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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.4 São Paulo out./dez. 2012

 

ARTIGOS

 

Como conversar sobre nossos pacientes? Formulações: a comunicação escrita de nossas experiências psicanalíticas1

 

How to talk about our patients? Elaborations: written communication on our psychoanalytic experiences

 

¿Cómo conversar sobre nuestros pacientes? Fórmulas: la comunicación escrita de nuestras experiencias psicoanalíticas

 

 

Renata Sarti

Membro filiado à Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto SBPRP, Mestre em saúde mental pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo FMRP-USP, Docente na Universidade de Ribeirão Preto

Correspondência

 

 


RESUMO

Entre várias práticas necessárias para a constante formação de um psicanalista, apresento formulações a respeito de como conversar sobre nossos pacientes, especialmente por meio da comunicação escrita. Esta - mediante suas características de imobilidade - envolve riscos de rigidez, classificação e empobrecimento. A importância da comunicação de nossas experiências analíticas, da compreensão de aspectos arcaicos e dimensões subjacentes de nossa mente apontam para complexos limites no alcance de tais especificidades da psicanálise, sem cair em rigor científico - e, em outro extremo, em uma banalização da linguagem. A partir da experiência em redigir sobre uma relação analítica, formulo questões e discuto possibilidades de aproximação entre o experienciado e o escrito. Somada à importância de suportes teóricos, acredito na necessidade de desenvolver o psicanalista sua própria linguagem, única e criativa em cada experiência analítica, a cada momento desta e na maneira de comunicá-la.

Palavras-chave: comunicação escrita; experiência psicanalítica; dimensões psíquicas.


ABSTRACT

Among the various necessary practices for the constant training of a psychoanalyst, I present elaborations on how to talk about patients, especially through written language. Taking into account that written language is characterized by immobility, it implies many risks, such as rigidity, a classification of the experience, and a poor description of it. The importance of communicating our analytical experiences, of understanding archaic aspects and underlying dimensions of the mind, indicate complex limits in reaching such specificities of Psychoanalysis, without resorting, on one hand, to strict scientific language, and on the other hand, to the trivialization of language. Based on my experience in writing about an analytical relationship, I formulate questions and discuss ways to lessen the distance between what has been experienced and what has been described in writing. I believe psychoanalysts must develop their own unique and creative language at every moment of an analytical experience and the ways of communicating it, summed with the importance of theoretical supports.

Keywords: written communication; analytic experience; psychic dimensions.


RESUMEN

Entre las diversas prácticas necesarias para la constante formación de un psicoanalista, presento fórmulas al respecto de como conversar sobre nuestros pacientes, especialmente mediante la comunicación escrita. Esta, por sus características de inmovilidad, trae los riesgos de rigidez, clasificación y empobrecimiento. La importancia de la comunicación de nuestras experiencias analíticas, de la comprensión de los aspectos arcaicos y las dimensiones subyacentes de nuestra mente apuntan a complejos límites para alcanzar tales especificidades del psicoanálisis, sin caer en un rigor científico, y en otro extremo, en una banalización del lenguaje. A partir de la experiencia en escribir sobre una relación analítica formulo cuestiones y discuto las posibilidades de aproximación entre lo experimentado y lo escrito. Sumada la importancia de soportes teóricos, creo en la necesidad que tiene el psicoanalista de desarrollar su propio lenguaje, único y creativo en cada experiencia analítica, en cada momento de la misma y en la manera de comunicar.

Palabras clave: comunicación escrita; experiencia psicoanalítica; dimensiones psíquicas.


 

 

Somada à nossa prática clínica, desenvolvemos distintas atividades que, a priori, têm em comum o objetivo de troca e ampliação de experiências para afinarmos nossa condição mental: condição essencial para a constante formação de um psicanalista. Nesse sentido, temos os seminários teóricos e clínicos; supervisões; grupos de estudo; apresentação e publicação de trabalhos.

Frequentemente nos propomos a pensar como estar, analisar e conversar com os nossos pacientes.

Eis, então, uma formulação que se impõe: como podemos conversar sobre nossos pacientes?

