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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.2 São Paulo Apr./June 2013

 

COMENTÁRIOS SOBRE A ENTREVISTA

 

Singular contemporaneidade: dez reflexões sobre a contemporaneidade da psicanálise (a propósito da entrevista de Olgária Chain Féres Matos)

 

Singular modernity: ten reflections on the modernity of psychoanalysis (based on the interview with Olgária Chain Féres Matos)

 

Singular contemporaneidad: diez reflexiones sobre la contemporaneidad del psicoanálisis (a propósito de la entrevista de Olgária Chain Féres Matos)

 

 

Mariano HorensteinI; Tradução Claudia Berliner

IPsicanalista, membro titular com função didática da Asociación Psicoanalítica de Córdoba APC, dirigiu a revista Docta desde sua fundação até 2010, editor de Calibán: Revista Latinoamericana de Psicoanálisis

Correspondência

 

 


RESUMO

À maneira de diálogo com a entrevista que a RBP fez com Olgária Chain Féres Matos, o autor expõe algumas características ligadas tanto à contemporaneidade quanto à singularidade da psicanálise como prática.

Palavras-chave: contemporaneidade; discurso do analista; vazio da experiência; anacronismo da psicanálise; singularidade.


ABSTRACT

In order to establish a dialogue with the interview which the rbp conducted with Olgária Chain Féres Matos, the author brings up some characteristics related to the modernity and the singularity of psychoanalysis as a practice.

Keywords: modernity; analyst's discourse; void of experience; anachronism of pyschoanalysis; singularity.


RESUMEN

A modo de diálogo con la entrevista realizada por la RBP a Olgária Chain Féres Matos, el autor despliega algunas características vinculadas tanto a la contemporaneidad como a la singularidad del psicoanálisis como práctica.

Palabras-clave: contemporaneidad; discurso del analista; vacío de la experiencia; anacronismo del psicoanálisis; singularidad.


 

 

Tal como a noção de identidade em psicanálise, refratária a qualquer captura, motor de um intenso trabalho, também a noção de contemporâneo escapa a qualquer definição, e talvez seja mais fértil formulá-la em termos de pergunta. O que é o contemporâneo? Qual é o Zeitgeist desta época? E caso se possa precisá-lo, nossa prática tem condições de "captá-lo"? Terá a psicanálise alguma chance de sobrevivência ou, mais ainda, alguma razão que justifique sua sobrevivência no mundo contemporâneo?

Então, longe de pretender definir, tentemos expor algumas características que o contemporâneo em psicanálise poderia ter.

 

I

Depois de maio de 68, Lacan (1992) criou uma ferramenta muito interessante, que chamou de quatro discursos. A contemporaneidade de que falamos é, em última instância, um assunto discursivo, e as quatro formas isoladas por Lacan pretendiam, a partir das profissões freudianas impossíveis (governar, educar, analisar, além de um inovador fazer desejar), mostrar os modos possíveis do laço social.

Duas das profissões freudianas impossíveis eram "conhecidas há muito mais tempo"; a novidade, em contrapartida, foi a emergência, em determinada conjuntura histórica, do discurso do analista. Foi o último - lógica e cronologicamente - a aparecer, e nesse sentido, poderia ser o mais "contemporâneo"...

A partir do governar, Lacan constrói o discurso do mestre, que sofreu mutações. No princípio, o mestre clássico, próprio de uma sociedade escravista e feudal. A ele sucederia - com ligeiras variantes estruturais - o mestre capitalista, cujo domínio começa com a Revolução Industrial, e sob o qual se inventa a psicanálise. O discurso do mestre está estruturalmente próximo do discurso da universidade, ligado ao educar, ou a um modo de educar. Sua última forma, relacionada à era digital, à Internet, ao predomínio dos gadgets tecnológicos na nossa cibercultura, seria a do discurso dos mercados, tal como o chama Braunstein (2011). Talvez seja aí onde possamos encontrar esse "capitalismo sem espírito" a que alude Olgária Matos na entrevista. O primeiro, o do mestre clássico, estava ligado ao surgimento do livro como objeto artesanal; o segundo, o capitalista, à imprensa e à industrialização e difusão da letra escrita; o terceiro, dos mercados, à escrita digital, à infinita reprodução da informação sem suporte material.

