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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.3 São Paulo jul./set. 2012

 

INTERFACE

 

Invenção e memória na antropofagia oswaldiana1

 

Invention and memory in Oswald's anthropophagy

 

Invención y memoria en la antropofagia oswaldiana

 

 

Yudith Rosenbaum

Este trabalho baseia-se em conferência sobre o escritor Oswald de Andrade, pronunciada por ocasião dos 30 anos do Colégio Oswald, em abril de 2012. As reflexões sobre antropofagia e psicanálise foram acrescentadas posteriormente para a escrita do presente texto

Correspondência

 

 


RESUMO

Este ensaio pretende discutir algumas relações entre a antropofagia do escritor modernista Oswald de Andrade e a psicanálise, inserindo o debate no contexto das vanguardas europeias. O texto de Freud, Totem e tabu, também é convocado para dialogar com a proposta oswaldiana, tentando iluminar algumas afinidades entre o trabalho analítico e a metáfora da antropofagia frente ao processo de subjetivação.

Palavras-chave: Oswald de Andrade; antropofagia; psicanálise; vanguarda.


ABSTRACT

This essay intends to discuss some relations between modernist writer Oswald de Andrade's anthropophagy and psychoanalysis, placing the debate in the context of European Avant-garde. Freud's essay, Totem and Tabu, is also brought to dialogue with Oswald's ideas, illuminating some correlations between psychoanalysis and the anthropophagic metaphor in terms of the process of subjectivation.

Keywords: Oswald de Andrade; anthropophagy; psychoanalysis; avant-garde.


RESUMEN

Este ensayo pretende discutir algunas relaciones entre la antropofagia del escritor modernista Oswald de Andrade y el psicoanálisis, insertando el debate en el contexto de las vanguardias europeas. El texto de Freud, Tótem y Tabú, también es convocado para dialogar con la propuesta oswaldiana, intentando iluminar algunas similitudes entre el trabajo analítico y la metáfora de la antropofagia ante el proceso de subjetivación.

Palabras clave: Oswald de Andrade; antropofagia; psicoanálisis; vanguardia.


 

 

I

Só a antropofagia nos une. Socialmente,
Economicamente, Filosoficamente.

(Andrade, O., 1928/1990).

Assim começa o conhecido "Manifesto antropófago", de Oswald de Andrade (18901954), lançado em 1928 no primeiro número da Revista de Antropofagia. Ele se fazia acompanhar pelo famoso símbolo do modernismo brasileiro, o quadro Abaporu, pintado por Tarsila do Amaral e presenteado ao marido Oswald no mesmo ano. O título, como se sabe, é uma montagem de termos do tupi guarani: aba (homem), porá (gente) e ú (comer). A tradução "Homem que come gente" - o canibal, portanto - sintetizava a proposta do grupo modernista, encabeçado pela excêntrica e polêmica figura de Oswald de Andrade, e que teve na rapsódia Macunaíma (1928/1996), de Mário de Andrade, uma das suas maiores realizações.

Se puxo o fio da antropofagia para comentar aqui algumas ressonâncias da polaridade "tradição-invenção" é porque é possível concebê-la como uma metáfora inequívoca da passagem entre o arcaico e o recente, o externo e o interno, o estrangeiro e o familiar, o velho e o novo, a memória e a descoberta. Passagem esta transformadora, transfiguradora, analógica ao bricoleur que reúne destroços para compor um novo objeto, longe de suas antigas funções, redescoberto pelo olhar artístico criador.

O movimento antropofágico extrai sua força de um processo universal: a construção de si a partir da alteridade e da diferença, encontrando na figura do canibal um protótipo de uma atitude estético-cultural maior. Lembremos o "Manifesto" já citado: "Só me interessa o que não é meu. Lei do Homem, Lei do antropófago" (Andrade, O., 1928/1990, p. 47). É desta possibilidade de se alimentar do que é alheio que a espécie humana avançaria do estado de natureza para a cultura, na perspectiva das vanguardas antropófagas.