Entre várias possibilidades, tomo como ponto de partida no presente trabalho questões que envolvam a escrita de nossas experiências analíticas.

 

Algumas formulações basais

As manifestações - tanto verbais como escritas - dão formas representativas e nos auxiliam na organização de nossos pensamentos, embora possam ser usadas dentro de uma rigidez, gerando sérios desencontros. Na comunicação verbal, há a liberdade do momento, uma possibilidade de trocas e esclarecimentos, e a afetividade é expressa no tom das palavras. Na escrita, apesar do prévio preparo, a intenção e suas respectivas concepções ficam presas a palavras registradas no texto, o que nos remete a uma sofisticada dificuldade.

Como escolher as palavras que possam nomear nossas complexas experiências? "[...] o nome é uma invenção para tornar possível pensar e falar sobre algo antes que se conheça o que é esse algo" (Bion, 1963/2004, p. 98).

A nomeação é fundamental e necessita ser compreendida como um caminho para se conhecer e se aprofundar na ideia observada. A escolha pelo termo evita a dispersão, mas precisa ser compreendida e articulada com alguma mobilidade, para não ficar aprisionada em alguma conceituação e classificação.

Tal questão torna-se ainda mais complexa ao levarmos em consideração a linguagem característica do trabalho psicanalítico.

Como nomear e, especificamente, redigir sobre nossas experiências analíticas, levando em consideração as especificidades da psicanálise?

Em Elementos de psicanálise (1963/2004), Bion comenta que as teorias psicanalíticas têm um defeito duplo. Por um lado, a descrição de dados empíricos é insatisfatória - nossa linguagem não alcança a totalidade do que ocorreu -; por outro, a teoria a respeito daquilo que ocorreu não pode satisfazer os critérios aplicados a uma teoria em sistemas de investigação científica rigorosa2 .

Lidamos com experiências que não podem ser vistas nem tocadas e, ao mesmo tempo, precisam ser comunicadas, tanto no trabalho com nossos pacientes como na conversa com os colegas. Como criar um instrumento fértil?

Ao deparar com tais articulações, outra importante questão emerge. Não há como dissociar a compreensão da psicanálise da pessoa que se dispõe a exercitá-la.

Como levar em consideração as especificidades do psicanalista? Entre tantas possíveis, quais são as "escolhas" feitas pelo psicanalista em sua maneira de observar e compreender a mente humana? Envolvem elas a pessoa do analista e como ele, de modo habitual, sustenta-se mentalmente, em uma espécie de conjunção de elementos: sua índole, sua atração por referenciais teóricos, suas experiências em análise pessoal, supervisões.

É fundamental contextualizar a linguagem que faz sentido àquele psicanalista.

 

Um paradigma possível

Tento compreender, estar com e conversar sobre minhas experiências psicanalíti-cas considerando a noção de uma visão em paralaxe: diferentes ângulos de observação do mesmo fenômeno, diferentes pontos de vista e aspectos aparentes. Considero, também, a noção de dimensionalidade de nossa mente, diferentes camadas, em diferentes perspectivas e profundidades.

Na paralaxe, amplia-se a maneira de se lidar com versões. Compreende-se que o fenômeno observado pelo analista tem diferentes ângulos. Há a interferência de quem observa e do que pode ser observado.

Tal complexidade nos põe de frente com o fato de que cada psicanalista observa e comenta sobre aspectos.

"E carecia optar. Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão e sua miopia" (Drummond, 1987, p. 42).

Na multidimensionalidade da mente - apesar de caminhar junto à paralaxe -, abordam-se níveis diferentes e mais profundos daquele descrito anteriormente.

A noção de várias dimensões psíquicas não é só uma questão de diferentes ângulos, de acordo com o observador. É essencialmente a ideia de que, simultaneamente, há alcances diferentes, realidades subjacentes que podem ser compreendidas. São diferentes profundidades, ao mesmo tempo, no mesmo fenômeno.

