência (episteme). Quando, em seu Diário de trabalho, Bertolt Brecht evoca seus próprios textos literários como "teoria sob forma dialogada" (1976, p. 29), ele se coloca explicitamente na tradição dessa forma primeira da dialética filosófica. A dialética, afirma ele então, é "a única chance de se orientar" no pensamento confrontando diferentes pontos de vista sobre uma mesma questão (p. 63).

Assim, Brecht referiu-se com frequência a Sócrates (Cf. Irrlitz, 1986, p. 11-31). Mas não se contentava em imaginar um teatro que fosse "teoria sob forma dialogada": pensou também a filosofia como teatro, isto é, teatro dialético em que, de toda confrontação, eleva-se uma verdade (Cf. Subik, 2000). Logo, toda exposição argumentativa seria o teatro de seus próprios argumentos enfrentados ou ajuntados. Depois, Brecht descobriu um novo regime da dialética: momento revolucionário da filosofia, quando a dialética se torna, com Hegel, a própria estrutura das coisas e o método absoluto do pensar puro, o sistema do saber por excelência, o conhecimento último da história, o modo justo de postular a verdade em seu devir. E sabe-se que, em Brecht, essa nova orientação encontrará seu ponto culminante na assunção filosófica e política do pensamento marxista e leninista (Cf. Fischbach, 1976, p. 91-130; Wizisla, 1998, p. 35-46). O Diário de trabalho, ao lado de outros textos mais dogmáticos, contém vários testemunhos dessa posição: o artista deve fazer bem mais que inventar belas formas, deve também "combater conceitos" e substituí-los por outros (Brecht, 1976, p. 12). Por isso é que Brecht não lê a Estética de Hegel sem sua Filosofia da história, e se recusa a separar a história da arte da história política, considerando ambas sob o ângulo das grandes "polaridades" conflituosas que só o método dialético pode revelar (Brecht, 1976, p. 32-33). (Dessa reciprocidade entre pensamento do teatro e filosofia política, Louis Althusser concluiu que Brecht transformou o teatro assim como Marx fez com a filosofia, ou seja, introduzindo a política no pensamento da arte como Marx fizera no pensamento da história) (Althusser, 1968/1997, p. 561-577).

Ora, as coisas são bem mais complexas do que uma simples aplicação da dialética filosófica à dramaturgia e à arte permitiria pensar. Em um texto de 1935 intitulado Cinq Difficultés pour écrire la vérité [As cinco dificuldades para escrever a verdade] - texto inicialmente destinado à difusão clandestina na Alemanha hitlerista -, Brecht afirma basicamente que a dialética não é apenas uma questão de método: é preciso ter a coragem de escrever a verdade, a inteligência de reconhecer as situações mais fecundas, o discernimento para saber a quem confiar essa verdade, a astúcia para difundi-la e, por fim, a arte de torná-la manejável como uma arma. Donde a necessidade

[...] de interrogar todas as coisas sobre suas características transitórias e variáveis. Pois os homens no poder odeiam as transformações, gostariam que tudo permanecesse imóvel, se possível por mil anos, que a luta cessasse e que o sol interrompesse seu percurso. Então, todos perderiam o apetite e mais ninguém pediria para comer. Mais ninguém responderia quando eles abrem fogo, a salva deles seria obrigatoriamente a última. [...] Mas é possível recusar os lugares-comuns sobre o destino, demonstrar que é o próprio homem que faz seu destino (Brecht, 1970c, p. 12).

Nessa concomitância e nessa complexidade, o artista vê-se irresistivelmente levado a transformar os esquemas dialéticos de escola propostos pela filosofia hegeliana e pela crítica marxista. É isso que distingue fundamentalmente o valor de uso artístico da dialética de seu valor de uso filosófico ou doutrinal. Ali onde o filósofo neo-hegeliano constrói argumentos a fim de propor a verdade, o artista da montagem fabrica heterogeneidades a fim de expor ou de des-por a verdade, em uma ordem que já não é precisamente a ordem das razões, e sim a das "correspondências" (para falar como Baudelaire), das "afinidades eletivas" (para falar como Goethe e Benjamin), dos "rasgões" (para falar como Georges Bataille) ou das "atrações" (para falar como Eisenstein).

Um modo de expor a verdade desorganizando - e não explicando - as coisas. A dialética do dramaturgo, assim como a de artistas ou de pensadores não acadêmicos como foram, por exemplo, Raoul Hausmann, Eisenstein, Georges Bataille, Walter Benjamin ou Carl Einstein (Cf. Didi-Huberman, 1995; 2000), é uma dialética do montador, ou seja, daquele que "des-põe", separando e depois rejuntando seus elementos no ponto de sua mais improvável relação.

