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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.3 São Paulo July/Sept. 2013

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: LEGADOS

 

Jean-Bertrand Pontalis: um poeta da psicanálise

 

Jean-Bertrand Pontalis: a poet of psychoanalysis

 

Jean-Bertrand Pontalis: un poeta del psicoanálisis

 

 

Celso Halperin

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPPA)

Correspondência

 

 


RESUMO

O artigo propõe uma aproximação à obra de Jean-Bertrand Pontalis. Com uma singular trajetória na psicanálise e na cultura francesa a partir da década de 50, Pontalis desenvolve uma forma própria de transmitir suas ideias e vivências. Percorrendo os caminhos dos sonhos, da linguagem e da clínica, podemos ter uma ideia aproximada do que seja a obra desse original psicanalista.

Palavras-chave: autografia; sonhos; linguagem; literatura; psicanálise francesa.


ABSTRACT

This paper attempts to approach the work of Jean-Bertrand Pontalis. Having a unique path in French psychoanalysis and culture from the 1950s onwards, Pontalis developed a way of his own to convey his ideas and experiences. Following the paths of dreams, language and the clinic, it is possible to develop an idea of what this creative psychoanalyst's work consists of.

Keywords: autography; dreams; language; literature; French psychoanalysis.


RESUMEN

El artículo propone una aproximación a la obra de Jean-Bertrand Pontalis. Con una trayectoria singular en el psicoanálisis y en la cultura francesa a partir de la década del 50, Pontalis desarrolla una manera propia de expresar sus ideas y experiencias. Recorriendo los caminos de los sueños, del lenguaje y de la clínica, podemos tener una idea aproximada de la obra de este original psicoanalista.

Palabras clave: autografía; sueños; lenguaje; literatura; psicoanálisis francés.


 

 

Jean-Bertrand Pontalis (1924-2013). Difícil saber onde guardar seus livros: na estante de literatura ou junto aos livros de psicanálise? Psicanalista, escritor, ensaísta, romancista e editor, detém uma escrita altamente poética, em que a linguagem transborda o limite das próprias palavras. Por conhecer com profundidade as teorias e os conceitos psicanalíticos, bem como as forças imobilizadoras que eles podem ter ao serem comunicados, Pontalis preocupa-se com uma transmissão sempre literária de suas ideias, leituras e da atmosfera da clínica psicanalítica. Simplesmente resumir seus escritos, privilegiando suas ideias em detrimento de sua poesia, não seria coerente com tudo aquilo que Jean-Bertrand nos ensina. Assim, sempre que possível, serão transcritos trechos do próprio Pontalis para absorvermos não só suas ideias, mas também um pouco do encanto de sua narrativa. J.-B. não se esconde em seus textos; ele se desvela. Essa singular narrativa de Pontalis foi denominada por ele mesmo como "autografia":

Dou tanta importância à diferença entre escrever sobre si mesmo e escrever-se que usei, em alguns textos, o termo autografia. A autografia não é um gênero literário como um diário íntimo, memórias, autobiografia ou autorretrato. A meu ver, é ao mesmo tempo a fonte e a finalidade do ato de escrever (Pontalis, 2010/2012, p. 91).

Órfão de pai muito cedo, encontra em Jean-Paul Sartre, seu professor de filosofia no Liceu, alguém que lhe deixará uma eterna marca: não via nele simplesmente um professor, mas uma personalidade que, pela fascinação e admiração que provocava, se impunha por si só, sem ficar restrito à função docente. Convidado por Sartre, Jean-Bertrand trabalhou como colaborador por muitos anos na Temps Modernes, a mais famosa revista literária francesa no pós-guerra. Nessa experiência intelectual marcante, Pontalis encontrará um singular ambiente em que, no auge do existencialismo francês, estabelecerá grandes amizades e interlocuções, sendo uma das mais inspiradas e marcantes a desenvolvida com Merleau-Ponty, dessa forma descrita pelo próprio J.-B.:

Devo a Merleau-Ponty a essência do que pude pensar e escrever, mas sou incapaz de definir em que consiste essa dívida, de fixar-lhe o montante. Está bom assim, para ele e para mim. Certas transmissões são como transfusão de sangue (Pontalis, 2003/2012, p. 22).