É um paradigma possível, gradualmente construído e ampliado, especialmente com destaque na evolução dos pensamentos de Bion3 . Enfatizo a ideia de tratar-se de um dos paradigmas possíveis, já que o mergulho nessa maneira de compreender o ser humano passa pelas especificidades do psicanalista, levando em conta como ele tende a observar a si mesmo e suas parcerias, e sua atração por estados arcaicos e transitórios da mente.

Em O aprender com a experiência (1962/1991), Bion comparou a situação de um psicanalista com a de um arqueólogo que, ao chegar a uma cidade em ruínas, descobre, no curso de suas escavações, que devido a um colapso e a um movimento de camadas de pedras, fragmentos e outros objetos de estágios mais primitivos foram misturados com cerâmicas e artefatos de estágios posteriores.

Essa concepção de uma simultaneidade do tempo e espaço exige uma observação distinta do psicanalista. Nela, a ideia de desenvolvimento toma outra forma. Não há uma evolução contínua, linear e causal, nem espiral. Há um trânsito constante entre diferentes dimensões.

Fica inviabilizada qualquer afirmação taxativa composta de uma explicação consensual sobre como o paciente é e como se configura nossa experiência com ele. A insistência em uma verdade e conclusões intransigentes sobre os pacientes em nosso trabalho analítico pode ser compreendida como manifestação da angústia do analista diante de tantas perspectivas e do desconhecido. Perigo exacerbado na escrita, cuja característica de imobilidade pode facilmente conluiar com a nossa dificuldade em considerar possíveis variações.

Tal perspectiva aponta para um movimento constante, fundamentado em incertezas e incompletudes4 . Será que alcançamos esse diferente paradigma?

A história da formulação da física quântica no século XX e suas propostas nos auxiliam na apreensão desse novo modelo. Os físicos compreenderam que seus conceitos básicos, sua linguagem e toda sua forma de pensar eram inadequados para descrever os fenômenos pelos quais estavam interessados.

Toda vez que os físicos faziam uma pergunta à natureza em um experimento atômico, relata Capra (1982/1995), a natureza respondia com um paradoxo, e quanto mais eles se esforçavam por esclarecer a situação, mais agudos os paradoxos se tornavam. A nova física exigia profundas mudanças nos conceitos de tempo, espaço, matéria, objeto, causa e efeito. Foi descoberta a existência de pares de conceitos, ou aspectos, que são inter-relacionados e não podem ser definidos simultaneamente de um modo preciso. Quanto mais enfatizamos um aspecto em nossa descrição, mais o outro se torna incerto.

Há uma mudança de objetos para relações. Qualquer coisa deve ser definida por suas relações com outras coisas e não pelo que é em si mesma.

"Há movimento, mas não existem, em última análise, objetos moventes; há atividade, mas não existem atores; não há dançarinos, somente a dança" (Capra, 1982/1995, p. 86).

Na física quântica, as ideias sobre a causalidade foram revistas, pois elas só se aplicam a um sistema que permaneça imperturbado.

M. Marques (2010) faz uma analogia com a psicanálise e questiona como podemos conceber que nossas formulações teóricas - fundamentalmente dualistas e constituídas por sujeitos e objetos, definidas em um tempo e espaço absolutos, com espaços internos e externos determinados, além de conjugadas sequencialmente - possam delimitar um campo de investigação do desconhecido que esteja além e aquém do sensorial. O uso de teorias para identificar disfunções e distúrbios faz com que os objetos ganhem prioridade diante das relações implicadas, em vez de fazer delas apenas um contexto no qual uma relação pode alcançar significado; as teorias não se prestam mais a revelar configurações que permitam acesso a uma dimensão subjacente, pois a investigação se fecha em si mesma e nos envolve diretamente com moralidades.

Já é extremamente difícil estarmos e conversarmos com nossos pacientes libertos de causalidades, respostas certas e observações pontuais. Mais árduo, ainda, pensarmos em como redigir nosso trabalho quando acreditamos e buscamos essa maneira de compreensão.