No caso da reivindicação antropofágica oswaldiana, deglute-se, rejeita-se, assimila-se e se supera em nome da autonomia, tanto nacional quanto pessoal. Para proceder à revisão do processo de dependência colonial, Oswald elege o episódio histórico da deglutição do Bispo D. Pedro Fernandes Sardinha pelos canibais da tribo dos índios caetés, em 16 de julho de 15562. Como emblema da formação de nossa identidade cultural, a devoração do português pelos índios ainda faz eco na modernidade, não mais pela excentricidade de modificar o ano da descoberta do Brasil para 1556 (como propunha, com toda seriedade, Oswald de Andrade), mas por desdobrar-se em matriz das formas de conhecimento e de subjetivação. É por esta seara que pretendo tocar o assunto, trazendo à tona um escritor redescoberto pela tropicália nos anos 60, e que faz ressoar dimensões psicanalíticas importantes.

Antes de tudo, é bom que se diga que Oswald era uma personalidade literária de múltiplas faces, e todas contraditórias entre si: católico conservador até a maturidade, revolucionário no Modernismo, aristocrata de família abastada, comunista por um breve período, rebelde e inconformado com as instituições acadêmicas (mas capaz de prestar concurso para professor na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP - e perder para Antonio Candido...). Poeta, romancista, dramaturgo, jornalista e acima de tudo briguento, contestador, genial e enfant terrible do movimento modernista. Enfim, estamos tratando de uma personalidade intratável, que fez valer em atitudes, pensamentos e escritos a frase do "Manifesto antropófago": "Contra a realidade social, vestida e cadastrada por Freud - a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama" (Andrade, O., 1928/1990, p. 52).

Vale lembrar que a utopia de Pindorama, corolário da vertente primitivista dos antropófagos modernistas, constrói o mito de um mundo destituído do falocentrismo patriarcal, em um recuo ao Brasil pré-cabralino. A sociedade igualitária, que estaria nas origens do Brasil primitivo, guarda no pensamento selvagem e livre das sublimações intelectuais um marco de nossa história a ser reencenada no mundo da atualidade oswaldiana.

Trata-se, na verdade, de erigir um passado trans-histórico, capaz de inverter as coordenadas temporais e colocar como futuro utópico a comunhão edênica das origens. Como se lê no "Manifesto" de 1928: "Já tínhamos o comunismo, já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro" (Andrade, O., 1928/1990, p. 49). Unir as pontas do presente e do passado, para ressituar o futuro. O que ressoa da psicanálise não parece mera coincidência. Dizia Mário de Andrade, em seu Prefácio interessantíssimo: "Somos na realidade os primitivos duma nova era" (Andrade, M., 1922/1980, p. 29). Não seria esse resgate, sem dúvida regressivo, um passo necessário para a construção de uma subjetividade liberta dos recalques implantados na memória paralisante? Oswald completaria no "Manifesto antropófago": "Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada" (Andrade, O., 1928/1990, p. 51).

Mas quais são as fontes da antropofagia oswaldiana e o que dela se pode aproveitar para pensar possíveis afinidades com o trabalho analítico? As respostas já foram ensaiadas por várias vozes nos diversos campos do saber implicados nesta interface, como a filosofia, a literatura e a psicanálise. Tratarei aqui apenas de reunir, em torno da figura de Oswald de Andrade, algumas linhas de força que se desdobram deste caldo cultural.

 

II

A antropofagia literária do modernismo brasileiro apresenta uma congenialidade com o Zeitgeist europeu dos fins do século XIX e início do XX. A temática do canibalismo e suas imagens deglutidoras violentas dominavam o imaginário de uma Europa saída da primeira guerra e armando-se para a segunda. Benedito Nunes, em ensaio sobre o assunto, mostrou como as vanguardas dos anos vinte reuniram-se em torno do primitivismo, influenciado pela arqueologia e etnologia modernas, "uma trazendo as revelações da arte pré-histórica e a outra o impacto da arte africana" (Nunes, 1979, p. 18). Em suas palavras:

