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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.2 São Paulo abr./jun. 2013

 

INTERFACE

 

Tempo, historicidade e história ou a falta dela1

 

Time, historicity, and history, of the lack thereof

 

Tiempo, historicidad e historia o falta de esta

 

 

Lilia Moritz Schwarcz

Professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo USP, Global Scollar em Princeton, autora de vários livros, curadora de exposições

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo trata da maneira como na antropologia a questão da temporalidade se transformou num tema candente, ora a dividir, ora a aglutinar escolas. A partir desse debate é possível pensar em diferentes formas de história presentes em outras sociedades, ou mesmo inscritas na nossa: circulares, evolutivas, progressivas, cronológicas ou mesmo aquelas que negam a mudança e o devir. O ensaio faz largo uso de romances, poesias e letras de música.

Palavras-chave: tempo; temporalidade; etnologia; história.


ABSTRACT

This article deals with the way in which the matter of temporality, in anthropology, has transformed into a candent theme which at times divides schools, and at others, unites them. From this debate, it is possible to think of different forms of history present in other societies, or even inscribed in ours: circular, evolutionary, progressive, chronological or even those which deny change and becoming. The essay makes wide use of stories, poems and musical lyrics.

Keywords: time; temporality; ethnology; history.


RESUMEN

Este artículo aborda la forma en que en la antropología, la cuestión de la temporalidad se transformó en un tema candente, unas veces para dividir, otras para aglutinar escuelas. A partir de este debate es posible pensar en diferentes formas de historia presentes en otras sociedades, o incluso inscritas en la nuestra: circulares, evolutivas, progresivas, cronológicas o incluso aquellas que niegan el cambio y el devenir. El artículo utiliza ampliamente romances, poesías y letras de canciones.

Palabras-clave: tiempo; temporalidad; etnología; historia.


 

 

Alice: "- Quanto tempo dura o eterno?"
Coelho: "- As vezes apenas um segundo"

(Lewis Caroll, Alice no país das maravilhas, 2002).

 

Introdução ou no tempo da Duna

No final de 2012 retornei a Jericoacara; local que não visitava fazia algum tempo. Queria novamente subir na famosa duna local, e assistir ao não menos famoso por do sol na praia. Cumprira tal ritual algumas vezes e em diferentes fases da minha vida. No final da adolescência - hora certeira para realizar esse tipo de expedição, e há cinco anos, quando procurei me cuidar de um stress típico de final de semestre. Dessa vez, ao chegar ao local, acompanhada do bugueiro Ferrugem - o mesmo que estivera comigo na última vez que visitara o local - estranhei o tamanho mais diminuto da duna. Foi quando entabulamos um diálogo dos mais inspirados, sobre o tempo e seus feitiços. Perguntei ao Ferrugem porque a Duna diminuira de tamanho. A resposta dele não poderia ser mais paradoxal: "Se diminuiu ou não depende do olho de quem vê e de como vê". Ao que respondi: "para o meu olho que vê, sim, diminuiu". Ele então comentou: "Culpa sua essa ideia de ficar muito tempo sem vir parar por aqui". Reagi: "Mas foram apenas cinco anos!". E Ferrugem concluiu sem direito a réplica: "Essa história de tempo contado no dedo, na calculadora, no relógio é coisa de vocês de São Paulo. Tempo de Duna não tem isso não. É de outro raciocínio e lógica".

Fiquei parada por lá, não sei se mais frustrada com a nova realidade da Duna ou com o quilate da resposta que acabara de receber. O Tempo da Duna, na versão de Ferrugem, me lembrou muito do Tempo da Montanha, do famoso livro de T. Mann. Em A montanha mágica, o personagem central, E. Castorp, é um jovem que narra "fatos passados há muito tempo" e que estão "recobertos pela pátina do tempo e na forma de um passado remoto" (Mann, 1980, p. 9). O cenário se concentra em outra montanha: no sanatório Berghof, localizado na aldeia suíça de Davos-Platz; espécie de laboratório de uma Europa enferma do entre-guerras, onde se entrelaçam inquietações, ilusões e utopias, todas reunidas pela mesma doença: a tuberculose. Castorp, cordato de caráter, vai se deixando ficar nesse local em que o tempo insiste em ganhar outro tipo de duração. Deixemos T. Mann narrar:

... é necessário que as Histórias já se tenham passado. Poderiamos até dizer que, quanto mais se distanciam do presente, mais adequadas serão ao narrador, este mago que evoca o pretérito. Acontece, porém, com a História o que hoje em dia acontece com os homens e com os narradores de Histórias: ela é muito mais velha que seus anos; sua vetustez não pode ser medida por dias... Não é propriamente ao tempo que a História deve o seu grau de antiguidade - e com esta observação feita de passagem aludimos ao caráter problemático desse elemento misterioso (p. 9).