 

Algumas possibilidades na escrita

Na maneira como venho lidando com tais dificuldades, penso na riqueza de se utilizar modelos próximos ao "como se"5 de Bion, tanto na sala de análise com nossos pacientes quanto na escrita de nossas experiências. Esse modelo não é uma expressão de teoria. Acredito ser uma junção de ideias e sentimentos, e uma abertura para tentar alcançar os paradoxos e diferentes dimensões mentais. Para nomear tais modelos, podemos fazer uso de produções artísticas: literatura, cinema, artes plásticas. Elas podem ser utilizadas como molas propulsoras, estímulos à ampliação do pensamento por não apresentarem algo delimitado e enquadrado, embora possam fornecer algum contorno sobre a experiência ilustrada.

Sobre esse aspecto, faço uma ressalva. Observo uma espécie de clichê psicanalítico com relação à inserção de produções artísticas nos trabalhos. O que teria por finalidade ampliar e sugerir algo que não pode ser claramente expresso torna-se mera repetição, um script de sensibilidade, desconectado de alguma experiência emocional viva, já fechado em interpretações. Apesar da aparente criatividade, tem como base uma função automatizada e burocrática. Não proponho isso, já que tal postura deixa de ser fruto de uma interação íntima consigo mesmo e com outra mente; deixa de ser uma produção e comunicação genuína e privativa do analista e de sua experiência na dupla.

Importantes psicanalistas propõem linguagens que viabilizem uma comunicação abrangente e que expressem sentimentos, levando em conta as especificidades da psicanálise.

Meltzer (1988/1994) enfatiza o uso da poesia, por exemplo. Ao discorrer sobre o espaço do conflito estético no processo analítico, parte da ideia de que desejamos confirmar a autenticidade de algo que engaja nosso interesse, de conhecê-lo em profundidade, e que a poesia pode criar um impacto estético no sentido de fazê-la o alimento para o pensar.

Ogden (2006) também menciona a poesia. Ele afirma que a psicanálise é uma experiência emocional vivida. Como tal, ela não pode ser traduzida, transcrita, registrada, explicada, compreendida ou contada em palavras. Não obstante, ele acredita ser possível dizer algo sobre essa experiência vivida por meio de uma linguagem metafórica, já que precisamos da linguagem e das palavras para entender o que estamos sentindo. Na escrita psicanalítica, assim como na poesia, há uma concentração de palavras que faz uso da linguagem para sugerir significados que ela, no uso cotidiano, não pode dizer.

Acredito na possibilidade e na riqueza da utilização de produções artísticas na escrita de nossos trabalhos para que nossas palavras não sejam usadas como respostas, para não fecharmos as ideias propostas e sermos interpretados de forma reducionista e precária6 . Quando articuladas e sustentadas, a partir de um rigor teórico prévio, elas podem contribuir com o processo criativo. O sentido e o intuído podem ser formulados na escrita e transformados em conversas.

Na dança - vamos ousar uma pirueta -, para podermos nos soltar, é necessário nos localizarmos em um ponto imaginário: gerar um descompasso, rodopiar sobre um pé, gerar algum ritmo criativo a fim de alcançarmos novamente algum ponto - e buscar por outros, em alguma cadência. Se só nos fixamos, propomos apenas compassos e acordos7 , não rodamos e ficamos presos no mesmo lugar - enrijecidos no mesmo ritmo, sem riscos, sem criação. Ao mesmo tempo, se não temos um ponto do qual ousemos nos afastar para, em algum outro lugar, buscarmos reencontrar, caímos em um descompasso desenfreado, impossibilitando a dança.

Penso ser esse um movimento contínuo do psicanalista, condição indispensável nas nossas danças, parcerias com os pacientes, analistas, supervisores, colegas e em qualquer tentativa de comunicação. Penso que é preciso decidir - a cada momento e com cada analisando - uma linguagem por meio da qual seja possível descrever a realidade psíquica suscitada e compartilhada. A subjetividade do analista pode ajudá-lo a criar sua condição única de como estar com seus pacientes e como comunicar a experiência do trabalho analítico.