Professor de filosofia, busca a psicanálise por sentir falta de um lugar em que a palavra seja sua, e não prisioneira de um discurso retórico, controlado, próprio do catedrático. Além disso, fica muito tocado quando, em um encontro com uma ex-aluna, esta lhe comenta que achava suas aulas muito interessantes, mas tinha a estranha impressão de que Pontalis parecia não acreditar no que ele próprio dizia. Ingressa, então, na Sociedade Psicanalítica de Paris, coincidentemente bem no momento em que estava havendo uma cisão no seio da instituição. Por sugestão de Daniel Lagache (seu orientador no Centro Nacional de Estudos Científicos CNRS) e do amigo Jean Laplanche, faz uma entrevista de avaliação com Lacan, passando imediatamente a se analisar e a frequentar seus seminários em Sainte-Anne. Com Lacan, tal como fora com Sartre, Pontalis desenvolve uma relação muito especial, um verdadeiro amor, já que para J.-B. eles não eram simplesmente nomes ou textos, e sim objetos de transferência.

Sobre esse período dos seminários (1955-1961), Menezes comenta:

Pontalis nota que um pensamento não suscita apenas interesse, pode despertar uma verdadeira paixão. E foi, sem dúvida, o caso do seminário de Lacan, no qual, como testemunha o autor, foi se criando entre os participantes não só um clima de entusiasmo com o empreendimento inovador de que participavam e que resultaria, de fato, num importante impulso à reflexão psicanalítica contemporânea; apareceu também uma tendência à fascinação por toda palavra ou gesto que emanasse de Lacan, levando ao mimetismo e a uma certa sideração do espírito (1988, p. 11).

Acompanhando Lacan, seu analista, participa como candidato da ruidosa fundação da Sociedade Francesa de Psicanálise sfp, em 1953, a partir do rompimento com a Sociedade Psicanalítica de Paris. Mas, assim como com Sartre em Les Temps Modernes, também com Lacan sentirá Pontalis a necessidade de tomar uma distância, por considerar que ambos abusavam do poder, do poder da linguagem. Diz Pontalis:

Nutrir-se de Lacan, viver na Lacania sem falar lacaniano: tarefa provavelmente impossível à qual, no entanto, me atrelei. Publiquei durante alguns anos relatórios do seminário, escrevi sobre Lacan com palavras que não eram as dele. Com certeza estava errado: em minha precipitação em "traduzi-lo", mostrava minhas reticências em "incorporá-lo" ... Mas vejo bem o que me animava então: a recusa, não de reconhecer minha dívida, que continua imensa, para com a sua pessoa e seu pensamento, mas de ser apanhado por sua língua. Pois eu via pouco a pouco Lacan forjar sua língua por uma sucessão de torções, e em volta de mim os discípulos, meus vizinhos, se convertendo mesmo sem perceber (e isso sobretudo me era odioso) (Pontalis, 1986/1988, p. 124).

Pontalis não se definia como um rebelde, um enfant terrible. Mas também não se sentindo um discípulo, encaminha-se para um rompimento com Lacan e sua Escola, provocando uma nova reviravolta, uma nova mudança. Necessita, com urgência, demarcar esse corte e promover "o seu retorno a Freud": a convite de Lagache, e acompanhado de Jean Laplanche, escreve o famoso Vocabulário da psicanálise, publicado em 1967. Em uma entrevista realizada com muita sensibilidade pela Revista Percurso, Pontalis faz alguns comentários sobre a confecção do Vocabulário:

Após reuniões de debates para elaboração de cada conceito, um de nós redigia e em seguida o outro relia ... [comenta o duro trabalho de pesquisa buscando como cada conceito tinha] surgido na obra freudiana, como ele havia se transformado e como podia ter retornado sobre outro aspecto ... Não se trata simplesmente de definições, e sim de ir além, de problematizar, de buscar o comentário sobre as definições (Pontalis, 2009, p. 124).

É nesse sentido que Pontalis frisa a complexidade de realizar um vocabulário, e da diferença deste em relação a um dicionário, termo, aliás, que quando usado em algumas das mais de vinte traduções que teve o Vocabulário da psicanálise, muito incomodava os autores (Pontalis, 1967/1972). Nesse mesmo movimento, também em coautoria com Laplanche, escreve o trabalho Fantasia originária, fantasias das origens, origens da fantasia (1964/1988). Surge, então, um problema que o Vocabulário não trouxera: a dificuldade de escrever um artigo a dois. Nasce, aqui, a necessidade, tanto em Laplanche como em Pontalis, de cada um seguir com seu trabalho pessoal, seu caminho individual. Talvez esses dois trabalhos tenham funcionado, para Pontalis, como uma espécie de "cerimônia de despedida" em relação a Sartre, a Lacan e, até mesmo, a Laplanche.