O discurso do analista, o mais novo segundo Lacan, é o avesso do discurso do mestre, seu reverso e, quase poderíamos considerá-lo, sua consequência natural: o que ali é excluído aparece retomado na análise. Frente às variações do discurso do mestre ao longo da história, vemos que o discurso do analista - na modéstia, na indigência de seus elementos - permanece bastante invariável, inclusive fenomenologicamente.

Freud o construiu a partir do excluído, do sepultado pelo recalcamento: os sonhos, os restos, os lapsos, as próprias histéricas, como párias da psiquiatria. É a partir da dominância do discurso capitalista, como uma consequência necessária, não aleatória nem milagrosa, que a psicanálise surge e se fortalece (e só prosperou nas democracias capitalistas, segundo Elisabeth Roudinesco, não por questões imaginárias como a liberdade, mas por um aspecto estrutural). Esse discurso de certo modo muda, pois muda o mestre, que passa a ser esse obscuro sujeito que é todos e ninguém, inominado, mas de forma nenhuma desinteressado, conhecido como "os mercados".

Em seu núcleo duro, a "tecnologia" psicanalítica é bastante parecida à de um século atrás, e de uma simplicidade assombrosa: um modo de escuta, a instrução de falar, um divã, uma poltrona. Todos nossos esforços teóricos durante cem anos não alteraram muito essa estrutura simples, que hoje, mais que nunca, é a meu ver inatual e ao mesmo tempo contemporânea. É desde esse observatório anacrônico que nós, analistas, vemos a contemporaneidade; é desde a estranheza de olhar com instrumentos óticos e não eletrônicos que auscultamos nosso tempo e, apesar das mudanças, encontramos, creio, invariantes - o radical desacomodamento do humano.

De certa forma, o que prevalece em nossa contemporaneidade talvez não seja o recalcado, como nos tempos da descoberta, mas o esvaziado (o que remete ao vazio a que alude Olgária Matos, que aparece convertido em tédio, e cujo pano de fundo, desmentido por ser impossível de assimilar, é a morte).

É o vazio da experiência que prevalece em nossa cultura e que retorna em nossa clínica atual em forma de mudez, de mostração, de impossibilidade de construir projetos desiderativos (Horenstein, 2012). Assistimos a uma nova crise do sujeito, na sequência da crise do capitalismo, desse discurso proteiforme dos mercados, mas cada vez mais questionado no chamado Primeiro Mundo, onde tudo parecia estar indo bem.

Os objetos que o mercado oferece tapam com alguma eficácia o vazio, o desacomoda-mento estrutural. Tal como o amor, só que de maneira mais eficaz, pois alguém pode sonhar que se com um parceiro não dá, talvez com outro dê, ou com outro... até se dar conta de que com nenhum haverá uma união sem fissuras; mas não sei se o mesmo acontece quando a falta se sutura com um iPhone ou um iPad: não dá tempo de perceber que o pequeno gadget não contém o que promete, pois o mercado já lhe oferece uma nova versão que situa a fronteira ainda mais longe, a chamada "obsolescência programada", postergação ad infinitum do encontro com a falta. Ante esse panorama, eu poderia perfeitamente definir nossa prática com um nome que Olgária nos propõe: artesãos do vazio.

 

II

O XXIX Congresso Latino-americano de Psicanálise, que realizamos em São Paulo no ano passado, tinha um tema (tradição/invenção) muito vinculado ao lugar do contemporâneo em psicanálise. Nessa mesma cidade, perto do local do Congresso, ocorria a XXX Bienal de São Paulo, a segunda em importância no mundo depois da de Veneza.

A crer em Freud, Lacan ou Winnicott quanto à dianteira que os artistas ocupam em relação aos analistas, haveria de se pensar que, enquanto discutíamos no WTC, algo do verdadeiramente contemporâneo estava se criando em outro lugar. Sempre que podiam, os colegas latino-americanos que vieram para a cidade escapavam do Congresso para ir à Bienal. Creio que isso é algo que fala bem de nós e talvez do futuro da psicanálise.

Poderíamos deduzir, então, uma primeira característica do contemporâneo: ele está em outro lugar. Logo, uma característica preliminar da exploração do contemporâneo na análise poderia ser a de que é preciso buscá-lo fora. Nesse sentido, a análise se congela quando pretende se alimentar somente dos avanços endogâmicos em seu próprio discurso, e o preço que em geral se paga é o da repetição. A arte contemporânea, que também mantém íntima relação com a pergunta - a que subjaz na busca do artista, aquela que gera no espectador -, tampouco se deixa apreender facilmente em definições e busca seus estímulos onde quer que os encontre.

