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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.3 São Paulo July/Sept. 2013

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: LEGADOS

 

Um homem desapareceu

 

A man disappeared

 

Un hombre desapareció

 

 

François GantheretI; Tradução Claudia Berliner

IPsicanalista, doutor em Letras, professor emérito de psicopatologia na Universidade Denis Diderot – Paris VII, foi presidente da Association Psychanalytique de France (APF)

Correspondência

 

 


RESUMO

J.-B. Pontalis, que nos deixou em 15 de janeiro de 2013, aos 89 anos, foi um dos mais importantes psicanalistas franceses. Foi também editor e escritor. Analisado por Lacan, de quem em seguida se separou, foi amigo próximo de Sartre, Merleau-Ponty, J.-P. Vernant, Starobinski e muitos outros. Este artigo trata mais particularmente de seu relacionamento com Sartre e a revista Les Temps Modernes, e através desse episódio, de sua concepção livre e generosa da psicanálise.

Palavras-chave: J.-B. Pontalis; Sartre; Les Temps Modernes; psicanálise francesa; linguagem.


ABSTRACT

J.-B. Pontalis, who left us on January 15th 2013, at the age of 89, was one of the most important French psychoanalysts. He was also an editor and writer. Analyzed by Lacan, from whom he soon after broke apart, he was also a close friend of Sartre, Merleau-Ponty, J.-P. Vernant, Starobinski, and many others. This article deals particularly with his relationship with Sartre and the magazine Les Temps Modernes, and, through this episode, with his free and generous conception of psychoanalysis.

Keywords: J.-B. Pontalis; Sartre; Les Temps Modernes; French psychoanalysis; language.


Resumen

J.-B. Pontalis, que nos dejó el 15 de enero de 2013, a los 89 años, fue uno de los psicoanalistas franceses más importantes. Fue también editor y escritor. Analizado por Lacan, de quien enseguida se separó, fue amigo próximo de Sartre, Merleau-Ponty, J.-P. Vernant, Starobinski y muchos otros. Este artículo trata particularmente de su relación con Sartre y la revista Les Temps Modernes, y, a través de este episodio, de su concepción libre y generosa del psicoanálisis.

Palabras clave: J.-B. Pontalis; Sartre; Les Temps Modernes; psicoanálisis francés; lenguaje.


 

 

Un homme disparaît (1996) é o título de um belo livro de Jean-Bertrand Pontalis, "J.-B." para todos os seus próximos, ele mesmo desaparecido em 15 de janeiro de 2013, dia de seu octogésimo nono aniversário. Tivera essa premonição, seja qual for o sentido ou interpretação que se dê a essa palavra: "Lembro-me de ter fabricado um segredo: a morte me surpreenderia no dia de meu aniversário. Quando? Não sabia, mas seria naquele dia". Escreveu essas linhas três anos atrás, em En marge des nuits (2010); nada naquele momento permitia prever seu fim e a "fantasia" que elas relatam era bem mais antiga. J.-B. tinha O amor pelos começos (L'amour des commencements [1986] é o título do mais autobiográfico de seus livros). Que o aniversário de seu aparecimento e de seu desaparecimento coincidam não é algo fortuito, pois é um par constitutivo da inquietação fecunda de seu pensamento. Do personagem central desse livro, ele dizia: "Quero avançar na direção dele, que chamo Julien Beaune [J.B.!] ... aquele que vejo no meu espelho quando o começo do dia se confunde com seu fim". Aparecimento-desaparecimento: "A união frágil do eterno e do efêmero".

Entre os dois, em entre-dois, transcorreu a vida de J.-B. Pontalis, rica em atividades de escritor, de editor, de psicanalista - mas ele se recusava a ser identificado com uma função e afirmava a profunda unidade delas nele mesmo; rica também, e sobretudo, em sua generosa amizade, que recebia em retorno de todos e sem reservas; rica em amores, filhos e netos, ante os quais ficava maravilhado.

É de um começo e de um fim que trataremos inicialmente aqui: a participação de J.-B. nos Temps Modernes. O que ali ocorreu foi um primeiro ato fundador, a epígrafe significativa de toda uma vida em seus aspectos inseparáveis (sobretudo nele), afetivos e intelectuais.