A imagem antropofágica, que estava no ar, pertencia ao mesmo conjunto, ao mesmo sistema de ideias, ao mesmo repertório comum que resultou da primitividade descoberta e valorizada, e a que se integravam, igualmente na ordem dos conceitos, a mentalidade mágica de Lévy-Bruhl e o inconsciente freudiano. É muito significativo que então a vanguarda literária, em boa parte sob a influência de Nietzsche, pensador que marcou a formação intelectual de Oswald de Andrade, e para quem a consciência do homem sem ressentimento equivalia à capacidade fisiológica de bem digerir - se tivesse apossado do canibal, dele fazendo um símbolo, no mesmo momento em que a Psicanálise começaria a desnudar, no homem normal, civilizado, comportamentos neuróticos, que podem gravitar em torno da mesma simbologia da interdição, presente no ato da antropofagia ritual (Nunes, 1979, p. 18).

O ensaio "Totem e tabu", de Freud, publicado em 1913, está certamente suposto nesta reflexão de Nunes, uma vez que ali Freud associa o canibalismo ao parricídio, na passagem da horda ao clã. A destruição do pai terrível converge para a compreensão metafórica da destruição e incorporação do outro para a afirmação positiva da cultura e do sujeito.

Lembremos, ainda seguindo Freud, que no processo de devoração do tirano pelos filhos revoltados interioriza-se a autoridade paterna e proíbe-se o incesto. O ritual do repasto canibalístico transforma, por sua repetição, o tabu em totem. Podemos dizer, transpondo a metáfora antropológica para o processo analítico, que a cada nova tentativa de investir contra a ordem que o constrange, o sujeito em análise atualiza, no "tempo tabu" da resistência, uma outra vertente temporal simultânea e convergente: o tempo da mítica transgressão psíquica, ação parricida que metamorfoseou o pai agressor em totem.

A celebração da refeição totêmica ganha, na interpretação psicanalítica, um sentido sociológico e epistemológico fundamental. É pela devoração da potência do inimigo - cujas partes incorporadas estão investidas de forças especiais - que os povos estruturam-se e se consolidam socialmente. O trecho em que Freud afirma sua hipótese traz a palavra "identificação", tão central na construção do sujeito humano. Para entender os primórdios do totemismo na horda primeva, Freud busca recompor a trajetória do suposto ato canibal dos filhos expulsos do clã em relação ao pai tirânico:

Certo dia, os irmãos que tinham sido expulsos retornaram juntos, mataram e devoraram o pai, colocando assim um fim à horda patriarcal. Unidos, tiveram a coragem de fazê-lo e foram bem sucedidos no que lhes teria sido impossível fazer individualmente. (Algum avanço cultural, talvez o domínio de uma nova arma, proporcionou-lhes um senso de força superior.) Selvagens canibais como eram, não é preciso dizer que não apenas matavam, mas também devoravam a vítima. O violento pai primevo fora sem dúvida o temido e invejado modelo de cada um do grupo de irmãos: e, pelo ato de devorá-lo, realizavam a identificação com ele, cada um deles adquirindo uma parte de sua força. A refeição totêmica, que é talvez o mais antigo festival da humanidade, seria assim uma repetição e uma comemoração desse ato memorável e criminoso, que foi o começo de tantas coisas: da organização social, das restrições morais e da religião (Freud, 1913/1974, p. 170).

O "começo de tantas coisas" tem seu seguimento, como se sabe pelo ensaio de Freud, no sentimento de culpa em relação ao assassinato do pai (a afeição recalcada se faz sentir após o parricídio). "O pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo" (Freud, 1913/1974, p. 171). Identificados à lei do pai, os membros do clã erigem os dois tabus que correspondem aos dois desejos reprimidos do complexo de Édipo: "anularam o próprio ato proibindo a morte do totem, o substituto do pai; e renunciaram aos seus frutos abrindo mão da reivindicação às mulheres que agora tinham sido libertadas" (Freud, 1913/1974, p. 172).

Repetição e comemoração do "mais antigo festival da humanidade" continuam a recomeçar no imaginário da neurose, na análise do sujeito, compelido a repetir e renovar o gesto ritualístico que promove identificações com os objetos do mundo e com as atitudes de seus pares. Também prossegue esse eterno recomeço nas imperiosas superações de impasses em que o amor e o ódio conflitam e movimentam o sujeito do desejo.