 

III

Quando os colegas voltavam da Bienal para o Congresso, escutava-se uma espécie de relato compartilhado, algo estranho, pois os analistas não costumam concordar muito entre si: a mostra este ano não é grande coisa, exceto a exposição de Arthur Bispo do Rosário. Seus trabalhos estavam expostos no primeiro andar, em um lugar de destaque, e encantavam quem passasse por ali. O artista brasileiro esteve internado em um hospício e trabalhava sob o comando divino, que o instava a recriar o mundo, totalmente ignorante de que fosse um artista. Assim, isolado do mundo artístico, tornou-se um dos ícones da arte contemporânea brasileira, representante de seu país na Bienal de Veneza. Longe de qualquer afã de ser contemporâneo, longe de qualquer moda ou do ar de qualquer vanguarda.

Podemos extrair, então, um segundo traço do contemporâneo que a psicanálise pode aproveitar, tal como Bispo do Rosário nos ensina: alhear-se de qualquer intenção de ser contemporâneo, evitar qualquer afã apressado de vibrar com o tempo que nos toca viver. O terreno das intenções é sempre o egoico, e se a psicanálise chegou até aqui foi por questionar esse plano da eficácia do eu. Nesse sentido, talvez o melhor seja esquecer-se de acertar o alvo - como quem pratica arco e flecha no budismo zen -, justamente para poder acertá-lo.

 

IV

Bispo do Rosário trabalha com restos (latas, colheres, madeiras, fios soltos de roupas usadas, lixo). Esta poderia ser uma terceira característica do contemporâneo em psicanálise: o contemporâneo como um trabalho com os restos, com as excretas, com o segregado. Nesse sentido, a psicanálise continua se ocupando dos restos, só que antes eram sonhos, lapsos, histéricas, e agora se trata do mal-estar que nenhum gadget satura nem sutura, a hiância subjetiva que reaparece, a experiência perdida, o amor, grande forcluído do discurso capitalista.

 

V

O trabalho de Bispo do Rosário é claramente um trabalho delirante. Delirante no sentido original de "sair do sulco"; delirante por seu caráter estranho, bizarro. E a psicanálise, ainda hoje, ainda em uma época que parece acostumada com tudo, impossível de surpreender, continua sendo algo estranho, algo esquisito, e aqueles que se permitem incursionar por ela, que, desse lugar, se escutam falar de modo inédito, cedo ou tarde o reconhecem. Então, outra característica que constitui a contemporaneidade da psicanálise poderia ser sua esquisitice, sua radical estranheza - Susan Sontag (1996) chegou inclusive a reparar na estética da situação analítica, quase uma instalação de arte contemporânea - que, creio, nunca se deve perder de vista assimilando-a a uma profissão como qualquer outra.

 

VI

A obra de Bispo do Rosário, que por momentos parece de vanguarda, por momentos fora de moda, foi forjada não só nas margens, mas na contracorrente (ele também era marinheiro) de qualquer movimento contemporâneo.

Vejo-me tentado a dizer que ser contemporâneo em psicanálise é ir contra a corrente. E esta bem que poderia ser outra característica. Só que paradoxal, pois verificamos que a psicanálise digna desse nome sempre nadou contra a corrente.

Há certa matriz subversiva na psicanálise, produto da inclusão do discurso do inconsciente na paz chata da consciência, que introduziu o sexo em épocas vitorianas, nas quais não se falava de sexo e que hoje, quando talvez se fale demais de sexo, introduz a dimensão do pudor, da intimidade perdida quando exposta diariamente em qualquer rede social.

 

VII

Um modo de navegar contra a corrente nos dias de hoje é ser deliberadamente anacrônico. Há nisso um traço de contemporaneidade, e poderiamos situar isso como uma sexta característica da contemporaneidade em psicanálise.

A psicanálise é uma prática vintage. E talvez aí resida parte de seu encanto. Como os discos de vinil, que pareciam ter desaparecido com o surgimento dos suportes eletrônicos, infinitamente mais portáteis e com maior capacidade. No entanto, reapareceram como peças de coleção e de culto para muitos, que os reconhecem como um suporte em que a música soa de um modo com que nenhum iPod poderia competir. O disco de vinil, como a psicanálise, é mais raro, menos disseminado, mas se converte em um reduto de qualidade inédita, possibilita que se escute uma variedade de sons que permanecem mudos em qualquer outro dispositivo.