Dá continuidade a sua carreira psicanalítica, agora já na Associação Psicanalítica Francesa apf, e como editor das Éditions Gallimard coordena La Nouvelle Revue de Psychanalyse, Les temps de réflexion, a revista literária L'un et l'autre, além da série Novas introduções de S. Freud. Particularmente marcante foi o percurso da La Nouvelle Revue de Psychanalyse. Fundada por Pontalis em 1970, essa publicação foi durante toda sua trajetória (até 1994) uma revista independente, sem qualquer vínculo institucional psicanalítico ou universitário (Janin, 1997). Mantendo sempre um permanente diálogo entre a psicanálise e outras áreas do conhecimento, La Nouvelle Revue de Psychanalyse também se notabiliza por levar para a França os textos de Winnicott e de outros autores do middle group da Sociedade Britânica. Sem a desnecessária discussão sobre a importância de Freud, para Pontalis a leitura de Winnicott foi um acontecimento marcante, não só pela particular abordagem que esse autor tem da psicanálise, mas também por ter propiciado uma "saída teórica" de todo um grupo ainda muito ligado ao lacanismo.

O legado de Pontalis é extenso. Sendo impossível dar conta de sua abrangência em apenas um artigo, proponho um passeio por uma das formas possíveis de perceber o pensamento central de Jean-Bertrand. Imaginemos um eixo em que em uma ponta encontraríamos a imagem, e na outra ponta, a palavra, a escrita. Ou, então, em um extremo, o sonho, no outro, o pensamento. Quando o eixo é percebido na sua totalidade, envolvendo os dois extremos, ele giraria, entraria em movimento. Teríamos, então, a clínica psicanalítica. Portanto, serão abordadas aqui algumas considerações sobre o sonho (imagem), sobre o pensamento (linguagem) - pontas do eixo imaginário - e sobre a clínica psicanalítica, na qual se busca, sempre, o movimento, o pensamento onírico. É nesse sentido que se centrará a maioria dos trechos e dos fragmentos de textos aqui citados.

Pontalis mergulha no sonho, protótipo das formações do inconsciente, palco de anseios contraditórios, de angústias, de nostalgias e de análise. Aqui, porém, Pontalis não se concentra no seu deciframento. Busca o que o sonho representa como experiência, ou mesmo como uma recusa de experiência. Não é somente no seu conteúdo, mas é principalmente pelo uso do sonho que o sujeito se revela. Valoriza mais a capacidade de sonhar do que o sonho propriamente dito: para ele a capacidade de sonhar está muito próxima da capacidade de amar e de criar. E isso vai muito além do relato do sonho. Chega a advertir-nos que, algumas vezes,

... acompanhar os analisandos pela via de uma interpretação do conteúdo de seus sonhos apenas mantém uma relação de rivalidade divertida na acrobacia intelectual. Escutando-os, perguntamo-nos às vezes se eles realmente viveram seus sonhos, ou se já os sonharam como sonhos e na verdade os sonharam para contá-los (Pontalis, 1977/2005, p. 45).

Ao longo de sua obra, J.-B. faz várias observações e comentários sobre quadros, museus, filmes etc, em que deixa muito claro seu desejo de preservar as emoções que as imagens lhe trazem, recusando-se, inclusive, a permitir que as palavras o libertem da imagem. Para ele não há qualquer prioridade da palavra sobre a imagem ou vice-versa. No trabalho com os sonhos, por exemplo: o sonho é feito de imagens, que se transformam em relatos, obviamente deformados em relação ao sonho sonhado. Pontalis se recusa a afirmar qual é o mais verdadeiro: o sonho sonhado ou o relato. O que importa é o vaivém.

Aliás, a hipótese criativa do autor é de que todo sonho, como objeto de análise, faz referência ao corpo materno.

Sonhar é, antes de mais nada, tentar manter a impossível união com a mãe, preservar uma totalidade indivisa, mover-se num espaço anterior ao tempo. É por isso que certos pacientes pedem implicitamente que não nos aproximemos demais dos seus sonhos, que não toquemos e não trituremos o corpo do sonho, que não desarticulemos a "representação coisa" em "representação palavra" (Pontalis, 1977/2005, p. 41).

