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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.4 São Paulo out./dez. 2012

 

INTERCÂMBIO

 

Desenvolvimento emocional precoce e estados mentais primitivos: um breve panorama1

 

Early emotional development and primitive mental states: a brief panorama

 

Desarrollo emocional precoz y estados mentales primitivos: un breve panorama

 

 

Alina SchellekesI; Traduzido por Alain Pierre Alban François

IAnalista Didata da Sociedade Israelense de Psicanálise, Coordenadora do Programa dos Estados Primitivos da Mente no curso de Psicoterapia da Universidade de Tel-aviv

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tenta enfocar o desenvolvimento emocional precoce, tanto durante a gravidez quanto na prima infância, como relevante para entender os estados mentais primitivos encontrados no trabalho clínico. Os prismas escolhidos para entender as origens de nossa mente, nesta pesquisa, são o do pensamento psicanalítico, baseado na experiência clínica e na teorização dessa experiência; o das interpretações psicanalíticas de fetos e observações de bebês; e, finalmente, o dos estudos desenvolvimentais.

Palavras-chave: estados primitivos da mente; observação de bebês; pré-natal; pós-natal protomental; atuação


ABSTRACT

This article attempts to focus on early emotional development, during pregnancy as well as primary childhood, as a relevant factor in understanding primitive mental states found in psychoanalytic clinic. The prisms chosen for the understanding of the origins of our mind, in this research, are: the prism of psychoanalytic thinking, based on the clinical experience and the theorization of this experience; the prism of the psychoanalytic interpretations of fetuses and the observation of babies; and, finally, the prism of developmental studies.

Keywords: primitive states of the mind; observation of babies; prenatal; protomental postnatal; action.


RESUMEN

Este artículo intenta centrarse en el desarrollo emocional precoz, tanto durante el embarazo como en la primera infancia, como relevante para entender los estados mentales primitivos encontrados en el trabajo clínico. Los prismas escogidos para entender los orígenes de nuestra mente, en esta investigación, son el del pensamiento psicoanalítico, basado en la experiencia clínica y en la teorización de esta experiencia; el de las interpretaciones psicoanalíticas de fetos y observaciones de bebes; y, finalmente, el de los estudios del desarrollo.

Palabras clave: estados primitivos de la mente; observación de bebes; prenatal; posnatal protomental; actuación.


 

 

I approach and ye vanish away,
I grasp you, and ye are gone;
But ever by night and by day,
The melody soundeth on2.
(Fata morgana,
Henry Wadsworth Longfellow, 1873).

Um tempo atrás, um colega perguntou-me: "Qual a necessidade de um programa especial de estudos sobre os estados mentais primitivos?". Não lembro exatamente o que respondi, mas recordo que isto imediatamente me evocou um evento anterior, quando tinha de localizar um hotel em um mapa de Paris, na internet. Parecia estar bem no centro da cidade, a dois passos de tudo, mas quando mandei o programa que estava usando aproximar o mapa, ficou em um local totalmente diferente, longe do que antes parecia tão perto. Toda a perspectiva havia mudado, e os arredores, então, ficaram muito mais ricos em detalhes e cores. Disse ao meu colega que, de modo muito semelhante, sinto a necessidade de ter um programa especial sobre estados mentais primitivos: ou seja, de um lugar para poder me aproximar cada vez mais, em uma tentativa de compreender o que chamamos de primitivo/primário e trabalhar nisto. Muitas teorias psicanalíticas abordam esse assunto, de um ou outro modo, mas a perspectiva e o entendimento do tema são completamente diferentes quando nos aproximamos, pouco a pouco, e descobrimos novos aspectos e nuanças que não podiam ser percebidos antes, quando olhávamos de um ponto de vista mais amplo e distante.

O programa avançado sobre Estados Mentais Primitivos, que faz parte do Programa de Psicoterapia da Faculdade de Medicina Sackler, na Universidade de Tel-Aviv, foi criado cinco anos atrás, e desde então tornou-se um lar para os alunos e a equipe, cuja paixão por aprender e ânsia de entender não conhece limites. Embora, teoricamente, cada turma devesse se formar em dois anos, como o processo de aproximação continua ocorrendo, cada grupo sentiu a necessidade de seguir estudando, em um processo ininterrupto de aprofundamento do entendimento dessa área complexa. Poderiam objetar que esse processo também tem as qualidades do fenômeno conhecido como fata morgana: um fascínio por uma figura enigmática que vai desvanecendo à medida que nos aproximamos. Ora, em minha opinião, esse fascínio é uma condição sine qua non do anseio de estudar as origens da mente, que é, afinal e a meu ver, incognoscível ou não podendo ser representada3 .