A história e o tempo são centrais nesse livro, mas a extensão deles não se mede por dias, e sim por esse elemento misterioso chamado tempo, segundo a definição do Coelho sempre apressado de Lewis Carroll (2002). No entanto, como o tempo "é um enigma, difícil de resolver" (Mann, 1980, p. 181), nosso romance corre ligeiro e Castorp comprova que as sete semanas que passara lá em cima, na montanha, não pareciam mais do que sete dias. Ou às vezes tudo ocorria exatamente ao contrário: já vivia naquele mesmo lugar muito mais tempo do que a realidade lhe anunciava. Como diz Mann,

Uma coisa e outra era, provavelmente, verdade: ao seu olhar retrospectivo, o tempo ali passado afigurava-se excessivamente longo como excessivamente breve. Um único aspecto desse tempo, entretanto, escapava-lhe: a sua duração real - admitindo ser o tempo um fenômeno natural e ser licito relacionar com ele o conceito da realidade (p. 248).

Escapava-lhe, justamente, a nossa temporalidade Ocidental, marcada com instrumentos externos de medição: o mês de outubro que estava prestes a começar, ou a realidade dos dias impressos no calendário ou sacramentados no ponteiro do relógio. O importante é que, de uma maneira ou de outra, "o tempo escoava e seguia o seu curso. de forma que nenhum homem de espirito são pudesse considerá-lo História (p. 601). Há aqui, portanto, um manejo da noção de tempo que não se confunde com a de história: a nossa história. Até parece que estamos diante do Tempo da Duna, de nosso bardo Ferrugem, ou mesmo da noção do "tempo misterioso" de W. Benjamin: "essa imagem do passado que a história transforma em coisa sua" (1985, p. 89).

A Duna movente de Jeri ou A montanha mágica de Castorp permitem lembrar de que forma, também entre nós, o tempo e a história são matéria da negociação: ambiguos em sua compreensão, múltiplos nos desenlaces, vários como representação. Mais ainda, como a história é central em nossas próprias narrativas: é difícil nos definirmos ou identificarmos sem ela. Nós somos homens situados no presente; que relembramos o passado e tentamos prever o futuro. No entanto, se procuramos controlar nosso tempo e fazer da história uma disciplina previsível, vale destacar como são muitas as histórias a que diariamente nos referimos, quando pensamos em destino, temporalidade, passado, presente e devir. Vamos por partes e desenrolando esse novelo.

Em primeiro lugar, é possível definir história como uma categoria universal, já que a experiência comum da passagem do tempo é consensual, mas também particular: na dimensão dos eventos e quando o acontecimento é culturalmente valorizado. A história pode, também, ser tomada ora como uma disciplina (a História com maiúscula, e a historiografia, que seria mãe de todas as disciplinas), ou então como uma categoria fundamental. Nesse último sentido, e nos termos do sociólogo francês E. Durkheim, estaríamos lidando com uma "categoria básica do entendimento", um a priori nos termos de Kant: não há sociedade que não construa sua noção de tempo, mas cada cultura a realiza empirica-mente de forma particular2.

Poderíamos opor, também, duas noções mais óbvias de tempo e, como veremos, de história. Assim como as coisas vivas nascem, crescem e morrem - e, portanto, mudam -, também certos fenômenos da natureza se repetem (a semana, as estações, o dia que vira noite e vice-versa). História, portanto, (e mesmo entre nós) acomodaria, incomodamente, alteração e reiteração. Um paralelo pode ser feito com a famosa distinção e querela dos anos 1960, quando alguns estudiosos pretenderam distinguir diferentes temporalidades a partir de modelos de "sociedades com ou sem história": as que se definem pela mudança ou pela reiteração (as sociedades quentes) e aquelas que rejeitam a mudança, as chamadas "sociedades frias" (na versão de Lévi-Strauss, 1975-1996), "estagnantes" (na concepção de Claude Lefort, 1979a). Mas esse debate foi abandonado, faz algum tempo, ou pelo menos o mal-entendido que o circundava. Lefort mostrou como não teria procurado por "realidades empíricas", mas antes modelos; assim como Lévi-Strauss explicitou que tal classificação servia, apenas, para indicar diferenças entre culturas: definia somente dois estágios que, nos termos de Rousseau, "não existem, não existiram, jamais existirão" (Lévi-Strauss, 1983a, p. 1219).

A ideia não era encontrar humanidades essencialmente distintas, mas antes - e parafraseando Lévi-Strauss - como a história é "boa para pensar"3. Assim como se estudam parentescos, rituais, simbologias, também a história permite prever como a humanidade é una, mas "várias" em suas manifestações. Hora de ajustar o foco. Não é meu objetivo neste artigo selecionar uma entre essas tantas definições, mas antes pensar como a antropologia vem entendendo e registrando a história em outras sociedades e - por que não - na nossa: na qual a questão da história, seja como disciplina, seja como temporalidade, é central. O importante, por enquanto, é anotar não tanto a reiteração do tema nas diferentes sociedades, mas sua aplicação em tudo distinta. De pronto, lembro-me de alguns exemplos: o tempo dos Nuer que, como mostra Evans-Pritchard (1978a), adotava um referencial sempre interno e da intimidade; o tempo dos Mendi, um povo que, como explica M. Sahlins (1997), "fazia tudo convergir para seu próprio tempo"; o modelo pendular encontrado por Leach (1974) entre os Kachin, no qual o tempo é representado como uma repetição de inversões; o tempo dos Piaroa, descrito por Joanna Overing (1995), que é ora linear ora não; e o "nosso" - um tempo seriado, progressivo e cumulativo. Aí estaria uma questão de fato antropológica: a busca de alteridades entre sociedades; formas diversas de expressão, que ajudam a refletir, no limite, sobre a nossa própria experiência: inundada de história ou da complexa relação que ela funda. Ou nos termos de Gilberto Gil, em Parabolicamará (1992):