 

III

Voltando às relações entre Oswald e as vanguardas, as afinidades entre os autores da-daístas, futuristas, cubistas e surrealistas, apesar de suas inúmeras diferenças (citemos, entre outros, Apollinaire, Tristan Tzara, Alfred Jarry, Jean Cocteau, Marinetti, Blaise Cendrars, Ribemont-Dessaignes, Picabia), ressoam na sensibilidade oswaldiana, que bebe nesta fonte exterior para forjar sua particular antropofagia, semelhante e diversa das de seus contemporâneos europeus. Aliás, está ele mesmo exercendo sua devoração crítica, plasmando uma nova maneira de abordar o mundo, o Brasil e a si mesmo. Pelo viés da paródia, da blague, da anarquia e do riso, Oswald de Andrade canibalizou tanto o alimento europeu, quanto o repertório cultural híbrido brasileiro, conjugando em síntese criativa e original as águas profundas do arcaísmo primitivista e as inovações tecnológicas da era moderna.

O modernismo brasileiro, como se sabe, viveu dessa dupla face: de um lado, a valorização do pensamento mito-poético, atrelado à lógica do imaginário e oposto ao pensar domesticado e pragmático; de outro, a cultura intelectual, as construções da civilização industrial, o mundo da máquina. "A floresta e a escola", como afirma o "Manifesto pau-brasil". Faces apenas aparentemente antitéticas, diria Oswald. Como temporalidades justapostas que se auto-alimentam, o moderno e o arcaico confluem para o mesmo rio das grandes criações. Em outro ensaio sobre o tema, Nunes explicita a proposta que busca conciliar, pelo ímpeto da rebelião, a barbárie e a civilização:

Como animal em contínuo processo de adaptação biopsíquica, reagindo contra o meio e criando seu ambiente, o homem tem a sua existência limitada a coordenadas espaciais que passam pelo lugar em que habita, e que o ligam, para sempre, a uma região determinada. A metafísica bárbara é também localista e tribal: o sentimento órfico se regionaliza, e produz, segundo a terra em que vivemos, uma imagem de Deus. E é ainda nos limites de seu espaço regional que o homem antropofágico se converte em bárbaro tecnizado de Keyserling, ávido de progresso, assimilando a técnica e utilizando-se da máquina para acelerar a sua libertação moral e política. Criaríamos assim, pelo caminho do máximo progresso material, um novo estado de natureza, que nos devolve à infância da espécie, onde, numa sociedade matriarcal, alcançaremos na alegria [...] a prova dos nove de nossa felicidade (Nunes, 1990, p. 23).

Antes de passar às demais contribuições revolucionárias de Oswald ao Modernismo e à cultura brasileira, faço rapidamente um apanhado das principais transformações pelas quais passa a história do país nos fins do século XIX às primeiras décadas do século XX, como pano de fundo para o surgimento dessa consciência voltada para a invenção do novo a partir da apropriação do alheio. A mirada antropofágica não é só herdeira do solo europeu, mas sobretudo das tensões entre tradição e modernidade vividas pelo escritor no Brasil ao longo de sua vida.

A veia transgressora e iconoclasta de Oswald se desenvolve ao largo de um período vertiginoso da história brasileira. Estamos em 1890, data de seu nascimento. São Paulo era uma província de 200 mil habitantes, atrasada em sua mentalidade ainda imperial. Mas, logo se instalam aqui as Indústrias Matarazzo, estimuladas pela economia do café, e vemos prosperar a industrialização em seu primeiro surto de modernização no Estado. A proclamação da República tinha acabado de acontecer, bem como a abolição da escravatura, mas ainda éramos uma sociedade desigual e conservadora, convivendo com os resquícios de um sistema falido, sem ainda ver estabilizar-se uma nova economia.