Agora, se nos aproximarmos mais um pouco do termo "primitivo", percebemos que, à prima vista, parece ser um conceito claro, que pode ser desconstruído em várias significações, e que se pode chegar mais perto de cada uma, até o nível de conhecimento e entendimento que possuímos hoje. Por exemplo, alguém pode decidir se referir aos aspectos não organizados ou desorganizados do funcionamento mental, e consequentemente, aos níveis de organização; outro pode falar de considerações topográficas, de modo que o que é inconsciente se torna equivalente ao que é primitivo; outro ainda pode falar do termo primitivo como designando os aspectos precoces de desenvolvimento, a origem de qualquer comportamento dado. E finalmente, mas não menos importante, pode-se usar o termo para falar das partes fundamentais, elementares em si, como quem se refere ao bebê/à criança no adulto, no sentido psicológico da palavra (Grotstein, 1997). Embora essas variações em torno do termo primitivo coincidam em grande parte, ainda vale a pena tentar refletir a respeito da conotação particular que nos interessa, especialmente quando sabemos que grandes confusões costumam ocorrer, tanto clínica quanto teoricamente. Por exemplo, quando se fala da parte infantil em um paciente adulto, é possível assumir, às vezes erroneamente, que reflete exatamente a criança ou bebê que esse adulto já foi, ou que as características de um estado de regressão são uma duplicação de um estado idêntico que ocorreu no desenvolvimento precoce, o que, repito, não é necessariamente o caso. Embora as partes infantis da personalidade de alguém não sejam uma duplicação exata da mente do bebê, tendemos a remontar às origens do desenvolvimento da pessoa, até onde conseguirmos chegar, mesmo quando atentamos, como sugiro, para o fato que o fenômeno conhecido como fata morgana está sempre presente e que, em grande parte, no melhor dos casos, apenas conseguimos uma reconstrução feita por mentes adultas do que é ser um bebê.

No campo psicanalítico do entendimento, duas abordagens principais nos ajudaram, até agora, na tentativa de compreender a natureza esquiva da mente do bebê: uma é o pensamento psicanalítico, baseado na experiência clínica e na teorização desta; a outra se fundamenta em interpretações psicanalíticas de observações de bebês e em estudos desenvolvimentais.

Em nível teórico, se pensarmos no bebê freudiano, kleiniano ou winnicottiano, para citar apenas alguns, deparamo-nos com três bebês totalmente diferentes. Duas tendências dominantes evidenciam-se na discussão teórica a respeito da mente do bebê: uma enfatiza o conceito de narcisismo primário no início do desenvolvimento emocional, e concebe que o bebê encontra-se em um estado mental de fusão com o objeto, e que a indiferenciação e a união com o objeto são as características principais dessa fase muito precoce. Os maiores expoentes são Freud (1914/1953), Spitz (1959), Mahler (1968), Winnicott (1949/1992, 1960), Gaddini (1976/1992), Tustin, em parte dos seus escritos (Tustin, 1981). O outro ponto de vista é sustentado por todos aqueles que consideram que a mente do bebê tem uma existência separada e uma consciência grosseira do objeto desde o início da vida, como Klein (1928/1950, 1940/1950) e seus seguidores, Bowlby (1980, 1988), Stern (1985) e Trevarthen (1980). Obviamente, esses últimos estão cientes da imaturidade da mente do bebê, mas enfatizam o senso rudimentar do bebê de que é separado do objeto, e a sua capacidade de se relacionar e comunicar com os objetos primários desde o início de vida. Em outras palavras, a questão central entre essas duas visões antagônicas é até que ponto o outro já está presente no sujeito, qual o grau de consciência em relação à subjetividade do outro e em que medida uma fusão inicial com o objeto é necessária para desenvolver um senso saudável de self. Essas diferenças não são relevantes apenas em termos teóricos ou desenvolvimentais, pois têm um impacto muito forte sobre a situação clínica e o entendimento da transferência.