E vai adiante em sua hipótese quando questiona: "Se o sonho é materno por essência" - algumas vezes vai se referir ao caráter transicional do sonho - "sua interpretação não seria paterna por oposição?" (p. 51).

Pontalis, em uma permanente busca do "pensamento que seja sonhante", demonstra sempre a plena lucidez do que é humano, da lenta velocidade do pensamento de vigília e da atemporalidade do pensamento onírico. Para ele o sonho é um pensamento que não sabe que pensa, ou melhor,

... o sonho pensa, mas ele pensa com toda a velocidade, depressa demais em relação ao que exige o pensamento da vigília. Vem daí a impressão, ao despertar, de que nossos sonhos são incoerentes, absurdos, impressão que acompanha a de que, ao esquecê-los, perdemos alguma coisa infinitamente preciosa: a intensidade das percepções, próximas das visões alucinadas que lhes são características, a violência das emoções que nos provocam, que vão do encantamento ao terror, e, sobretudo, seu poder de relacionar instantaneamente elementos tomados de cenas imaginadas ou vividas em todas as épocas de nossa vida (Pontalis, 2003/2012, p. 78).

O amor dos começos é um tema caro a J.-B. Não me refiro somente ao livro autobiográfico O amor dos começos (1986/1988), mas também ao começo mítico, originário, pré-histórico da palavra: para Pontalis, o balbuciar do bebê é mais forte do que nossa fala, ainda que existam no balbuciar infantil muito mais sons do que na linguagem que seleciona fonemas. Existe no balbuciamento um número maior de sons emitidos, um fluxo sonoro, talvez uma música, que se reduz posteriormente, seja porque a gente não se lembra mais, seja porque não são articuladas sílabas, frases... Mas quando o ser humano não tinha acesso à linguagem articulada, tinha acesso a quê?

Talvez a tudo que o acesso à linguagem nos faça correr o risco de perder, ou seja, o sensível, o não falante. Tudo aquilo a que as artes têm acesso, por exemplo, a música que não é propriamente uma linguagem falada, a pintura que é muda e no entanto fala, mas não numa linguagem articulada. Existe toda uma dimensão que a aquisição da linguagem nos obriga a perder, ao mesmo tempo que tem como missão tentar reencontrar. A linguagem é o luto da coisa em si e ao mesmo tempo leva embora esse luto. Foi isso que chamei de a melancolia da linguagem (Pontalis, 2009, p. 129).

J.-B. nos encanta em Perder de vista (1988/1991), ao observar o tema:

Porque a linguagem não é captura: não se apodera de nada da substância do real, nem sequer da mais ínfima porção. (A pintura, sim, e também a música permite conversar com o além.) Mas ela tampouco é renúncia; não admite confessar que isto não é para mim. Faz parte de sua própria natureza ir em direção ao que não é ela. Já que nasceu da perda e nada tem que lhe pertença, seu apetite é enorme! Ela pode e deve, para viver, incorporar tudo, inclusive o corpo e mais do que ele: seduz melhor do que o sexo, comove mais profundamente que as lágrimas, convence com mais vigor do que um murro, fere, entorpece, aturde. tem todos os poderes. Na própria operação de linguagem inscreve-se a impossibilidade de satisfazer sua exigência. A não realização do desejo está nela, mas o desejo não tem limites. Deslocando-se justamente para ali onde falha, a linguagem realiza seu fracasso. É ao mesmo tempo um luto que se faz e um luto que não termina. Uma linguagem que ignorasse a perda que lhe dá vida e que a anima, uma linguagem convencida de enunciar a verdade, a rigor, só remeteria a ela mesma (pp. 144-145).