Antes mundo era pequeno Porque Terra era grande Hoje mundo é muito grande Porque Terra é pequena Do tamanho da antena Parabolicamará. Ê volta do mundo, camará Ê, ê, mundo dá volta, camará. Antes longe era distante Perto só quando dava Quando muito ali defronte E o horizonte acabava Hoje lá trás dos montes dendê em casa camará
Ê volta do mundo, camará Ê, ê, mundo dá volta, camará
De jangada leva uma eternidade De saveiro leva uma encarnação
Pela onda luminosa Leva o tempo de um raio Tempo que levava Rosa Pra aprumar o balaio Quando sentia Que o balaio ia escorregar
Ê volta do mundo, camará Ê, ê, mundo dá volta, camará
Esse tempo nunca passa Não é de ontem nem de hoje Mora no som da cabaça Nem tá preso nem foge No instante que tange o berimbau Meu camará
Ê volta do mundo, camará Ê, ê, mundo dá volta, camará
De jangada leva uma eternidade De saveiro leva uma encarnação
De avião o tempo de uma saudade
Esse tempo não tem rédea Vem nas asas do vento O momento da tragédia Chico Ferreira e Bento Só souberam na hora do destino Apresentar
Ê volta do mundo, camará Ê, ê, mundo dá volta, camará.

Antes o mundo era pequeno porque terra era grande e vice-versa. De jangada leva uma eternidade, de saveiro uma encarnação, de avião o tempo de uma saudade. De fato, o tempo, mesmo em nossa sociedade, é sujeito, como veremos há muita agência, negociação e ambiguidade.

 

Outras histórias; tantas histórias

Não, Tempo, não zombarás de minhas mudanças! As pirâmides que novamente construíste não me parecem novas, nem estranhas. Apenas as mesmas com novas vestimentas
(William Shakespeare).

Pode-se afirmar que várias disciplinas se formaram na contraposição com a história, tal a sua centralidade. No caso que conheço mais de perto, a antropologia, é fácil evidenciar como o embate com a história, e em especial com o conceito de diacronia, foi fundamental. Em seus primórdios, ainda no século XIX, a disciplina, com uma perspectiva evolucionista, incorporou a diacronia e a história. É certo que essa antropologia de finais do século XIX procurava uma só história, pautando-se na ideia de que certas culturas teriam permanecido na estaca zero da evolução, seriam fósseis vivos a testemunhar o passado da nossa própria sociedade. O modelo do Ocidente, caracterizado por uma evolução cumulativa, positiva, e pela aplicação da tecnologia - índice para definir o progresso obrigatório - virava marca de uma humanidade unificada, mas cindida por desigualdades4. Foi nesse momento, também, que essas "sociedades sem Estado" foram definidas como "primitivas e da eterna infância" (Cunha, 1992, p. 11). E, afinal, como tinham parado na história, não havia por que perguntar sobre ela. Conforme afirmava Varnhagem, o famoso historiador do Império brasileiro, "de tais povos na infância não há História: há só etnografia" (1854/1978, p. 30). Essa oposição entre história (como marca e condição do Ocidente) oposta à etnografia do presente (dos povos nativos) foi fundamental para a construção de pilares de nossa episteme. Foi igualmente nesse momento que autores como Tylor, Morgan e Frazer passaram a estudar diferentes povos (diretamente ou, de maneira mais frequente, por meio de informantes), para neles recuperar a nossa história, olhando de frente (do seu contexto) para trás. A história virava conta certa, de dois mais dois, e a humanidade um projeto certeiro com final previsível (e feliz): a nossa civilização.

A questão da história, ou melhor, a negação da história, virou tão central que "provocou" a criação de escolas, que, dentre outros, se opunham ao tempo, e em especial à diacro-nia e ao que chamavam de modelo conjectural. E foi para se opor a esse modelo conjectural evolucionista, que antropólogos culturalistas norte-americanos de um lado, e funcionalistas ingleses de outro, buscaram distanciar-se da diacronia e se opor à história. Condenava-se o evolucionismo não só porque sua reconstituição histórica não era verificável, mas também porque a história dessas sociedades parecia diminuta frente ao "presente etnográfico". E mais: diacronia virava inimigo certeiro, portador de subjetividades em tudo avessas ao cientificismo acadêmico. Para F. Boas, por exemplo, era preciso localizar desenvolvimentos particulares; realizar análises comparativas e limitadas - chegar a culturas individuais -para se lograr chegar a uma história pequena, localizada, mas precisa cientificamente (Boas, 1936/2004). Confessava o antropólogo: "O material necessário para a reconstrução da História biológica da humanidade é insuficiente ... o material para a reconstrução da cultura é ainda mais fragmentário ... Dispomos de informações históricas apenas dos povos que dominaram a escrita" (Boas, 1932/2004, p. 98).

Mas qual era a história que Boas procurava? Não seria uma história ocidental (pautada em registros escritos) e, por princípio, não encontrável nas culturas por ele estudadas? Segundo Lévi-Strauss, Boas manifestaria a decepção de renunciar à aspiração de entender "como as coisas chegaram a ser o que são", transformando-se em um "agnóstico histórico" (Lévi-Strauss, 1975, p. 21). Como fazer história do presente sem recurso ao passado e sem transformar aquela história (ou sua suposta ausência) na "nossa história"?