A história começa aos... dezessete anos! Sartre, de quem fora aluno de filosofia no Lycée Pasteur, em 1941, se afeiçoara a ele. Parece que a amizade de Sartre se manifestava essencialmente pela escolha para o papel de ouvinte predileto de uma fala tão ininterrupta, copiosa e peremptória quanto o era o pensamento que nela mais se forjava do que se exprimia, pronunciada por uma voz seca, cortante e metálica que era sua perfeita encarnação. J.-B. era um excelente imitador e sabia fazê-la ouvir novamente. Nessa paródia maliciosa, porém - e, aliás, como sempre nele -, nenhuma animosidade; o que se ouvia era, ao contrário, o eco da extrema admiração que tinha por aquele que, por longos anos, literalmente venerou. J.-B. execrava a posição, para ele sempre usurpada, de Mestre e evitou cuidadosamente exercê-la durante toda a sua vida. Tratava-se, contudo, de algo bem diferente, muito além da mestria que encontra sua caução na instituição. "Eu não via em Sartre um professor", escreve ele em Lamour des commencements, "eu não o limitava a uma função, ele só remetia a si. Todas as palavras - respeito, admiração, fascinação - seriam aqui impróprias. Contudo, realmente fiz dele algo como meu deus" - sem maiúscula.

Isso certamente não desagradava a Sartre. Bem depois da aula de filosofia, J.-B. o encontrava regularmente no Café de Flore para longas conversas, em que Sartre falava quase sem parar. E foi ali que, num dia de 1944, ele lhe contou que pensava em criar uma revista. Vindo dele, tudo era possível, e J.-B., que sonhava com teatro e espetáculos, não hesitou em entender por isso um "teatro de revista" do tipo Casino de Paris. E aproveitar imediatamente a oportunidade: já se via de boy, com bengala e cartola. O fato de se tratar dos Temps Modernes, que Sartre, com efeito, viria a criar no ano seguinte com Simone de Beauvoir, foi, por um instante, uma pequena decepção. Mas nem tão amarga assim: J.-B. gostava de contar frequentemente essa anedota.

Em 1945, ele só tinha 21 anos; a convite de Sartre, colabora com a revista por meio de notas críticas sobre livros ou filmes até 1948, afastando-se em seguida por alguns anos para ensinar filosofia em Alexandria, depois em Nice e, mais tarde, em Orléans. O regresso a Paris - e aos Temps Modernes - se dá em 1953, ano em que entra no CNRS [Centre National de la Recherche Scientifique] graças, em particular, ao apoio de Merleau-Ponty. Este foi, em primeiro lugar, um amigo, mas também a terceira grande figura tutelar de J.-B., além de Sartre e Lacan, embora de modo totalmente diferente, ao que retornarei mais adiante.

J.-B. está, portanto, de volta, mas ocorre então um fato capital, determinante para a sequência dos acontecimentos: começa uma análise com Lacan. Sua principal motivação (antes que outras mais secretas emergissem na análise) é, dirá ele, um mal-estar difuso na sua relação com a filosofia, com os conceitos e, mais ainda, com a linguagem. Destacava-se em seu ensino de filosofia, mas sentia certo mal-estar nesse exercício: o de não aderir a isso fundamentalmente. Havia o amor pela linguagem, o que seus escritos demonstravam suficientemente, mas também uma profunda desconfiança. "No coração dessa reticência", escreveu ele em l'amour des commencements, "encontro a recusa de identificar uma linguagem à verdade". Embora eu o tenha escutado contestar a formulação provocativa de Barthes ("a língua é fascista"), não está muito longe dela: a linguagem é totalitária porque oculta uma parte obscura que, para ele, será sempre o país sonhado embora nunca verdadeiramente alcançado. Sonhado, primeiro, em sentido literal: o sonho será não o objeto, mas o lugar, o modo de ser do pensamento que fascinará J.-B. Seu ideal? Um "pensamento sonhante"; ser um "dormidor acordado" [dormeur éveillé], título que dará a uma coletânea de reflexões muito íntimas, reunidas por incitação de Colette Fellous (Pontalis, 2004). Um sentimento de impostura se insinua no uso da palavra: essa distância irredutível de um Eu ouvinte/espectador de si. É compreensível que o ideal da fala em análise (eu não falo de mim: Eu falo/fala) e, mais ainda, a insistência lacaniana num eu sempre fora de cena tenham-no atraído.