 

Uma experiência em redigir sobre8

Ao tentar escrever as primeiras ideias sobre a relação analítica escolhida fiquei paralisada. Por onde começar? O que priorizar?

A questão - aparentemente simples de como e por onde começar a redigir - remete-me a Bion (1963/2004). Ele propõe que para escrever algo temos que começar de algum lugar, o que cria dificuldades, pois o início de uma discussão tende a impor uma aparência de realidade à ideia de que o assunto em discussão tem um início. A angústia, desperta perante tal complexidade, ganhou forma com a lembrança do filme A lenda do pianista do mar (Tornatore, 1999).

Trata-se de um homem, Mil e Novecentos, que sempre viveu em um imenso transatlântico, com espetacular talento para tocar piano. Por volta dos trinta anos resolve, pela primeira vez, ancorar. Ao descer as escadas da embarcação, olha para a nova paisagem. Paralisa-se, pensa - e retorna ao navio conhecido.

Tempos depois, explica o porquê de não ter desembarcado:

Essa cidade toda. Não dá para ver o fim dela. O fim... por favor? Quer me mostrar onde termina?

Estava tudo bem naquela escada. E eu ia desembarcar. Garantido. O problema não era esse. Não foi o que vi que me deteve, Max. Foi o que não vi. Entende? Naquela imensa cidade havia de tudo, menos um fim. Não havia fim. O que não vi foi onde aquela cidade terminava. O fim do mundo. O piano, por exemplo, as teclas começam e as teclas terminam. Sabe que são 88 teclas. Ninguém pode negar. Não são infinitas, você é infinito. E naquelas teclas, a música que você pode tocar é infinita. Gosto disso. Posso conviver com isso.

Nomeados alguns limites e possibilidades, pude começar a redigir o trabalho, amparada pela ideia de minha amplitude e miopia, ciente de que em cada escolha há renúncias e versões não alcançadas. Como escolher e apresentar a paciente - ou melhor, a relação analítica escolhida?

Parto de um princípio: ao escolher uma paciente para apresentá-la, também estou criando uma personagem para dar contorno aos meus pensamentos. Não discuto a pessoa em si, apresento ideias estimuladas em nossa relação e que serviram de alimento ao meu pensamento e ao nosso trabalho.

Transformei minha paciente em Luna. Por que Luna? A escolha desse nome pode já ser uma ideia propulsora interessante. Luna, Lua. A Lua é assídua nas poesias, nas músicas e nos apaixonados. Intrigante é que a Lua - apesar de ser uma referência de beleza - não tem luz própria. Sua condição é a de refletir a luz do Sol.

Utilizei da literatura, Pirandello (2001) e seu conto O mal da Lua. A partir desse ponto de vista, somado a outras produções literárias, discuti vários aspectos sobre o funcionamento mental da paciente e da dupla no processo analítico experienciado (Tustin, 1984; Winnicott, 1945/2000; Green, 2000; Meltzer, 1986; Klein, 1941/1991; Joseph, 1992; Bick, 1967/1991; Freud, 1912/1987; Ribeiro, 2010; Tabbia, 2008; Assis, 2003, 2007).

Como estruturar a escrita do trabalho analítico sem a preocupação de um rigor formal de um trabalho científico? Como organizá-la de modo que permita alguma compreensão, mas não restrinja os sentimentos vivenciados e a apresentação das dimensões observadas?

Batá, personagem principal do conto de Pirandello (2001), lida com sua sina: o pobre apaixonado espera ansiosamente a chegada incerta de sua amada Lua; anseia pelo encontro, fadado ao desencontro. Aproveito-me dela e destaco a frase, suplicada por Luna, em nossa primeira sessão, "Preciso de alguém que fique..." e a utilizo para nortear e aprofundar nossa trajetória.

A frase foi usada em diferentes perspectivas para tentar descrever nosso processo analítico, para representar a visão em paralaxe e as várias dimensões da mente humana. Foi usada como título do trabalho e, também, como subtítulos para apresentar dimensões distintas entre si, mas associadas e inter-relacionadas umas às outras.