Mais radical era a posição de autores da escola funcionalista inglesa, que em nome da objetividade procuraram se privar da diacronia. O próprio método implicava uma recusa à história, já que as sociedades humanas, sobretudo na visão de Radcliffe-Brown, eram entendidas como sistemas sincrónicos e em equilíbrio. Por isso mesmo, o autor esta-beleceria uma distância formal entre disciplinas: ao etnógrafo destina-se o conhecimento direto, fruto da observação dos povos que estuda; já os historiadores deveriam limitar-se aos arquivos escritos (Radcliffe-Brown, 1989a, p. 11). Retomando o tema exclusivamente a partir de questões de método, Radcliffe-Brown expulsava a história de sua análise e desafiava: "Os antropólogos, que consideram o estudo histórico, instalam-se em conjecturas e pura imaginação" (p. 12). A etnografia se convertia, assim, em um modelo do presente, condicionado pela ausência de documentos escritos. Mais uma vez é Lévi-Strauss quem ironiza tal postura: "pouca história vale mais do que nenhuma, dizer que uma sociedade funciona é truísmo, mas dizer que tudo nessa sociedade funciona é um absurdo" (Lévi-Strauss, 1975, p. 27). Afinal, o problema não era metodológico e sim epistemológico: desconhecer que havia também história no presente ou, ainda, que existiriam outras histórias e temporalidades inscritas na própria etnografia.

 

Outras histórias, tantas histórias

Saída diferente encontraria Evans-Pritchard nas aulas que proferiu em 1950. Nomeando o debate entre antropologia e história como uma "querela doméstica", o autor diluía fronteiras. Dizia ele: "o conhecimento do passado leva a uma compreensão mais profunda da natureza da vida social no presente. A história não é mera sucessão de mudanças, mas sim, processo de desenvolvimento"5. O antropólogo introduzia, dessa maneira, uma nova chave explicativa: história é processo e não há sociedade que não construa a sua, mesmo que no tempo sincrônico. Ela não é a mera sucessão de eventos, mas a relação entre eles (Evans-Pritchard, 1962, p. 48). Importante sublinhar a inovação. Contra o modelo positivo de história - a histoire evenémentielle -, Pritchard propunha outra saída, na qual cabiam outras temporalidades e não só aquelas marcadas pela sucessão de eventos.

A preocupação do autor com a temporalidade, como categoria, não era, porém, nova. Já na década de quarenta, Evans-Pritchard enfrentara a especificidade da categoria tempo em seu estudo sobre os Nuer, um povo da África do Norte onde desenvolvera longa etnografia, mostrando de que maneira esse conceito era condicionado pelo ambiente físico, mas suas respostas dependiam das estruturas sociais e das relações internas6. Os conceitos de tempo e espaço nuers pouco tinham a ver com nossa maneira de dominar o registro temporal; eram antes efeito da intimidade. Trata-se assim de outra forma de nomear o tempo e de conceber a história: não a "nossa história" (mensurada por instrumentos externos), mas uma história interna ao grupo e construída a partir de categorias nativas7. Por sinal, em outro artigo, publicado em 1961, Evans-Pritchard relacionaria os impasses criados por uma antropologia que de a-histórica tornara-se anti-histórica: o uso a-crítico de fontes documentais, o pouco esforço em lidar com o passado, o suposto de que as populações nativas são estáticas e, sobretudo, a ideia de que se podia abolir a mudança social. E insistia: "não se chega à mudança sem o recurso à história e ignorando-a estamos condenados a não conhecer o presente" (Evans-Pritchard,1962, p. 56).

Evans-Pritchard acusava, assim, a existência de uma "ignorância da História" e introduzia dois níveis de análise: história seria o registro de eventos, mas também a representação deles (Evans-Pritchard, 1962, p. 56; Dumont, 1957, p. 20). Ou seja, a maneira como damos significado não só aos eventos, mas às retóricas do passado. E esse assunto parecia andar na ordem do dia. Aliás, já em 1949, Lévi-Strauss lançara um ensaio sobre o tema: seu primeiro "Etnologia e História". Nesse ensaio, seu alvo de ataque mais direto era ao funcionalismo de Malinowski e Radcliffe-Brown8. "Pode-se indagar", provocava ele, "se privando-se de qualquer História, não teriam abandonado tudo... E muito pouca História (já que tal é infelizmente o quinhão do etnólogo) vale mais do que nenhuma" (Lévi-Strauss, 1975, pp. 25-27). O etnólogo apresentava, pois, uma crítica epistemológica à maneira como a antropologia lidara com a questão. Como definiria em 1952, em Raça e História: "Todas as sociedades humanas têm um passado da mesma ordem de grandeza. Não existem povos crianças, todos são adultos, mesmo aqueles que não tiveram diário de infância e de adolescência" (Lévi-Strauss, 1952/1975, p. 35). Mas se não há povos sem história, existem, sim, variações nas formas como as sociedades se representam (ou não) a partir da história. Trata-se de perceber, portanto, diferentes "modelos" de conceber história e temporalidade: uma progressiva e acumulativa, usando a história como sua representação fundamental; e outra igualmente ativa, mas que retomaria uma espécie de fluxo cíclico.