Ou como o Bactrim, antigo medicamento suplantado pelos antibióticos de última geração e que voltou, com inusitada eficácia, quando as bactérias já tinham se tornado resistentes a tanto medicamento novo.

É conhecida a citação de Agamben (2009):

Pertence realmente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este nem está adequado a suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, a partir desse distanciamento e desse anacronismo, é mais capaz que os outros de perceber e apreender seu tempo ... A contemporaneidade é, pois, uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, simultaneamente, dele toma distância1.

É difícil pensar em uma práxis mais adequada a essa definição que a psicanalítica. A psicanálise é contemporânea precisamente por ser inatual.

Alinhar-se automaticamente - quase como se fosse algo que não merece discussão - a um modelo que privilegie a relação com as neurociências, por exemplo, é, creio eu, exatamente o contrário do que se deve fazer. Essa mimese com o futuro em forma de progresso só pode nos prejudicar, e caberia ver o que convém modernizar, o que é modernizar, até onde cabe levar a psicanálise no afã de adequá-la a estes tempos.

E avaliar com cuidado o que do passado é essencial e o que é acessório, onde está o núcleo duro, a verdade nua, da psicanálise. Creio que não está nas teorias mais ou menos novas nem em certas formas padronizadas elevadas à categoria de nec plus ultra, mas no dispositivo de proverbial simplicidade, em umas poucas regras, na confiança no inconsciente.

Há quem não se encaixe no tempo olhando para o passado, nas figuras da nostalgia, mas também quem não se encaixa olhando para o futuro, nas ilusões do progresso eterno. Avancemos, contudo, um pouco mais. Será possível ser estruturalmente anacrônico, nem nostálgico de um passado que talvez nunca foi, nem desejoso de um futuro que talvez não o seja?

Ser clássico ou anacrônico não deveria ser um pretexto para gozar do passado e da queixa de que os tempos dourados já se foram. Concomitantemente, porém, talvez devêssemos pensar se, em nosso afã de estar sintonizados com a época, não corremos o risco de afundarmos mais: a arte da natação tem de ser mais precisa. Medir-se no horizonte da época2, sim, mas com a condição de delimitá-lo com precisão: a pressão da moda às vezes faz mais mal que bem - as angústias e a impotência às vezes duplicam os males que, com nossas braçadas de afogados, pretendemos remediar.

Em maio de 68, os revoltosos arvoravam uma palavra de ordem próxima de um oximoro: sejamos realistas, peçamos o impossível. Poderíamos construir a nossa: sejamos contemporâneos, ou seja, clássicos ou - melhor ainda - anacrônicos.

 

VIII

O genial Walter Benjamin (2008), que Olgária Matos evoca, pensava que vivemos em uma época em que tanto a narrativa quanto o tipo de experiência de que ela dá conta estão em crise, e a comunidade de ouvintes em perigo. Ele não se referia à psicanálise, mas pode-ria perfeitamente tê-lo feito, pois sua invenção teria sido impensável fora dessa experiência ligada ao mundo da narrativa oral. Walter Benjamin desconfiava também do chamado "progresso" - forma por excelência em que se encarna o atual -, e gostava de representá-lo como aparecia em um quadro de Paul Klee: o progresso era uma tempestade que arrastava para frente, para o futuro, o anjo da história, que, de costas, contemplava horrorizado o passado como um monte de ruínas (Benjamin, 1989). Nosso trabalho - recordemos a conhecida metáfora arqueológica freudiana - se faz sobre ruínas, sobre a memória das ruínas. Por estrutura, e não por acidente, resiste ao chamado progresso, questiona a racionalidade que tende a considerar o passado findo e o sofrimento inexistente. E não há qualquer contradição em sua inatualidade: o discurso do mestre e suas variantes (da universidade, capitalista e, inclusive, de mercado) é logicamente necessário para o surgimento de seu avesso, o discurso do analista, da mesma maneira que o movimento Slow Food ou sua extensão, o Slow Life - movimento no qual a psicanálise certamente se sentiria muito à vontade - surge graças à proliferação dos Fast Foods.