Outro olhar sobre a natureza primitiva da mente do bebê surge do pensamento fértil de Bion. Em seus primeiros escritos, Bion (1962, 1965) distinguia os estados mentais primitivos característicos dos primórdios da vida dos estados psicóticos bizarros, nos quais ocorrem transformações em alucinose e reversão das funções alfa. Em outras palavras, "distinguia a continuidade inerente ao eixo primitividade-maturidade, no qual primiti-vidade é associada à imaturidade, da descontinuidade entre primitivo e bizarro, no qual ocorre uma alteração deformadora da mente e dos seus produtos" (Grotstein, 1997). Em seus últimos escritos, Bion não se preocupava tanto com as partes psicóticas da personalidade, mas com aqueles nossos aspectos que têm origens muito arcaicas e são vestígios de fenômenos pré-natais, quer provenham da origem pessoal ou pertençam ao conhecimento universal. Em nível bastante universal, Bion afirmava que o seio e, essencialmente, todos os objetos ainda por descobrir já estão presentes na mente do bebê como preconcepções aguardando suas realizações na experiência atual para se tornarem concepções na realidade. Isto significa que o conhecimento é mais antigo do que quem conhece ou, em termos mais clínicos, que se pode falar de fantasias pré-existentes ao encontro com o objeto. Estas constituem o que se pode chamar de "preconcepções memoriais (coletivas) universais" (Grotstein, 1997), e que Bion (1975, 1977, 1979) poeticamente chamou de "memórias do futuro", ou seja, memórias pré-históricas em nosso inconsciente, que antecipam o futuro do nosso desenvolvimento4 . Em nível mais pessoal, nesses últimos escritos, Bion fala do impacto que as sensações pré-natais podem ter sobre o desenvolvimento ulterior da personalidade. Por exemplo, no útero, as experiências do feto incluem oscilações do líquido amniótico, barulhos oriundos do aparelho digestivo da mãe ou das interações desta com o meio5 , a "pressão osmótica" dos estados mentais da mãe (Rosenfeld, 1987, p. 276) e vários outros eventos visuais, auditivos, olfativos e cinestésicos. Essas sensações primárias, no útero, podem criar os primeiros germes de ideias/sentimentos, que se tornam "proto-emoções", entre as quais as mais perturbadoras são caracterizadas por um "terror subtalâmico", um tipo de medo que não é controlado pelos níveis mais elevados da mente e, portanto, não tem significação mental (Bianchedi et al, 2002). Pode-se até dizer que as relações que o feto estabelece com o interior do corpo da mãe, inclusive com a placenta e o cordão umbilical6 , tornam-se precursores de relações estabelecidas depois do nascimento (Osterweil, 2002; Piontelli, 1992) e, assim, constituem uma espécie de introjetos primários, estabelecendo as bases para um "núcleo pré-natal do ego" (Raskowsky, 1956). Os vestígios dessas experiências pré-natais, bem como das do nascimento, podem ser armazenados, em um nível somático ou baseado em sensações, como memórias corporais (Mitrani, 1996, 1997), as quais podem se reativar, mais tarde na vida, em situações que reproduzem algumas características sensoriais ou emocionais da condição pré-natal inicial. Uma das situações em que esses estados mentais arcaicos e não mentalizados vêm à tona são recriados e colocados em ato (enacted) é a da transferência, na qual características de contenção (containing) inerentes ao enquadre, assim como a da mente/do útero do analista, permitem que esses "estados embrionários da mente" surjam, sejam comunicados e finalmente entendidos (Mitrani, 1997)7 . Penso que, muitas vezes, podemos ser conscientes do grande leque de afetos que caracterizam as percepções do terapeuta e da sala de terapia por meio do holding e da continência ou, quando são sufocantes e limitadoras, todas remontando a experiências pré-natais ou infantis semelhantes (Ploye, 2006).