"Preciso de alguém que fique". Apresentei os investimentos de Luna em suas relações amorosas e sua ânsia por um relacionamento duradouro.

"Preciso de alguém que fique" Destaquei, na história de sua vida, perdas reais de figuras significativas.

"Preciso de alguém que fique" Ressaltei outra dimensão sobre Luna: esta ainda mais profunda, por envolver rupturas arcaicas.

"Preciso de alguém que fique" Usei dessa perspectiva para discutir aspectos específicos de nosso processo psicanalítico.

Como encerrar a escrita de um trabalho que representa uma experiência emocional de tamanha magnitude?

Repleta de perguntas e dúvidas - tantos são os caminhos possíveis -, a única maneira possível foi questionar.

Retorno ao mencionado filme - A lenda do pianista do mar - e à fala de Mil e Novecentos: "Nada tem um fim, se tiver uma boa história e alguém para ouvi-la".

 

Referências

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Correspondência:
Renata Sarti
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto SBPRP]
Rua Campos Sales, 1924
14015-110 Ribeirão Preto, SP
renatas2008@gmail.com

Recebido em 1.11.2011
Aceito em 13.2.2012

 

 

1 Trabalho apresentado no XXIII Congresso Brasileiro de Psicanálise, em setembro de 2011, premiado pela Associação Brasileira de Candidatos.
2 Freud, em vários trabalhos, demonstra preocupação com esse tema. Em "Sobre o narcisismo: uma introdução" (1914/1987) e em "Os instintos e suas vicissitudes" (1915/1987), ao discutir a exigência de se edificar uma ciência sobre conceitos fundamentais claros e bem definidos, ao argumentar que nenhuma ciência, nem mesmo a mais exata, se inicia com tais parâmetros, adverte que o progresso do conhecimento não tolera definições rígidas.
3 A ideia de dimensões paralelas fica mais notória e perplexa em Bion, em seu trabalho de 1975, Uma memória do futuro, no qual parece ser apresentada uma coexistência de todas as etapas vivenciadas pelo indivíduo, desde o embrião ao ser adulto, todas coexistindo e preservando uma linguagem ou experiência própria.
4 Será que compreendemos as propostas de Bion? Observo riscos de um distanciamento entre falar sobre Bion e compreendê-lo. Chuster (2010) relata sobre a dificuldade em compreender Bion. Em Os estudos psi-canalíticos revisados, as pessoas caminham bem porque identificam a linguagem kleiniana. Já na Teoria do pensar, Bion começa a introduzir o início de um paradigma diferente, ele começa a considerar o princípio da incerteza, que leva a uma mudança na forma de pensar - ou seja, a mudança de objeto simples para o objeto complexo: aqui, torna-se imperativo começar a pensar de uma forma diferente. Com O aprender com a experiência, é apresentado o objeto psicanalítico e toda uma teoria da complexidade se desdobra com os trabalhos seguintes: Elementos da psicanálise e Transformações. Chuster destaca a importância de as pessoas serem avisadas sobre a necessidade de mudar o paradigma, a forma de pensar para compreender Bion.
5 Bion (1963/2004) observa que os elementos psicanalíticos e os objetos destes derivados têm as seguintes dimensões: extensão do domínio do sentido, do mito e da paixão. No domínio do mito, Bion ressalta a possibilidade de se fazer modelos, como parte do equipamento disponível para o psicanalista. Propõe algo do tipo: enunciados entre aspas; eles não são afirmações de um fato observado, eles são enunciados de um mito pessoal "como se".
6 "A resposta é a doença que mata a curiosidade" é como Bion (1963/2004) compreende o enunciado "La réponse est le malheur de la question" de Maurice Blanchot.
7 T. Marques, em um estímulo apresentado no Grupo Transformações em Conversas (17/09/10), desenvolve a ideia de que na experiência psicanalítica acordo e desacordo estão em trânsito, não havendo possibilidade de um estar presente sem que o outro se encontre, ao menos, subjacente.
8 A experiência em questão refere-se ao trabalho redigido, relatório de minha primeira supervisão oficial.

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