Essa é também a posição de Claude Lefort, que em 1952 publicava o livro As formas da história. Retomando o debate de Lévi-Strauss, Lefort carregava a herança do existencia-lismo e introduzia a noção de "historicidades". Diferentes culturas apresentariam formas distintas de devir: uma história regida por um princípio de conservação, e outra que abre sempre lugar para o novo. Uma história visível - que destaca a mudança - e uma história invisível - que apaga seus vestígios. Era por isso que o filósofo negava-se a falar em história no singular: "Há sociedades cuja forma se manteve durante milênios e que, a despeito dos acontecimentos de que foram teatro ... ordenam-se em função da recusa do histórico" (Lefort, 1979b, p. 17). Lefort denominava essas sociedades de "sem história" não porque desconhecessem mudanças, mas para pôr em evidência sua tendência a neutralizar os efeitos da mudança. Estamos, assim, diante de um novo patamar: "as sociedades estagnantes" não se situariam aquém da era do desenvolvimento histórico: elas elaborariam as próprias condições de sua estagnação (Lefort, 1979b, pp. 17-18). Diferente da concepção de Hegel, para quem a própria história nasce com o Estado e da mudança, Lefort indagava sobre a vigência de sociedades que abriram mão da história; da nossa história. Por isso, a etnologia ajudaria não a desvendar formas primitivas da evolução humana (e anteriores à nossa experiência), mas antes o confronto entre tipos de devir: "uma mesma humanidade, às voltas com as mesmas questões, embora dando a elas soluções diferentes" (Lefort, 1979b, pp. 55-56).

Mas voltemos ao texto de Lévi-Strauss, que ocupava lugar estratégico, como introdução de sua famosa coletânea Antropologia estrutural, que de alguma maneira representou um cartão de apresentação deste pensador, que à época era ainda um jovem e promissor etnólogo9. Nele, o autor anunciava a especificidade da sua etnologia e, por meio da história, repassava impasses da disciplina. Em suas palavras: "Pretender reconstituir um passado do qual se é impotente para atingir a História, ou querer fazer a História de um presente sem passado, drama da etnologia [ou do culturalismo] em um caso, da etnografia [ou do funcionalismo] em outro" (Lévi-Strauss, 1952/1975, p. 30). O ensaio começava, inclusive, descartando distinções que relegavam à história a alteridade no tempo, e à antropologia no espaço: "o comum é que são sistemas de representação que em seu conjunto diferem de seu investigador" (Lévi-Strauss, 1975, p. 28). O autor indica, ainda, variações nos procedimentos: enquanto o historiador se debruça sobre muitos documentos, o antropólogo observa apenas um: uma sociedade. No entanto, tal desproporção parecia não incomodar o etnólogo, que ironizava a própria constatação dizendo que a saída seria "multiplicar os antropólogos", ou admitir que o próprio historiador recorre aos etnógrafos de sua época. Dessa forma, a diferença não seria de objeto (a alteridade), muito menos de objetivo (o diverso), nem mesmo de método (mais ou menos documentos). Segundo ele: "Enquanto a História organiza seus dados em relação às expressões conscientes, a etnologia indaga sobre as relações inconscientes da vida social" (Lévi-Strauss, 1975, p. 34)10.

Com tal distinção, Lévi-Strauss pretendia, mais do que desautorizar a produção his-toriográfica, anunciar as bases de uma antropologia estrutural. Tendo como objetivo chegar às estruturas inconscientes, o etnólogo explicava: "Na linguística e na etnologia não é a comparação que fundamenta a generalização, mas sim o contrário" (Lévi-Strauss, 1975, p. 37). Nova distinção: "a Antropologia iria do particular ao universal e a História do explícito ao implícito". E o artigo terminava com um estranho happy end, depois de ter demarcado distinções tão fortes. "Elas nada podem uma sem a outra" (p. 41), diria o etnólogo. E eu acrescentaria, uma (a história), sem a outra (a antropologia).

Tal ousadia custaria caro a Lévi-Strauss, que, quarenta anos depois, ainda defendia sua posição dos ataques de historiadores: "Meu artigo tendia a mostrar que uma oposição nefasta e caduca deveria ceder lugar aos trabalhos que os etnólogos e historiadores hoje podem realizar lado a lado" (Lévi-Strauss & Eribon, 1990, p. 157). Lévi-Strauss trataria, inclusive, de esclarecer seu partido em novo artigo, apresentado em 1983, em homenagem a M. Bloch. Apesar da repetição do título - "História e Etnologia" -, não existem referências ao texto anterior. Dessa vez, o objetivo era examinar as "estreitas relações entre as disciplinas" e adiantar que "fora graças à Antropologia que os historiadores teriam percebido a importância das manifestações obscuras". E é por meio dessas "manifestações" que o autor introduz um novo campo: uma "antropologia histórica". O problema é então deslocado para a seguinte questão: "Todas as sociedades são históricas, mas apenas algumas o admitem francamente, outras preferem ignorá-la" (Lévi-Strauss, 1983a, p. 1218). As culturas seriam classificadas não em função de uma escala ideal, ou em nome de seu grau de historicidade, mas a partir da maneira como o pensamento coletivo se abre à história: como e quando a veem como ameaça ou quando percebem nela um instrumento para transformar o presente. Há, assim, uma mudança no argumento que gostaria de acompanhar: se tomarmos o tempo como categoria analítica, não há sociedade que não seja histórica. O ensaio revela, também, como optar pela estrutura não significa recusar a história. E pondera: "como é pouco plausível que as sociedades humanas se repartam em dois grupos irredutíveis, alguns revelando a estrutura, outros o acontecimento, duvidar que a análise estrutural se aplique a algumas conduz recusá-la para todas" (p. 1229).