Um desenvolvimento fascinante do pensamento pós-bioniano foi uma discussão abrangente sobre pacientes que podem ser caracterizados pelas identificações negativas, cuja experiência central é a de um não-ser (non-being), um tipo de existência vazia e morta, na qual nenhum nascimento emocional realmente ocorreu. Esses pacientes podem ser descritos como congelados em um tempo estático, sem movimento afetivo, aguardando que a vida comece enquanto se opõem passivamente a qualquer movimento que possa trazer mudança. Às vezes chamados de "pacientes mortos" [em oposição ao conceito de "mãe morta", de Green (1980/1986)], eles apresentam uma inversão maciça do holding e da continência, uma evacuação da psique da criança para conter a invasão e a inundação pelo objeto/mãe. Em outras palavras, a fantasia inconsciente básica central torna-se a de que a existência está sendo ocada, em uma espécie de "aborto psíquico" (Gonzalez, 2010). Alguns (Wilheim, 2010) chegaram a ponto de falar de "memória celular", uma espécie de traço mnêmico de fantasias que acompanharam o momento da concepção. Para essa linha de pensamento, quando a união de duas células teve a conotação de que o ato nunca deveria ter ocorrido, essa fantasia traumática de preconcep-ção fica armazenada como sub-representação primitiva de algo que devia ter sido abortado. O subsequente sentimento catastrófico pode acompanhar qualquer situação nova que promova um crescimento ou esteja vinculada com a significação de concepção, nascimento e desenvolvimento. A ansiedade catastrófica descrita acima é ativada por qualquer "cesura", qualquer reunião ou mudança potencial encontrada, o que acaba levando a ataques contra toda coisa percebida como um encontro de duas mentes, como as do analista e do paciente. Ou seja, o que costumava ser chamado de reação terapêutica negativa ou ataques ao vínculo analítico pode ser entendido como resultando da vinda à tona de uma "experiência traumática pré-natal muito precoce impressa sensorialmente no... feto quando sentiu a ameaça de ser aniquilado, abortado ou destruído" (Wilheim, 2010). Grotstein (2010) aprofundou essa ideia ao afirmar que a reação terapêutica negativa pode ser entendida segundo linhas completamente diferentes se considerarmos que a resistência do paciente às mudanças oriunda de "uma voz da cripta", a do(a) bebê/criança que foi "rejeitado(a)" na vida precoce e que, "ao frequentar o campo analítico", "suplica por reconhecimento, resgate, justiça e redenção" (ver também Schellekes, 2009).

Após ter descrito, embora brevemente, algumas das atuações (enactments) no encontro analítico que exprimem experiências pré-natais ou vinculadas com a infância e, ao mesmo tempo, são modulados por elas, gostaria de enfatizar, mais uma vez, que regressão e transferência nunca são uma duplicação exata de uma experiência precoce, uma vez que muita coisa se acrescenta, acumula e distorce durante o desenvolvimento, de modo que o que vemos, em um dado momento de uma terapia ou análise, é uma espécie de aproximação grosseira da situação inicial8 . Além do mais, interpretações frequentes da transferência podem se tornar um meio ao qual aderimos às vezes de modo abusivo, quando não adesiva, uma vez que costumam dar uma ilusão de conhecimento sobre uma das camadas da mente mais primitiva e desconhecível-incognoscível9.