Assiste-se à primeira onda importante de imigrantes para substituir a mão de obra escrava (lembremos que em 1897 havia mais italianos do que brasileiros em São Paulo) e o Brasil vive a passagem da economia rural para a indústria. A velha oligarquia dos proprietários de terras vai cedendo lugar (não sem tensão e pressões) aos burgueses ligados à indústria, à burguesia mercantil, à classe média crescente e, do outro lado, à classe proletária. Tudo isso iria culminar, como sabemos, na revolução de trinta e no nascimento do Brasil moderno.

Oswald viveu esse tumultuado período, testemunhou e participou das grandes transformações que se deram do Império à república velha, e desta à revolução de 30, vivendo também a ditadura do Estado Novo de Vargas, a primeira e a segunda guerras, falecendo em 1954, de uma longa e terrível doença, que o consumiu lentamente. Em suma, o teórico do movimento antropofágico brasileiro molda sua inquietação e seu inconformismo pari passu com o embate dialético entre o velho e o novo no país. Tradição e invenção, portanto, se interpenetram para forjar a obra artística e intelectual de Oswald, que desentranha desse cadinho contraditório uma visão de mundo singular.

São Paulo, nas primeiras décadas do século XX, cresce de forma vertiginosa, vivendo a euforia do progresso e da tecnologia. Basta ver o impacto da "maravilha mecânica", que foi o bonde elétrico, com repercussões grandes na obra de Oswald3. Ou ainda o modo exibido como ele andava pelas ruas da cidade, com seu Cadillac verde, em uma verdadeira fascinação pelo moderno.

O momento era fértil para a renovação que a sociedade paulistana precisava para sair de uma estagnação mental e cultural, que a dependência colonial instaurou no Brasil. Todos os avanços urbanos da época - luz elétrica, rádio, automóvel, propaganda, cinema, fotografia etc - não eram acompanhados por uma evolução da mentalidade cultural, ligada ainda aos bacharéis oradores do parnasianismo, que faziam uma literatura bastante aborrecida, aos olhos do jovem rebelde Oswald de Andrade. Bem longe do povo e da riqueza da língua matizada pelas migrações, pelo folclore, pela fala coloquial, tínhamos a linguagem empolada e retórica de Coelho Neto, de Rui Barbosa, de Alberto de Oliveira. Essas formas cultas e convencionais da língua não representavam mais o Brasil novo, e sim um Brasil solene, sem humor, pouco sensível às mudanças rápidas na Europa e no Brasil. Ou nas palavras chistosas do "Manifesto pau-brasil": "Só não se inventou uma máquina de fazer versos - já havia o poeta parnasiano" (Andrade, O., 1924/1990, p. 43).

Oswald de Andrade, com sua absoluta irreverência, seu anarquismo inconformista, sua intolerância ao velho e com seu poder verbal demolidor chamava, por exemplo, o respeitadíssimo Castro Alves de "batateiro épico da literatura brasileira". Não era assim, certamente, que se comportava a elite provinciana nacional em relação a seus ícones.

Quando Oswald inicia, em 1912, suas viagens a Paris que, como vimos, efervescia nos ares das vanguardas artísticas da época, traz de lá um impulso de renovação imenso, uma energia de destruição das formas amortecidas, de ruptura radical com os meios expressivos da linguagem tradicional. Oswald será a ponta de lança do movimento modernista, contra a retórica, contra o discursivo, contra a lógica, pela experimentação, pela libertação dos versos de suas amarras sintáticas e linguísticas. Ele mesmo admite em suas memórias que fez a revolução um pouco contra si mesmo, pois temia escrever bonito demais, se não ousasse destroçar o material verbal que utilizava, amassando-o de novo nas formas agrestes, selvagens, primitivas e populares do modernismo.