O fato é que o tema da história estaria presente em vários textos de Lévi-Strauss11. Neles, o autor lançará mão da etnologia, com o objetivo de elaborar uma crítica ao papel uni-versalizante da História ocidental, que pressupõe a existência de um só modelo para pensar o devir. Por sinal, se até agora trabalhamos com duas categorias - a história dos historiadores (como denominam Goldman [1998] e Gaboriau [1968]12) e a história como conceito analítico, como categoria fundamental -, é hora de lembrar da crítica que o etnólogo fará nesse contexto à "Filosofia da História". É com o intuito de se contrapor a algum sentido privilegiado da história que Lévi-Strauss escreve o último capítulo de O pensamento selvagem. O objetivo era desfazer da leitura sartreana da história, que tomou a dialética como modelo geral e invocou o critério da universalidade da consciência histórica. Afirma Lévi-Strauss: "é preciso bastante egocentrismo e ingenuidade para crer que o homem está todo inteiro, refugiado em um só dos modos históricos de seu ser ... A História não é, pois, a História, mas a História para" (Lévi-Strauss, 1976, p. 292). Toda história é, portanto, segundo Lévi-Strauss, seleção e relação, e nesse caso, nossa própria concepção ocidental seria redutível a um código particular: a cronologia.

Chegamos, pois, a um aspecto fundamental desse debate: as formas de nomear a historicidade13. E a etnologia - por meio da comparação entre culturas e da operação de estranhamento de si e dos outros - ocuparia lugar estratégico, ao revelar como existem tantas "histórias" como culturas, religiões e parentescos. A distinção entre "histórias frias e quentes" é, dessa forma, apenas um modelo para pensar alteridade e diversidade (Lévi-Strauss, 1976, p. 108). Na sua definição: "a análise estrutural não recusa a história. Ao contrário concede-lhe um lugar de destaque ... Para ser viável, uma investigação voltada para as estruturas começa por curvar-se diante do poder e da inanidade do evento" (Lévi-Strauss, 2003, pp. 401-408).

Dessa maneira, se não há sociedade que deixe de refletir sobre a história, cada uma o faz de maneiras em tudo distintas: afirmando, negando ou usando-a como uma de suas principais representações. Enquanto existem sociedades contra a história, a nossa, por exemplo, é absolutamente a favor.

É claro, que não tenho espaço, e não é o caso, de aqui repassar todos os antropólogos que tomaram parte desse debate. Menciono apenas um, com o objetivo de sinalizar como esse é um debate em processo: Marshall Sahlins, um "estruturalista histórico". Sahlins tem priorizado, em vários estudos, temas semelhantes aos que temos tratado aqui: a maneira como as culturas carregam suas próprias historicidades. Aí estaria o projeto intelectual mais amplo desse autor, implicado na tentativa de explicar de que forma a infraestrutura econômica é ela própria organizada pelos diferentes esquemas culturais. Mas foi só a partir do livro Historical metaphors and mythical realities que Sahlins imiscuiu-se mais diretamente no debate entre antropologia e história. Como explica o autor: "O grande desafio para uma História antropológica não é só saber como os eventos são ordenados pela cultura, mas como nesse processo, a cultura é reordenada. Como a reprodução de uma estrutura carrega a sua própria transformação" (Sahlins, 1986, p. 9). O objetivo era demonstrar de que maneira qualquer recepção pauta-se sempre em estruturas anteriores, motivadas, por sua vez, pela dinâmica da própria cultura: "O processo histórico caminha num movimento recíproco entre a prática da estrutura e a estrutura da prática" (p. 72). É esse processo que Sahlins denomina, em Ilhas de História (1987/1990), como "a reavaliação funcional de categorias". O autor introduzirá história na noção de estrutura, mostrando como, mesmo na representação mais abstrata dos signos - a cosmologia -, a estrutura está em movimento. A cultura assim equacionada corresponde à organização da situação atual em termos do passado. É isso que Sahlins chama de "estrutura da conjuntura": a forma como as culturas reagem a um evento, fazendo dialogar o contexto imediato com estruturas anteriores. A história é construída tanto no interior de uma sociedade como entre sociedades que repõem estruturas passadas na orquestração do presente.

História surge, pois, como sinônimo de mudança, mas também como construto teórico para entender a diversidade das culturas. Sahlins analisa, assim, de que maneira processos do presente são determinados por estruturas do passado, gerando por sua vez experiências originais. Se não há lugar para refazer esse debate, o que se pode afirmar é que existe uma antropologia interessada na transformação histórica; ou melhor, nas manifestações divergentes de processos históricos semelhantes14. E ainda, na certeza de que nosso presente está repleto de passado.