Pontalis não perde a viagem, isto é, sublinha a psicanálise como uma grande travessia. Muitas vezes longa e perigosa, travessia pelas aparências, pelas fronteiras, pelo tempo. Travessia pelos lugares, imagens e acontecimentos. Travessia pelos sonhos e transferências. Travessia em que se soltam as amarras das palavras, liberando-as das funções estritas de expressar, informar e comunicar. E se perguntarmos, afinal de contas, travessia para onde? Pontalis, que poderia estar acompanhado pelo nosso poeta Ferreira Goulart, não vacilaria em responder: para o lugar em que sejamos capazes de inventar-nos. J.-B. nos fala a partir das janelas (Fenêtres; 2000/2005). Da janela que avista da sua poltrona do consultório, de sua casa de veraneio, das janelas dos trens, das moradas e das janelas do divã. Das suas janelas e das janelas de gente como Merleau-Ponty, Winnicott, Proust, Freud, Conrad, Breton e tantos outros. Pontalis abre para si e para nós algumas janelas, "fazendo minha a prescrição dos antigos médicos: 'Você deveria mudar de ares, lhe fará bem'" (Pontalis, 2000/2005, p. 11)1. E certamente é a partir desse ar fresco que J.-B. captura os inspirados títulos dos capítulos de Fenêtres [Janelas]: "Roubaram meu conceito!", "O que em um momento se impõe a mim", "Que pena", "Lágrimas, pranto", "Encarnação" etc. Em um capítulo intitulado "Como sair de si próprio?", por exemplo, J.-B., a partir do achado em uma antiga revista de um pequeno bilhete sobre um paciente, escrito por ele mesmo, passa a discorrer sobre as formas que alguém tem de ir-se de si mesmo: sonhando, escrevendo ou pela psicanálise. Fenêtres é, para J.-B., um novo léxico, um léxico de uso particular, em que discorre o que algumas palavras, ideias, imagens, leituras e amigos significam pessoalmente para ele, convidando-nos assim a que façamos o mesmo com as nossas próprias palavras, ideias, imagens, leituras etc.

Essas janelas levaram-no a sair cada vez mais do formato dito científico de suas comunicações. Depois de Fenêtres, Pontalis nos mostra seus cadernos privados. Um Pontalis em estado nascente. Espaço potencial? Cuidadoso, sabe que, quanto mais a linguagem se pretende soberana, mais ela se empobrece. Crônicas, observações não datadas, fragmentos literários recolhidos por aí, à margem do tempo, À margem dos dias (2003/2012) e À margem das noites (2010/2012). Das beiradas, mergulha nas correntezas da vida. Ao ouvir Pontalis falando a respeito dos silêncios, lembro-me de Manoel de Barros. Dentro de nós a imaginação é soberana. Nada é impossível. Nem mesmo um encontro em Campo Grande, em que Manoel de Barros ouviria atentamente Pontalis, de uma janela, nos contar (cantar?):

O silêncio tem duas caras. Há o silêncio como o que produz a neve, que o angustia, é um silêncio que absorve todos os ruídos da vida. E existe outro de que ele gosta, aquele sem palavras, que lhe permite ouvir o canto dos pássaros, o farfalhar da folhagem. Então ele está ao abrigo de tudo que o ameaça, de dentro e de fora. Até as coisas inertes, até as pedras respiram (Pontalis, 2003/2012, p. 28).

Inspirado em Heráclito, J.-B. parece suspirar:

Naquela manhã, a inércia também estava no céu. Não é o cinzento do céu que suscita a melancolia, mas sua imobilidade. Fica muito melhor quando as nuvens se movem, quando uma brisa leve faz farfalhar a folhagem. Tenho sempre presente, com insistência, a dupla mobilidade-imo-bilidade, vida-morte (Pontalis, 2003/2012, p. 29).

Enquanto em O amor dos começos (1986/1988) Pontalis nos traz a psicanálise através dos relatos extremamente cativantes dos seus próprios começos, sua infância, escola, Sartre, Lacan, Merleau-Ponty etc, em Perder de vista (1988/1991) encontramos vários estudos psicanalíticos sobre as relações do sujeito com o objeto. Faz, por exemplo, uma instigante e complexa abordagem sobre o difícil tema da "Reação Terapêutica Negativa", ou seja, a expressão pelo paciente de uma maciça resistência global ao processo de mudança, resultando na impossibilidade de tratamento. Entende o autor que o que constitui a mola-mestra da RTN2 é uma intensa necessidade de modificar, de curar a mãe enlouquecida que o paciente traz no interior de si mesmo. Por um lado, a percepção do paciente é que se faz necessário proteger essa mãe enlouquecida internalizada (mantendo-a, inclusive, assim); por outro, essa mãe enlouquecida, quando é percebida projetivamente, precisa ser modificada. Nesse caso, em que a percepção se dá de forma projetiva, é a realidade, ou o representante da realidade, que diz o insensato, é ela que assume a forma de insistência. "O ego, então, passa a não ser mais do que uma reação a essa realidade, uma reação negativa a uma suposta positividade plena, imagem do Mal. O demoníaco fica do lado de fora, potência absoluta" (Pontalis, 1988/1991, p. 68). O objetivo é tanto não perder o objeto como não sair perdedor. Daí a necessidade imperiosa de fazer com que o outro se modifique, ou melhor, de fazer com que o outro se dobre. "Na linha do horizonte esse outro é sempre a mãe inflexível em seu não: você nunca foi e nunca será a causa do meu desejo" (p. 71). A RTN seria um aceitar a carência e ao mesmo tempo uma resistência de um espaço interno frágil em termos de formas e limites; seria um apossar-se do não materno na esperança de fazê-la dobrar-se. Ou seja, já que não se pode mudar de mãe, mude-se a mãe (louca). Internalizada e projetada, é necessário modificá-la em sua realidade, em que o ódio esconde o amor desvairado: "tenho que mudá-la, curá-la, eu sozinho, para que ela exista só para mim" (p. 126).