A questão que se colocava, então, tanto para Oswald como para os demais protagonistas da época, era a seguinte: como aproveitar os novos procedimentos das vanguardas para representar a modernidade do Brasil, mesclada ainda a um passado histórico singular? Oswald trouxe para a prosa e para a poesia, antes de todos, os princípios futuristas e cubistas: palavras em liberdade, imaginação sem fios (princípios familiares à psicanálise, com suas associações livres e o fluxo de consciência), simultaneísmo das percepções e das frases, combate ao academicismo, colagens de imagens díspares, a poesia ready-made (que não esconde sua vocação canibalística, ao deslocar algo de seu lugar habitual e ressignificá-lo, como o vaso sanitário virado ao contrário, de Marcel Duchamp, rebatizado de "A fonte" e exposto no salão em Nova York em 1917), velocidade, visualidade, estilo telegráfico, síntese, brevidade, a arte como jogo lúdico, entre outros procedimentos vanguardistas. Nosso combatente do academicismo inspirou-se, talvez, na bela frase de Ortega y Gasset: "Ser artista é não levar a sério o homem tão sério que somos quando não somos artistas" (Ortega y Gasset, 1925/1990, p. 77).

A paródia e o humor seriam antídotos para vencer a resistência das velhas estruturas sociais e psíquicas. Freud já havia antecipado, no ensaio "O chiste e sua relação com o inconsciente" (1905/1977), a força revolucionária do chiste. Provavelmente, o menor poema já escrito na língua portuguesa tem dois versos e é de Oswald de Andrade:

Amor

Humor

Cito ainda, pensando na vertente ingênua e pueril do modernismo, os três versos do poema "3 de maio", do livro Pau-brasil:

Aprendi com meu filho de dez anos
Que a poesia é a descoberta
Das coisas que eu nunca vi.

 

IV

A atitude modernista supõe, como se vê, uma espécie de "apagamento" de si para que o poeta volte a um estado primevo, de ingenuidade infantil, de inocência lustral, para que desse vazio original crie-se um novo mundo. Lembremos Paul Klee e Miró neste sentido propriamente regressivo do traço inaugural. Ao mesmo tempo, o esvaziamento necessário para a descoberta do desconhecido se faz ao lado de uma outra visada, comprometida com a incorporação ativa do "antagonista". O canibal devorava os inimigos que possuíam para ele valor heroico, retirando de sua potência o que de melhor pudesse aproveitar para se fortalecer. Haroldo de Campos viu bem a importância desse processo, quando pensou a relação entre o universal e o particular na história literária brasileira:

Creio que no Brasil, com a "Antropofagia" de Oswald de Andrade, nos anos 20 (retomada depois, em termos de cosmovisão filosófico-existencial, nos anos 50 na tese "A Crise da Filosofia Messiânica"), tivemos um sentido agudo dessa necessidade de pensar o nacional em relacionamento dialógico e dialético com o universal. A "Antropofagia" oswaldiana - já o formulei em outro lugar - é o pensamento da devoração crítica do legado cultural, elaborado não a partir da perspectiva submissa e reconciliada do "bom selvagem" idealizado sob o modelo das virtudes europeias no Romantismo brasileiro de tipo nativista em Gonçalves Dias e José de Alencar, por exemplo, mas segundo o ponto de vista desabusado do "mau selvagem, devorador de brancos, antropófago. Ela não envolve uma submissão (uma catequese), mas uma transculturação: melhor ainda, uma 'transvaloração': uma visão crítica da história como função negativa (no sentido de Nietzsche), capaz tanto de apropriação como de expropriação, desierarquização. Desconstrução. Todo passado que nos é outro" merece ser negado. Vale dizer, merece ser comido, devorado (Campos, 1983, p. 109).

A face cosmopolita do modernismo, vinda das vanguardas, entrou fundo na obra de Oswald. Mas a outra face, voltada não para o progresso tecnológico e sim para nossas raízes de país mestiço, negro, indígena e português, também se fez ouvir ao lado da vertente internacionalista. Tratava-se de descobrir o primitivismo nacional e universal, nossa cara pré-cabralina, o homem de olhos livres antes de ser plasmado pela cultura do colonizador. Tudo isso gerou o livro Pau-brasil, publicado em 1925 em Paris.