 

Presente na história e história no presente

Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas... Que já têm a forma do nosso corpo... E esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia. E se não ousarmos fazê-la. Teremos ficado. para sempre. À margem de nós mesmos.
(Fernando Pessoa).

A história do presente está inundada pelo tempo da travessia. De um lado, não há sociedades com temporalidade e outras sem. Também não existiriam, no que tange à questão da historicidade, dois blocos: um impondo esquemas culturais e o outro absorvendo; um sendo destruído ou aculturado e outro resistindo e mantendo sua tradição imutável15. Mas é hora de arriscar pensar um pouco em nossa sociedade, sem ficarmos restritos aos exemplos de outras culturas. Afinal, essa é a própria definição de alteridade: a maneira como transformar o familiar em estranho e vice-versa. E me apoio mais uma vez em Lévi-Strauss, quando esse autor mostra como "nas nossas sociedades a história substitui a mitologia e desempenha a mesma função". Ou seja, no Ocidente a história teria a centrali-dade que a cosmologia adquire em outras sociedades. Mas há diferenças a anotar: para as sociedades sem escrita, a mitologia asseguraria que o futuro permanece fiel ao presente e ao passado; já para nós, a história garantiria que o futuro será sempre distinto do presente (Lévi-Strauss, 1979, pp. 63-64). Por isso somos sociedades que têm certeza da mudança, e de que o amanhã é diverso do hoje.

O importante é sublinhar como nossa sociedade ocidental retém uma espécie de auto-consciência histórica; uma história progressiva e evolutiva, condicionada pela cronologia. Por isso, acordamos e logo identificamos o dia da semana, conferimos o jornal para ter certeza de estarmos bem "postados" no mundo, distinguimos com precisão o que é de ontem e o que faz parte do momento presente. Crianças logo são socializadas nos jogos de cronologia: sabem sua idade, na escola aprendem a controlar o dia passar, e são treinadas a não confundir o que faz parte do que já aconteceu diante do que vai ocorrer. Se existem, como mostra Pierre Clastres, sociedades contra o Estado, ou como mostrou Lefort, sociedade que evitam a história e o tempo e fazem tudo convergir sempre para o mesmo momento, a nossa seria uma "sociedade a favor da História". Não por acaso, a história é a disciplina mais antiga do Ocidente, e ensina - entre outros - a manter a cronologia como terreno seguro e estável.

Mas "hoje", como bem mostrou R. Barthes, já nos anos 1970, a ideia de história como mudança e evolução recebeu alguns golpes, assim como o mundo tem sido obrigado a lidar com a diferença cultural mundializada. História vai virando menos a ciência do que acontece com os seres humanos no tempo, e mais um projeto pós-iluminista particular de dar sentido ao progresso e aos descontentamentos que ele vem trazendo. A comprovar tal hipótese, basta ver a batalha que a historiografia vem encetando contra a diacronia, como se ela representasse apenas um erro ou um problema. Claro está que não se deve usar de atitudes anacrônicas na análise e julgamento do passado: qual seja, avaliar comportamentos de outrora a partir de conhecimentos do presente. Mas nessa recusa ao anacronismo há algo de revelador do projeto positivista que ainda carregamos da história. É o filósofo Didi-Huberman quem tem feito uma verdadeira batalha a favor da diacronia e da possibilidade que ela carrega de descrever várias historicidades e suas ambiguidades. Afinal, o perigo de apostar em uma visão unitária de História para o Ocidente é caricaturar a nós mesmos. Se outras sociedades carregam "histórias no plural", também o Ocidente não é só (e sempre) uma sociedade que se pauta pela cronologia ou em uma história evolutiva, em um saber fixo ou linear sobre o tempo. Por isso, o filósofo insiste nas nossas "descontinuidades e anacronismos"; isso para evitar tornar objetos dinâmicos em inertes. Propõe ele - retomando Michel Foucault ao realizar "uma arqueologia crítica dos modelos de tempo" - buscar "ferramentas maleáveis".

Para isso, o filósofo introduz a concepção de "memória", e mostra como, vista a partir dessa perspectiva, a história torna-se muito mais flexível e se aproxima, dizemos nós, da noção de representação defendida por Lévi-Strauss. Memória, para Huberman, é "montagem no tempo" e depende de uma poética sempre anacrônica, pois correlata a cada cultura (Didi-Huberman, 2011). Assim, a "memória" retiraria da história a sua exatidão e introdu-ziria o conflito e a ambiguidade, na mesma perspectiva de W. Benjamin, que sugeriu tomar a "história a contrapelo": como uma história abaixo da linha da pele, e forçosamente distinta daquela oficial (Benjamin, 1986). Enquanto a história oficial é positiva e linear, já a história, tal qual o sonho, mistura temporalidades e evidencia conflitos e ambivalências. Se há o tempo oficial, há igualmente o tempo do calendário, do relógio, mas o tempo das festas e dos rituais, o tempo dos dias feriados, o tempo do final de semana, o tempo da montanha, o tempo das dunas. Nada como lembrar da expressão "estou perdendo tempo". Só uma sociedade que se move pela experiência de "ganhar tempo" é que pode imaginar que o oposto possa vir a acontecer.