Outro ponto muito interessante desse livro é quando Pontalis chama a atenção para o estudo da crença, considerando errônea a interpretação do ato de crer como relacionado ao desejo de uma verdade. Propõe que a função primária de crer seja metaforizar o real, a fim de que ele não seja o verdadeiro.

O que se pode "censurar" naquele que não crê em nada não é a sua falta de entusiasmo, de revolta, ou de fé, mas é o identificar o real com a morte, mortificá-lo... Quando essa confiança tropeça, quando o aparelho psíquico de um indivíduo ou de um grupo renuncia, abatido, a realizar sua tarefa de representação e pensamento, ele corre o risco de se converter em aparelho de crença, num sistema que venha obturar a falha, onde quer que ela se situe (Pontalis, 1988/1991, p. 85).

O traço mais evidente do aparelho de crença é que ele vem substituir o trabalho do pensamento. O pensamento questiona, dá a si mesmo respostas limitadas e provisórias, conclamando a contradição. A crença, por outro lado, é inabalável, indissolúvel e infalível, mas, sabendo-se totalmente vulnerável, não se questiona. Facilmente inquisidora diante dos outros, pretende colocar-se, por sua vez, fora de qualquer influência. O aparelho de crença é uma resposta para tudo, que antecipa todas as questões. Nele a pergunta não tem que ser formulada, essa é a regra do seu funcionamento.

Se em A força de atração (1990/1991) Pontalis segue na trajetória dos sonhos como estado, a partir dos romances, das transferências e das palavras, temos agora um Pontalis fascinado pelo tempo. Não pelo tempo irreversível, que tal como o curso de um rio ou a trajetória de uma flecha sempre tem uma direção. Não esse nosso tempo linear e evolutivo. Mas sim o tempo dos sonhos, do pensamento onírico. Em Este tempo que não passa (1997/2005), os tempos se mesclam, correm em todas as direções, muitas vezes de forma simultânea ou mesmo em diferentes ritmos. Nesse tempo, as presenças e ausências não se antagonizam. Do tempo Pontalis deriva para a repetição que, inclusive, ignora o tempo. Aqui, como em muitos momentos da sua obra, nota-se uma familiaridade com Winnicott, em que a repetição, mesmo que insistente, não se resume a uma simples expressão da pulsão de morte. Diz Pontalis:

O que se repete - não falo do que se rumina, mas do que insiste - é aquilo que não teve lugar, que não encontrou seu lugar e que, por não ter conseguido advir, não existiu como acontecimento psíquico. Repetimos como nos ensaios de teatro, mas na ausência e vazio de todo texto. Repetimos o que está fora do texto, o incrustado, o não impresso (Pontalis, 1997/2005, p. 19).

Freudiano e corajoso, pondera:

O que me incomoda nos melhores trabalhos de psicanálise que li nos últimos tempos não é tanto que eles se refiram a Freud em cada parágrafo, em uma leitura sempre mais atenta às palavras de sua língua, uma leitura iniciada por Lacan, seguida, prolongada por Laplanche, Granoff e tantos outros. Não, o que me incomoda é a confissão implícita de que um psicanalista só pode pensar a partir do que já foi pensado (por Freud) ... O que faz eventualmente pensar é o não pensado com o qual ele se confronta em toda análise, desde que ele não esteja à caça do significado e não queira lhe dar um sentido a qualquer preço. Teriam os analistas tanto medo de permanecer no sem forma? (Pontalis, 2003/2012, p. 65).