Uma mudança muito diferente no paradigma dos estudos e da compreensão do desenvolvimento emocional precoce deve-se à crescente ênfase nas observações de bebês. O modelo de Tavistock e os estudos observacionais de Ester Bick ampliaram muito nosso conhecimento do desenvolvimento do bebê ao salientarem a importância de basear esse conhecimento em observações clínicas de bebês em seu meio em vez de generalizar, e de modo retroativo, a partir da teoria ou da prática analítica. Bick (1964) e seus seguidores (Briggs, 2002) têm focalizado suas observações nos primeiros meses e anos de vida. Embora os conhecimentos trazidos por essas observações e suas implicações clínicas sejam muito vastos, gostaria de realçar outra mudança extremamente importante para entender o desenvolvimento emocional precoce, possibilitada pela integração dos conhecimentos dos estudos desenvolvimentais, da neurofisiologia, da prática analítica e de observações de fetos em início de gestação. O trabalho pioneiro de Daniel Stern e os escritos de Mauro Mancia contribuíram muito para nossa compreensão da formação do senso mais precoce de self, que é principalmente pré-verbal e pré-representacional. Stern (1985, 1998, 2002) descreveu o desenvolvimento de um sentido básico de self em bebês como série de camadas sobrepostas e interdependentes, determinadas interpessoalmente, que acabam criando um núcleo afetivo central. Por meio da "amodalidade perceptiva", isto é, da habilidade de reunir sensações recebidas de um canal em uma sensação que faz uso de outros canais sensoriais, o bebê integra gradualmente suas experiências e cria representações muito rudimentares de si mesmo em relação aos outros. Durante os primeiros anos de vida, seis sentidos de self10 são adquiridos, formando a base do que acompanhará o desenvolvimento ulterior, embora em um sentido muito mais maduro e sofisticado. Mancia (1981, 1988, 1989) estendeu as ideias de Stern, especialmente quando se focalizou nas raízes pré-natais do desenvolvimento emocional. Para ele, os diferentes estímulos que o feto recebe através de seus vários canais sensoriais, tanto do próprio corpo quanto do da mãe, têm todos seu ritmo e sua constância, características que constituem a base de um sentido primordial de tempo e de presença do objeto. Esses vários estímulos vêm com seu tom respectivo, agradável ou desagradável, e assim tornam-se o que podemos chamar de "experiências protomentais". Todas são integradas por meio do princípio da amodalidade perceptiva e pelo trabalho psíquico que acontece durante os períodos de sono ativo, e acabam formando o que Mancia chamou de "núcleo protomental de atividade" ou "self somato-psíquico"11 , que se desenvolverá ao longo dos processos de crescimento. Suas conclusões implicam que esse self pré-representacional é dotado de habilidades básicas de memória e é capaz de estabelecer certa continuidade entre as experiências pré e pós-natal12 .

Essa ideia de que o nascimento não cria necessariamente uma cesura, uma ruptura no desenvolvimento emocional, mas que existe um continuum entre os comportamentos pré e pós-natal, é central nos escritos de Piontelli (1986, 1992, 2002, 2010). Esse autor descreve, com muita perspicácia, padrões de comportamento e de relações com o espaço uterino e a placenta, que agem como precursores de comportamentos precoces e constituem as raízes primárias das relações de objeto. Agora, se nos afastarmos para ter uma visão panorâmica sobre os vários prismas através dos quais escolhi falar nesta apresentação do desenvolvimento emocional precoce, podemos perceber que cada um é profundamente afetado e, consequentemente, distorcido por "suposições básicas" sobre o sujeito. A meu ver, os escritos de Piontelli, assim como os dos muitos outros teóricos que apresentei, embora certamente influenciados pela teoria por intermédio da qual cada um se cristalizou, nos levam muito mais adiante na tentativa de chegar o mais perto possível da observação e do entendimento das origens de padrões de comportamento humano e dos traços constitutivos que continuam vivos muito após o nascimento. Espero, com esta conferência e os escritos profundos e abrangentes do Prof. Piontelli, que todos se enriqueçam e andem pelo menos um passo a mais no que, às vezes, parece nossa busca "fata morgana" para compreender as origens de nossa mente.

 

Referências

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Correspondência:
Alina Schellekes
18 Landau Str.
55559 Kiryat Ono, Israel
Tel.: (972-3) 5349659
shalin@smile.net.il

Recebido em 14.2.2012
aceito em 2.5.2012

 

 