Podemos pensar como o anjo teria de olhar para ser contemporâneo: de viés, com os olhos entrecerrados, desconfiado. Sétima característica, então: o contemporâneo só é percebido de viés, obliquamente, no detalhe, nunca com a ruidosa evidência da moda, ainda que se trate da moda científica. Pensar que somos contemporâneos se atendemos por Skype é nos posicionarmos como esses pais que dão uma de moderninhos para chegar aos filhos, que pretendem utilizar sua gíria ou vestir sua roupa - pais sempre ameaçados do ridículo.

 

IX

Em biologia estuda-se a necessidade que todo organismo vivo tem de se diferenciar. Diferenciar-se é uma questão de vida ou morte: se um organismo não consegue se diferenciar do entorno, manter o calor quando faz frio, refrescar-se quando o calor sufoca ou permanecer estável ante mudanças catastróficas, ele morre. Todo espécime, por sua vez, desenvolve diferenças adaptativas (embora impliquem adaptações, são diferenças) que lhe permitem sobreviver, e sua espécie evoluir. Um indivíduo de qualquer espécie incapaz de se diferenciar está morto. E isso na ordem biológica, que sabemos subvertida, perdida para sempre, pela linguagem. No território humano, território de linguagem e, portanto, de cultura, poderíamos levar ao extremo tal suposição: não se diferenciar é uma espécie de morte mental.

A psicanálise é um dos escassos redutos atuais em que tal diferença aparece, é posta em cena, resgatada e realçada ao extremo; produzir essa diferença, inventá-la ou descobri-la (sabemos que em latim se usa o mesmo verbo), é o propósito de qualquer verdadeira análise.

Ali onde muitas psicoterapias, e mais ainda os tratamentos psicofarmacológicos, advogam afogar qualquer diferença individual em uma homogeneização que, por trás de disfarces adaptativos, pulverizam qualquer singularidade, a psicanálise se propõe, apesar de tudo, a fazer dessa preciosa diferença a pedra angular de qualquer construção subjetiva. Em psicanálise, sempre sentimos certo incômodo ao falar de diagnósticos, de nosografias, de condutas terapêuticas padrão. Em psicanálise, sempre experimentamos dificuldades na hora de nos comunicarmos com colegas não analistas ou quando é necessário expor nossas certezas ou descobertas em público. A psicanálise talvez seja uma ciência, mas caso seja, é uma ciência do singular. Os casos são contados um a um, e não nos damos nada bem com as estatísticas. Nesse sentido, a psicanálise é um dos últimos refúgios da subjetividade entendida como singular, como alérgica à massa, como essencialmente inadaptada - essa subjetividade sempre ameaçada, inclusive pelos próprios desejos de nossos analisantes, de submergir no mortal abraço do Outro. A psicanálise é - sempre foi - um reduto de resistência (Viñar, 2006) em uma cultura que transforma o cidadão em consumidor, o sujeito em objeto, que decreta que a história chegou ao fim e que inventa pílulas para alcançar paraísos de felicidade normalizada.

É fácil se enganar porque atualmente fala-se muito do indivíduo, diz-se que logo haverá (já é possível) jornais com notícias singularizadas segundo nossos interesses, e que os numerosos gadgets tecnológicos hoje disponíveis - de celulares e notebooks até automóveis - podem ser configurados ao gosto de cada um. Vivemos na época do marketing "um a um", em que os especialistas têm condições de nos abarrotar de objetos desenhados a partir de nossas próprias e singulares necessidades. Há, inclusive, uma marca espanhola de roupas chamada Desigual, que baseia sua campanha publicitária na diferença, na singularidade de cada peça de roupa para um consumidor supostamente único... produzindo milhares de peças desiguais suspeitosamente parecidas.

O certo é que essa diferenciação extrema encobre um anonimato pavoroso, um colapso absoluto daquilo que nos torna verdadeiramente únicos, esse desejo indomável, insaciável, irreverente, inoportuno, incômodo e incomodante, que só pode encontrar seu lugar no território de um dispositivo como o psicanalítico, sempre sustentado com dificuldade.

A mola da eficácia da psicanálise, de sua eficaz inatualidade, consiste na preservação militante da singularidade3. E aí reside outro dos traços ineludíveis para pensar sua contemporaneidade.