Jean-Bertrand Pontalis não perde nunca de vista que a psicanálise é essencialmente um encontro humano, vital e aberto. Poderíamos inclusive dizer que ele restabelece certo caráter romântico a esse momento. Afasta-se de qualquer possibilidade de um encontro burocrático ou estéril em nome de uma seriedade ou mesmo da ciência. Suas palavras resgatam a essência do estado de espírito e dos valores da psicanálise:

Análise não é exatamente dizer coisas que nunca dissemos a ninguém, ainda que isso aconteça, desvelarmos segredos de nossa existência, confessarmos coisas que fizemos. Análise é uma experiência de intimidade. É o que sabem muito bem aqueles que conheceram esse tipo de relação nas histórias de amor, é o que sabem muito bem os que estão em torno e que se sentem, com frequência, enciumados e excluídos dessa relação. Como se existisse ali uma espécie de intimidade que se cria entre dois seres humanos e que não tem equivalente em outro lugar. Está para além do conteúdo do que se possa dizer, é uma troca. No fim das contas isso é a transferência, uma relação entre duas intimidades, talvez dois desconhecidos, não desconhecidos no sentido de não sabermos nada sobre nosso analista, isso eu já disse cem vezes e repetirei cinco milhões, é essa relação entre dois desconhecidos que permitirá o acesso ao desconhecido em si e, algumas vezes, para os dois participantes. Uma análise verdadeiramente frutífera, a meu ver, modifica também o analista, lhe faz ter acesso a coisas nele, recalcadas, afastadas ou desconhecidas. Isso se mexe, isso anda, essa alteridade atinge os dois lados. Existe sempre outro em si. Sempre (Pontalis, 2009, p. 128).

Pontalis escreve para contar aquilo que sabe e aquilo que ignora. Sem nunca tê-lo conhecido pessoalmente, facilmente me pego em devaneios de que estou em Paris acompanhado de Jean-Bertrand em um café na Saint-Germain-des-Prés, ouvindo alguns comentários esparsos seus sobre a clínica (e a vida): "Ela está convencida de que eu a compreendo. Mas não, eu não a compreendo, e até gosto que ela me seja incompreensível. Mas tente fazê-la compreender isso!". Ou então:

Que uso faz meu paciente daquilo que lhe digo? O uso que melhor lhe convier, o conforto em seu amor ou seu ódio por si mesmo, a confirmação de que ele tem uma boa história, tal como ele me relata. E o que de fato lhe digo, o que pretendo lhe interpretar, é muitas vezes aquilo que me consola, tranquiliza-me ou o que eu gostaria que me dissessem; tenho, então, a sensação de finalmente ser compreendido (Pontalis, 2003/2012 pp. 66-67).

Enfim, Pontalis não só nos fala, mas nos contagia com a sua visão poética da psicanálise. Sua leitura provoca uma alteração de ritmo e sensibilidade, uma evocação do poético presente em cada um de nós: ainda que eventualmente adormecido, facilmente nos coloca em uma frequência onírica de pensamento. Impossível não se deixar impregnar, principalmente na clínica cotidiana, em que se percebem as inspirações de Pontalis liberando a poesia para que flua mais livremente não só dentro de nós, mas norteando cada encontro com o outro. Assim, voltando à questão inicial do artigo, sobre o dilema de onde colocar os livros de Pontalis na biblioteca, se junto aos livros de psicanálise ou junto aos livros de literatura, sugiro que sejam colocados num espaço especial denominado "Pontalis".

 

Referências

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Pontalis, J.-B. (2012). À margem dos dias (L. R. Aratangy, trad.). São Paulo: Primavera. (Trabalho original publicado em 2003. Título original: En marge des jours).         [ Links ]

Pontalis, J.-B. (2012). À margem das noites (L. R. Aratangy, trad.). São Paulo: Primavera. (Trabalho original publicado em 2010. Título original: En marge des nuits).         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Celso Halperin
Rua General Oscar Miranda, 160/704
90440-160 Porto Alegre, RS
Tel.: (51) 9954-7788
halperin@uol.com.br

Recebido em 16.8.2013
Aceito em 26.8.2013

 

 

1 Tradução minha, assim como nas demais citações de obras consultadas em espanhol.
2 Reação Terapêutica Negativa.

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