Por certo não pretendemos aqui construir uma espécie de patchwork de teorias, assim como tampouco foi nossa intenção chegar a uma visão consensual. O objetivo foi antes tomar a história em suas várias representações, e por meio da comparação e do estranhamento chegar a outras histórias, paralelas ou alternativas à nossa própria experiência Ocidental. Ao invés de acreditar que o discurso sobre os povos de tradição não europeia serve apenas para iluminar nossas "representações do outro", é melhor indagar de que maneira os "outros representam os seus outros" (Viveiros de Castro, 1999, p. 155). Ou melhor, assumir que o conhecimento e reconhecimento de filosofias alheias abrem caminhos para que repensemos nossas próprias ciências e certezas.

"Tempo de encerrar". O tema aqui desenvolvido nos permitiu não só problematizar a noção de história tal qual a usamos - que de tão dominante já faz parte da poderosa ideologia do senso comum -, como localizar muitas histórias: uma história que os homens fazem sem saber (como categoria analítica); uma história que os homens sabem que fazem (como disciplina); a história como elemento universal ou traço da relatividade, a história como memória. Por fim, ajudou a problematizar nossas concepções de tempo e de História. A história como experiência do tempo é aquela que permite reconhecer o envelhecimento; achar que o tempo das férias é curto (quando ele é longo na memória); estranhar quando uma aula, que dura religiosamente o mesmo período, por vezes parece eterna, por vezes breve demais; debater o tempo de uma sessão que pareceu correr ou se prolongar; reconhecer que um dia foi longo demais e outro que mal nasceu já acabou. História é tempo, sensação, representação, memória de si e memória do outro.

De toda maneira, independentemente da inflexão e sentido que se queira usar, o certo é que a História ocupa lugar central em nosso pensamento Ocidental: ela é parte fundamental das grandes narrativas sociais e da forma de nos autorrepresentar, costurando eventos. E como mostrou Paul Veyne: "um evento é apenas o que se destaca sobre um fundo de uniformidade; é uma diferença", da mesma maneira como a "história no singular, e com maiúscula, no limite não existe" (Veyne, 1982, p. 68). Somos todos nativos de nossas muitas temporalidades, e penso que é esse um dos desafios de uma antropologia histórica, de uma história antropológica, de uma arqueologia da história e de uma psicanálise atenta ao devir; a diferentes historicidades e às formas de lidar com a alteridade em nossa sociedade. Mas esse debate é mesmo antigo e não se encerra por aqui. Apelo agora para Caetano Veloso com sua Oração ao tempo (1979), quando ele diz:

És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo tempo tempo tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo tempo tempo tempo...
Compositor de destinos
Tambor de todos os ritmos
Tempo tempo tempo tempo
Entro num acordo contigo
Tempo tempo tempo tempo.
Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo tempo tempo tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo tempo tempo tempo...

 

Referências

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Correspondência:
Lilia Moritz Schwarcz
Rua Salvador de Mendonça, 95
01450-040, São Paulo, SP
lili.schwarcz@gmail.com

Recebido em 26.3.2013
Aceito em 16.4.2013

 

 

1 Este texto utiliza algumas discussões conceituais originalmente elaboradas para o meu concurso de titularidade na Universidade de São Paulo, que versou justamente sobre o tema da História e da historicidade. O texto da palestra foi publicado na Revista Novos Estudos (Schwarcz, 2005).
2Vide Durkheim (1898/1988). Sugiro também a leitura do artigo de Pontes (1993).
3 Expressão utilizada por Lévi-Strauss, em seu livro Totemismo hoje (1986), para se contrapor a Malinowski.
4 Destacamos, entre outras, as obras: Maine, Ancient law (1861); Bachofen, Das Mutterrecht (1861); Fustel de Coulanges, La cité antique (1864); McLennan's, Primitive marriage (1865); Tylor, Researches into the early history of Mankind (1865); e Morgan, The systems of consanguinity (1871).
5 Vide "Marret lectures" (Evans-Pritchard, 1962) e Evans-Pritchard (1978b, p. 100).
6 Os tempos mais longos eram quase sempre estruturais; os tempos mais breves, ecológicos. O tempo estrutural era progressivo, enquanto o tempo ecológico era cíclico e delimitado.
7 Vide, também, "Marret Lectures" (Evans- Pritchard, 1962, p. 21).
8 Radcliffe-Brown sempre discordou dessa alcunha comum, que dizia ter sido inventada por Malinowski. Vide, nesse sentido, Radcliffe-Brown (1989b, p. 279).
9 O ensaio fora publicado originalmente na Revue de Metaphysique et de Morale.
10 Nessa perspectiva, a História estaria para a Antropologia assim como a Etnografia para a Etnologia.
11 Em obras como "História e etnologia" (1949); Raça e História (1952), Aula inaugural (1960), os dois últimos capítulos de O pensamento selvagem (1962), o segundo "História e etnologia" (1983a), "Um outro olhar" (publicado na revista L'Homme em 1983b), História de Lince (1991), "Voltas ao passado" (entrevista para a revista Mana, de 1998), nas Mitológicas (1964-71).
12 Esse termo é utilizado por Márcio Goldman (1998) no ensaio de Gaboriau (1968).
13 Veja também, nesse sentido, artigo de Márcio Goldman (1999).
14 Vide nesse sentido Fox & Gingrich (2002, p. 167).
15 Vide nesse sentido Pompa (2003) e Ginzburg (1999, Introdução).

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