1 Originalmente apresentado em abril de 2011, em Tel-Aviv.
2 Aproximo-me e desvaneças, /Agarro-te e desapareças; /Mas, sempre, dia e noite,/ A melodia persiste.
3 Quando pensamos em termos lineares, a formação de uma representação baseia-se na habilidade de viven-ciar sequências de acontecimentos separáveis entre si. Contudo, quando falamos da origem do que cada um de nós se tornou, como ser humano particular, falamos, na verdade, de uma fonte incognoscível e irrepre-sentável, que pode se manifestar por meio de intermediários ou negações. Tal intermediário é uma imagem icônica cuja origem é inacessível à cognição e, portanto, "anicônica". Ver Eric Rhode (2003) para uma discussão minuciosa do termo "anicônico".
4 De uma perspectiva teórica diferente, o conceito de "inconsciente coletivo", de Jung, é relevante aqui: "[...] Diferentemente da natureza pessoal da psique consciente, existe um segundo sistema psíquico de caráter coletivo, não pessoal, ao lado do nosso consciente que, por sua vez, é de natureza inteiramente pessoal e que -mesmo quando lhe acrescentamos como apêndice o inconsciente pessoal - consideramos a única psique passível de experiência. O inconsciente coletivo não se desenvolve individualmente, mas é herdado. Consiste de formas preexistentes, os arquétipos, que só secundariamente podem tornar-se conscientes, conferindo uma forma definida aos conteúdos da consciência" (Jung, 1936/1990, Tradução da Editora Vozes). Meus agradecimentos a Frederique Tecucianu-Klein por me lembrar da relevância de Jung na presente discussão.
5 O "objeto-som" ("sound-object") de Maiello (1995) é de grande relevância aqui: o som da voz da mãe ou de outros, em alternância com o silêncio, e os sons das pulsações cardíacas da mãe ou de seu sistema digestivo podem dar ao feto uma proto-experiência de presença e ausência que forma a base de um objeto sensual prénatal. Esse "objeto-som", relacionado a uma preconcepção do seio, pode ser um dos precursores do objeto materno interno pós-natal.
6 Uma relação íntima entre o feto e a placenta encontra-se entre os minianka da África Ocidental, que percebem a placenta como um tipo de alter ego do recém-nascido, e cujos rituais de enterro incluem o de um jarro que contém a placenta (Rhode, 2003). Do mesmo modo, a relação do feto com o cordão umbilical, como envolvente e protetor em vez de enredador e inibidor, é projetada na imagem da cobra que, em muitas civilizações, é altamente carregada de significações emocionais, que vão do medo à adoração. Além do mais, a ideia de Bion do recém-nascido como tendo uma preconcepção do seio pode resultar parcialmente da estimulação da área oral enquanto chupa a placenta, o polegar ou o cordão umbilical (Osterweil, 2002).
7 Muitas vezes, o analista é tratado como objeto placentário, pois recebe os materiais tóxicos do feto e, ao mesmo tempo, fornece-lhe oxigênio e alimento. Bion via esse processo recíproco como um precursor pré-natal da identificação projetiva.
8 Ver também a advertência de Piontelli no pós-escrito do seu livro (Piontelli, 1992), que é muito relevante no presente contexto: "Os fatos da vida pré-natal, que previamente pareciam dominar e impregnar todos os jogos e fantasias até uma idade de quatro ou cinco anos, entremearam-se e misturaram-se com muitos acréscimos e adições que pertencem à vida ulterior. A imagem composta que se tem, nesse período ulterior, embora ainda contenha elementos reconhecíveis do passado pré-natal, parece fundamentalmente diferente da versão linear anterior, simples e quase generalizada, desse passado. A vida pré-natal também parece perder a sua qualidade ‘fatual' realista e tornar-se cada vez mais afetada e mudada pelo afeto de fantasia a ela vinculado [...]. Para algumas crianças, fica idealizada, para outras, carregada de perseguição e ansiedades claustrofóbicas".
9 O conceito de O, de Bion (1970), e a ênfase na inefabilidade de O, de Grotstein (2000), expandem a discussão sobre a busca para entender nossas mentes e as limitações dessa busca.
10 O sentido de um self emergente (do nascimento a dois meses); o sentido de um self central, nuclear (entre dois e seis meses); o sentido de um self subjetivo (entre sete e quinze meses) e o sentido de um self verbal (depois de quinze meses) (Stern, 1985). Treze anos mais tarde, ao revisar a versão original de seu livro, Stern acrescentou mais duas camadas na hierarquia do self o "self -com-outro central", que precede o self subjetivo, e o "self narrativo", que emerge gradualmente do self verbal (Stern, 1998), em torno da idade de três a quatro anos, através de interações precoces mãe-criança, que criam "envelopes proto-narrativos" (Stern, 1995).
11 Em seus escritos posteriores, Mancia (2008) chamou essa proto-estrutura de "inconsciente não recalcado".
12 Esse "self pré-representacional" lembra uma das "preconcepções" de Bion, pois ambos apontam para "elementos ativos do self pré-natal que preparam o recém-nascido para o encontro com objetos reais" (Mancia, 1989).

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