 

X

Mas isso não basta para revelar o segredo de sua permanência nestes tempos modernos que pareceriam refratários a ela. Uma estranha disciplina, a patafísica, fundada por Alfred Jarry, o criador de Ubu Rei, e que conta entre seus cultores Umberto Eco, Picasso e Raymond Queneau, propôs-se também como ciência do particular, das exceções, e postulou que as leis científicas constituem tão somente exceções multiplicadas. O que diferencia a psicanálise da patafísica (ou de alguma outra narrativa, disciplinas com as quais Olgária Matos parece emparelhar a psicanálise)? Sua relação com o real do padecimento, padecimento não acidental, mas inerente à própria constituição do humano.

A psicanálise está longe de ser um jogo iconoclasta, um divertimento provocador. É uma das poucas práxis que pode conciliar alívio sem enganos (lembremos com Freud o que ele propunha como meta: transformar miséria neurótica em infortúnio corrente) com essa cota de liberdade sem a qual nenhuma vida humana vale a pena. Para o bem ou para o mal, para lidar com o sofrimento sem pretender liquefazer o mal-estar inerente à existência, para chegar a ser o que se é, como reza antecipatoriamente a sentença do poeta grego Píndaro, ainda não se inventou coisa melhor. É aí que se encontra nossa singular maneira de juntar a reflexão e a ação de que fala Olgária Matos, pois a legitimidade da psicanálise não está no autoconhecimento puro, mas na produção de um sujeito que não se acovarde ante os desafios que lhe coloca sua própria singularidade.

Essa promessa de diferença que fazemos implicitamente a nossos analisantes com a mera oferta de uma escuta particular é também um compromisso para o analista - o que é lógico, pois um analista é sempre, fundamentalmente, um ex-analisante -, que deveria resistir às tendências - institucionais ou não - que o levam à homogeneidade, à série, aos chavões ou às modas teóricas para encontrar sua própria singularidade como marca de estilo.

 

Referências

Agamben, G. (2009, 21 de marzo). Paradoja del tiempo que se escabulle (C. Sardoy, trad.). Clarín, Buenos Aires, Ñ - Revista de Cultura. Recuperado em 25 maio 2013, de http://edant.revistaenie.clarin.com/notas/2009/03/21/_-01881260.htm        [ Links ]

Benjamin, W. (1989). Tesis de filosofía de la historia. In W. Benjamin, Discursos interrumpidos I (J. Aguirre, trad., pp. 175-191). Madrid: Taurus.         [ Links ]

Benjamin, W. (2008). El narrador (P. Oyarzún, trad.). Santiago: Metales Pesados.         [ Links ]

Braunstein, N. (2011). El inconsciente, la técnica y el discurso capitalista. México: Siglo XXI.         [ Links ]

Horenstein, M. (2012). El jarrón y las semillas de girasol: apuntes para una tradición por venir. Calibán: Revista Latinoamericana de Psicoanálisis, 10(1),27-38.         [ Links ]

Lacan, J. (1984). Escritos I (T. Segovia, trad.). Buenos Aires: Siglo XXI.         [ Links ]

Lacan, J. (1992). El seminario, 17: el reverso del psicoanálisis (E. Berenguer & M. Bassols, trads.). Buenos Aires: Paidós.         [ Links ]

Sontag, S. (1996). Contra la interpretación (H. Vázquez Rial, trad.). Buenos Aires: Alfaguara.         [ Links ]

Viñar, M. (2006). Inquietudes en la clínica psicoanalítica actual. Revista Uruguaya de Psicoanálisis, 103,22-39.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Mariano Horenstein
Los Aromos, 232, Las Lomitas
5105, Villa Allende, Córdoba, Argentina
mmhorenstein@gmail.com

Recebido em 15.5.2013
Aceito em 29.5.2013

 

 

1 A citação completa continua assim: "mais precisamente, é 'essa relação com o tempo que a este adere através de uma defasagem e de um anacronismo'. Os que coincidem de maneira excessivamente absoluta com a época, que concordam perfeitamente com ela, não são contemporâneos porque, justamente por esse motivo, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela . uma segunda definição da contemporaneidade: contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar sobre seu tempo para perceber não suas luzes, mas suas sombras".
2 Lacan dizia: "que antes renuncie a isso quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época" (1984, p. 309).
3 Inclusive de cada analisante com relação a seu próprio analista. Por isso são irritantes aqueles pacientes que se parecem demais com seus analistas.

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