 

Desordem

Como nos Documentos surrealistas de Carl Einstein e de Georges Bataille, como nas montagens explosivas de Eisenstein e de Raoul Hausmann, a dialética brechtiana é sobretudo concreta - lembremos que ele inscreveu nas vigas de sua sala de trabalho: "A verdade é concreta" (Berlau , 1955/1985, p. 232) -, isto é, ela é singular, parcial, lacunar, passageira como uma estrela cadente. O observador dos documentos colados nas folhas do Arbeitsjournal não tem, portanto, "a verdade" à sua disposição, mas vê pipocos, restos, destroços de verdade dispersarem-se aqui e acolá na "des-posição" das imagens, de sorte que espectador só haverá caso se torne o constante expectador da verdade em jogo: "O gestus do observador e sua atitude [são] os de alguém que espera" (Berlau, 1955/1985, p. 232).

Diante de uma reunião de gestos tão diferentes quanto os de Pio XII de mãos erguidas, de Rommel com a vareta apontada para o seu mapa militar e das mulheres russas com os corpos contristados, apertando cadáveres entre seus braços (fig. 1), o observador, com efeito, não dispõe de nenhuma certeza sobre a determinação dessa relação. Mas ele pressente - "expectador" nesse sentido, pois terá de retrabalhar sua intuição, confirmá-la se possível - que uma sobredeterminação está em funcionamento nessa montagem de gestos. Walter Benjamin foi notável ao esclarecer a força épica e teórica dessa abordagem do gesto humano: em primeiro lugar, ela é documental ("os gestos são encontrados na realidade"); em segundo lugar, ela é recortada ("esse caráter fechado, circunscrevendo numa moldura rigorosa cada um dos elementos de uma atitude [...] constitui um dos fenômenos dialéticos fundamentais do gesto"); em terceiro lugar, ela está defasada da ação, do drama, da cronologia, que ela quebra mediante sua interrupção ("quanto mais frequentemente interrompemos o protagonista de uma ação, mais gestos obtemos; em consequência, para o teatro épico, a interrupção da ação está em primeiro plano"); em quarto lugar, ela é suspensiva, retardada, detida até ("é o retardamento devido à interrupção e a decupagem em episódios devido ao enquadramento que fazem do teatro gestual um teatro épico") (Benjamin, 1931/2003, p. 35-36).

 

 

Ora, é justamente esse trabalho formal da montagem - recorte, interrupção, defasa-gem, retardo - que, no entender de Benjamin, faz aqui, da poética brechtiana, um autêntico trabalho argumentativo e dialético da imagem, trabalho realizado desde o interior mesmo do gesto documentado, esse gesto cuja surpresa uma montagem fotográfica ou uma sequência épica podem nos proporcionar.

A respeito dessas montagens, Benjamin fala quase liricamente de fazer "a existência abandonar o leito do tempo, espumar muito alto" - à imagem da onda, do turbilhão, da tempestade, mas também do trabalho de montagem fílmica: isso significa, em primeiro lugar, desmontar a ordem, espacial e temporal, das coisas. Pio XII, Rommel e os cadáveres de civis russos só são postos em sua mesa de montagem e em sua própria contemporaneidade a partir de um ato primeiro de desmontagem-remontagem que os associa a partir de um distanciamento geográfico, mas também "fora do tempo" de sua cronologia factual. Os gestos deles, contudo, se correspondem rigorosamente, à maneira de argumentos ligados todos ao mesmo problema, ao mesmo momento da história, à mesma guerra: uns lavam as mãos (abençoam todo o mundo para não ter de agir); outros apontam com a vareta o objetivo militar a ser destruído; e aos últimos, em baixo, só resta lamentar-se sobre os cadáveres de seus familiares.

Ao fazer essa verdade espumar para "fora do tempo" linear ou literal, a desmontagem brechtiana nos permite perceber tudo o que atravessa sintomaticamente a ordem dos discursos. E, em primeiro lugar, suas contradições, que todo pensamento da sobredeterminação não pode deixar de revelar:

Os livros de história e as peças de teatro geralmente indicam muito poucos motivos para as ações dos personagens. Isso leva a crer que o ato decorreu de um motivo único. É uma maneira infeliz de apresentar as coisas, pois [...] é preciso descobrir todo o feixe de motivos sem os quais um ato é em geral impossível. Ora, em cada feixe de motivos há contradições. [...] O caráter transformá-vel do mundo depende de suas contradições (Brecht, 1970d, p. 123; 1999, p. 183).