Para finalizar e inserir esse livro na discussão feita até aqui, vale ressaltar que na seção "História do Brasil", que abre o volume, o poeta reelabora o período histórico do descobrimento no século XVI ao início do século XIX, dando voz a fragmentos de nossos primeiros cronistas: Pero Vaz de Caminha, Pero de Magalhães Gandavo, frei Vicente de Salvador, entre outros. O Brasil foi, então, pela primeira vez, falado por um outro, e essa inscrição discursiva delimitou-nos como nação. Os textos, retirados de seus contextos originais - ainda que mantida a grafia lusitana - surgem ressignificados na nova ordem temporal. A tradição antiga revive transformada pela visada modernista, e a invenção incide sobre a memória deslocada. Vejamos um dos poemas que atualiza a crônica de Pero Vaz de Caminha para melhor compreender a operação poética oswaldiana:

As meninas da gare

Eram tres ou quatro moças bem moças e bem gentis
Com cabellos mui pretos pelas espadoas
E suas vergonhas tão altas et tão saradinhas
Que de nós as muito bem olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha.

As índias das crônicas do descobrimento se transformam em "meninas da gare" em um processo irônico, cuja palavra francesa "gare" (estação de trem) tensiona o sentido original, trazendo a cena para a modernidade paulista. A repetição da palavra "vergonha" em dois versos distintos contrapõe a atitude nativista à do colonizador. O olhar do segundo em relação às primeiras é marcado pelo estranhamento e maliciado pelo poeta, enquanto as protagonistas se situam na fronteira do mundo idílico arcaico com a prostituição da cidade moderna e seu trem de ferro. O velho e o novo se tocam e se contaminam, na velocidade telegráfica dos versos sem pontuação, deixando aberta a possibilidade de ver o que sempre esteve aí com olhos virgens. Ou dito de um modo melhor: não há algo "que sempre esteve aí" para ser revelado ou descoberto. Trata-se, antes, de fazer surgir um novo acontecimento, antes inexistente, a partir de materiais mnêmicos desconectados no tempo. Ao reler a crônica enviada ao rei D. Manuel em 1500, Oswald apropria-se do texto modificando o gênero (de prosa para poesia) e mantendo sua força sugestiva. No entanto, deslocado de sua origem, o texto é outro, potencializado por novas relações de sentido, tocado pela realidade de uma nova época.

Um novo e último paralelo com o processo de análise coloca-se aqui. Não seria também esse o modo como as fixações psíquicas poderiam ser desconstruídas pela mirada analítica, desafiando a impregnação paralisante de um "texto" congelado na temporalidade arcaica? O canibalismo literário deglutiu o texto antigo, mas criou um outro que é simultaneamente o mesmo transformado. Os fios dos tempos convivem e se superam, deixando as marcas tanto do artesão que primeiro os uniu quanto do autor que ousou desfiá-los para tecer uma nova arte.

 

Referências

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Correspondência:
Yudith Rosenbaum
[Universidade de São Paulo]
Rua Paraguaçu, 174, 52
05006-010 Perdizes, São Paulo, SP
Tel: 11 3661-6385
yudith@uol.com.br

Recebido em 18.7.2012
Aceito em 7.8.2012

 

 

1 Este trabalho baseia-se em conferência sobre o escritor Oswald de Andrade, pronunciada por ocasião dos 30 anos do Colégio Oswald, em abril de 2012. As reflexões sobre antropofagia e psicanálise foram acrescentadas posteriormente para a escrita do presente texto.
2 O "Manifesto antropófago", escrito em Piratininga (SP), termina com a seguinte data: "Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha" (Revista de Antropofagia, I(I), mai-1928). Todas as citações do "Manifesto pau-brasil" e do "Manifesto antropófago" presentes neste artigo foram retirados da edição das Obras completas de Oswald de Andrade (O. Andrade, 1990).
3 Oswald descreve assim a aparição do primeiro bonde em São Paulo: "Anunciou-se que São Paulo ia ter bondes elétricos. Os tímidos veículos puxados a burros, que cortavam a morna da cidade provinciana, iam desaparecer para sempre [...]. Uma febre de curiosidade tomou as famílias, as casas, os grupos. Como seriam os novos bondes que andavam magicamente, sem impulso exterior? [.] A cidade tomou um aspecto de revolução. Todos se locomoviam, procuravam ver. E os mais afoitos queriam ir até a temeridade de entrar no bonde, andar de bonde elétrico!" (Andrade, O., 1988, p. 18).

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