Entende-se, então, que a "dialética do montador" desorganiza radicalmente o teor de previsibilidade que se podia legitimamente esperar de uma "dialética filosófica", que descrevia os progressos da razão na história. A dialética do montador - do artista, do animador -, por dar o devido lugar às contradições não resolvidas, às velocidades de surgimento e às descontinuidades -, apenas "des-põe" as coisas, fazendo experimentar sua intrínseca vocação para a desordem. Pois, no terreno histórico e político, não se pode certamente argumentar sem expor as falhas, os hiatos, os sintomas. "Ao aplicar os princípios", recomenda Brecht, "não se deve temer as brechas. É sempre útil lembrar que se não faltaram boas razões para erigir esses princípios, isso só quer dizer que as boas razões prevaleceram sobre as razões contrárias. Por essas brechas revelam-se essas razões contrárias" (Brecht, 1970d, p. 138).

Portanto, qualquer dialética da montagem passa obrigatoriamente por uma sensação de desordem. Assim, no dia 21 de janeiro de 1942, Brecht anota em seu Diário que seu próprio trabalho literário e teórico lhe parece uma perpétua transgressão dos princípios que ele mesmo, no entanto, adotou quando leu Hegel, Marx ou Lênin. Mas "os limites são feitos justamente para serem transgredidos", afirma ele divertido, o que implica - como ele completará no dia seguinte - não utilizar a dialética em um sentido unicamente "relativista": "A dialética força você precisamente a detectar e a utilizar o conflito em todos os processos, instituições e representações" (Brecht, 1976, p. 240-241). A desordem é introduzida pelo artista na dialética ou como dialética porque ele manipula esta última sem jamais parar de modificar suas regras ou seus jogos de linguagem por meio de um constante colocar à prova (a prova de que fala Ginzburg).

 

Exposição

Essas "correspondências críticas", suscitadas pela copresença de imagens inesperadas no curso de um argumento escrito, florescem por toda parte no Arbeitsjournal, dando-lhe sua singular potência estética, mas também teórica. Em 16 de maio de 1942, por exemplo, Brecht se indaga, ao ler uma obra de história das ciências, sobre as relações entre o teorema de Pitágoras e seu desenho ao mesmo tempo ilustrativo e operatório (Brecht, 1976, p. 287, fig. 2)1. Mas a página seguinte cria um espantoso despropósito: nela vemos Hitler falando seriamente com um membro de seu estado-maior - trata-se da frente russa, claro -, e logo abaixo, uma vista dos poços de petróleo de Baku, no mar Cáspio (p. 288, fig. 3). Essa relação entre imagens não é comentada. Pior: é direta e anacronicamente seguida de um achado arqueológico, uma gravura magdaleniana encontrada na caverna de Maux, em Ariège2 (Brecht, 1976, p. 289, fig. 4).

 

 

 

 

 

 

Tem-se, então, a impressão de que o pensamento extravasa ou se dispersa, que a exposição tabular das imagens destrói ou ofusca totalmente a exposição lógica do argumento que explicaria suas relações. Mas não é nada disso se entendermos que o argumento deve ser estabelecido de maneira regressiva. Com efeito, basta olhar primeiro o desenho do bisão pré-histórico, a quem uma flecha esquematicamente indica - e atinge - o coração. Brecht escreve aqui que "o conhecimento do lugar onde se situa o coração do bisão confere de todo modo ao caçador poderes mágicos" (p. 289), o que é um modo de designar o poder "epistemodesejante" da imagem: por um lado, ela de fato demonstra um conhecimento que vai além dos aspectos visíveis (embora o bisão esteja, por certo, notavelmente representado, o que conta continua sendo, por meio do lugar indicado pela flecha, o órgão invisível do coração que a flecha deve atingir para vencer o animal); por outro lado, ela expressa um desejo magicamente perenizado, na parede da caverna, pelo desenho da flecha que é, antes de mais nada, o desenho de um desígnio, atingir seu objetivo vital.

Basta, então, olhar novamente o documento de 1942 para entender - mediante montagens e mediante imagens interpostas - que, para atingir Hitler no coração, para derrubá-lo, será preciso primeiro atirar a flecha contra a indústria petrolífera, o nervo ou "coração" da guerra. Eis, portanto, onde opera a montagem, nessa relação constantemente tensa entre memória (o bisão pré-histórico) e presente (a campanha da Rússia), entre presente (Hitler continua avançando) e desejo (Hitler deve ser vencido), entre conhecimento descritivo e magia prospectiva. Sabe-se que Aby Warburg tentou, na época da Primeira Guerra Mundial, esclarecer todos esses aspectos epistemomágicos das imagens políticas (Warburg, 1920/1990).

Próximo desse pensamento, Walter Benjamin escreveu em 1936 que o poder mimético deve ser entendido, antropologicamente, como uma dialética que produz certa forma de conhecimento (mostrar onde se encontra o órgão vital...) e indica certa forma de ação (... para matar o animal ou o inimigo), tudo isso na mesma forma estética constituída pelo movimento gráfico - ou coreográfico - inventado para a ocasião:

Sabemos que o corpo humano é o primeiro material sobre o qual se exerce o poder mimético, e seria preciso tirar proveito disso para a pré-história das artes com mais insistência do que se fez até agora. Seria preciso se perguntar se a mais antiga mímesis dos objetos na representação dançada e pictórica não repousa em grande medida na mímesis das operações durante as quais o homem primitivo entrava em contato com esses objetos. O homem da idade da pedra talvez desenhasse o bisão de forma tão incomparável apenas porque a mão que manejava a ponta ainda se lembrava do arco com o qual ela tinha abatido o animal (Benjamin, 2001, p. 160).

Brecht no trabalho e no jogo de associação, Brecht manipulando desde o exílio essas imagens de Adolf Hitler e de bestas abatidas - esse Brecht foi, portanto, um argumentador e um imaginativo por excelência, um montador ou mesmo, até certo ponto, um lançador de sortes históricas. Um "vidente", em todo caso, que entregava às imagens o cuidado de criar "correspondências críticas" entre o conhecimento e a ação. Há, com frequência, ingenuidade nesse gesto. Mas, justamente, "a ingenuidade é um traço próprio tanto dos velhos como das crianças, e é o homem maduro que contém em si tanto a criança quanto o velho" (Brecht, 1970e, p. 40). Por certo que o Arbeitsjournal não tem nada de trabalho de uma criança ou de um velho: é o trabalho de um homem maduro, sem dúvida. Ao jogar com as imagens, contudo, Brecht compõe incessantemente efeitos de interpretações e de temporalidades heterogêneas, de modo que não teme as regressões abissais para a pré-história, nem as projeções vertiginosas rumo ao futuro mais inverificável. Sua experimentação com as imagens é apenas outra maneira de expressar sua experimentação com a história em curso - seu principal objeto de pensamento e de angústia -, uma espécie de jogo com o destino desde sua situação de exílio.

Um último exemplo: é quando, entre uma atitude de Mussolini e dois gestos de Hitler, Brecht nos mostra - interpõe, monta - três momentos, fixados pelo microscópio elétrico, da destruição de bacilos por fagócitos (Brecht, 1976, p. 136-139, fig. 5). Será o sábio que olha assim o campo de batalha no microscópio, ele que, por outro lado, vê "a guerra aparecer como um campo gigantesco, que não deixa de se parecer com os campos da nova física" (p. 157-158)? Ou será a criança que, na embriaguez das imagens - soldados reais, soldados de chumbo, cubos de madeira, micróbios, que importa? -, "certifica-se sozinha do mais próximo e do mais distante, e nunca de um sem o outro", ao ver tudo isso, por exemplo, no esmagamento real das cidades destruídas (p. 130, 275, 367, fig. 6)? Não é decerto fortuito o fato de que, no Diário de trabalho, siga-se diretamente, em 1941 - embora com dois meses de distância -, uma descrição da guerra aérea, com sua "total ruptura [...] em relação à vida", e o relato transtornado da morte de Grete Steffin, relato a distância, mas em que cada detalhe, até os lobos pulmonares da doente, nos é tão estranhamente acessível (p. 192-194).

 

 

 

 

O Diário de trabalho e o ABC da guerra, como montagens imaginativas - elementos documentais mesclados com movimentos líricos -, correspondem exatamente a essa dupla dimensão, a esse ritmo em perpétuo vaivém: sístole ou contração do ver (é o regime necessariamente histórico e focalizado do trabalho brechtiano), diástole ou dilatação da videncia (é o regime anacrônico e disperso). Charles Baudelaire - antes de ser comentado por Walter Benjamin e de este enveredar filosoficamente por sua trilha - já tinha chamado de imaginação essa dupla faculdade de observação e de extrapolação:

A Imaginação não é a fantasia; tampouco é a sensibilidade, embora seja difícil conceber um homem imaginativo que não seja sensível. A Imaginação é uma faculdade [...] que percebe em primeiro lugar, independentemente dos métodos filosóficos, as relações íntimas e secretas entre as coisas, as correspondências e as analogias. As honras e funções que ele confere a essa faculdade lhe dão tamanho valor [...] que um sábio sem imaginação mostra-se apenas como falso sábio ou, no mínimo, como sábio incompleto (Baudelaire, 1857, p. 329, citado parcialmente por Benjamin, 1989, p. 300).

 

Referências

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Correspondência:
Georges Didi-Huberman
EHESS (Siège)
190-198 avenue de France 75244
Paris cedex 13
georges.didi-huberman@ehess.fr

Recebido em 19.6.2012
Aceito em 24.7.2012

 

 

1 Na verdade, trata-se de um teorema de Tales, como explica a obra a que Brecht faz referência aqui: Singer, (1941, p. 9) [correspondente à p. 107 do Vol. 2 da edição brasileira do Diário].
2  O próprio desenho é extraído de Singer (1941, p. 3).

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