Quais as raízes infantis dessa desconfiança da linguagem? J.-B. contava ter sido uma criança silenciosa, contemplativa e apagada, ao lado de um irmão mais velho volúvel, ativo e brilhante, filho preferido da mãe, enquanto ele se sentia mais filho do pai. Um pai brilhante e ligeiro, brincalhão e sedutor, herói da Primeira Guerra Mundial, herói de seu filho e que morreu de peritonite quando este tinha nove anos. Esse desaparecimento marcará toda a vida de J.-B. Transformar a falta em ausência, tal é a função do "trabalho de luto", escreverá. A falta é uma ferida, que desfalca o ser e que se procura preencher para negá-la. A ausência é lembrança, reconhece a obra do tempo, recupera um vínculo com o que já não existe no amor pelo que foi.

Permitam-me um inciso pessoal: ele dedicou a mim Ce temps qui ne passe pas, em 1997, "em reconhecimento de uma amizade que ignora o tempo que passa", acrescentando à mão que eram "as únicas linhas deste livro que não me levaram a fazer a pergunta aflitiva: É verdade? É realmente verdade?". Isso, infelizmente, só é verdade entre os vivos, que experimentam a força, que acreditam invencível, do laço que os une. Hoje, já não posso ignorar o tempo que passa, a morte do amigo fundando cruelmente sua irreversibilidade; aí está sua vitória, inelutável. Este artigo é um trechinho do caminho que leva - assim espero, sem saber se ele será alguma vez realmente percorrido - da falta à ausência.

Lacan era um temível caçador de cabeças para seu próprio projeto: o jovem e brilhante agrégé de filosofia é uma presa que ele não pretende deixar escapar. "Foi ele que me escolheu, por iniciativa própria", dirá J.-B. Voltarei a essa relação de J.-B. com Lacan, num certo sentido parecida com a que o ligou a Sartre (dizia ter "transferido" com um e depois com o outro), em outros, muito diferente, até mesmo inversa. Mas retornemos primeiro a Sartre e aos Temps Modernes.

"Um dia será preciso escrever a história de uma relação ambígua, feita de uma atração e de uma reticência igualmente profundas, que Sartre mantém faz 30 anos com a psicanálise", escreverá J.-B. retrospectivamente, por ocasião da ruptura. Mas esta só ocorrerá em 1969; de 1954 a 1969, J.-B. trabalha ativamente na equipe dos Temps Modernes, entra oficialmente para o Comitê de Redação em 1962, em que é, de certo modo, o representante da psicanálise.

Esses anos 50 e 60 são de extraordinária atividade e criatividade para J.-B. Publica, nos Temps Modernes, Anzieu, Clavreul, Octave Mannoni, Widlocher e Dolto; ele mesmo escreve inúmeros artigos, dos quais os mais importantes serão retomados em Après Freud, em 1965; um deles, em colaboração com Jean Laplanche, em 1964, "Fantasia originária, fantasias das origens, origem da fantasia", será de importância capital na reflexão psicanalítica. De 1956 a 1960, ele se responsabiliza, no Bulletin de Psychologie, pelo resumo dos seminários de Lacan. Por sugestão de Daniel Lagache, ele e seu amigo e cúmplice Laplanche (divergirão mais tarde) iniciam um trabalho de grande fôlego, que durará quase dez anos, de 1957 a 1967, e culminará no Vocabulário da Psicanálise, um inventário abrangente, histórico e crítico do thesaurus freudiano e de sua evolução, que despertará um interesse e uma repercussão mundiais. Acrescentemos a essa profusa atividade científica um engajamento como cidadão, mais ético que político (ele era homem das margens e dos confins, inclusive em política), que fará dele um dos signatários do Manifesto dos 121, publicado em setembro de 1960 na revista Vérité-Liberté, no qual intelectuais e artistas tomam posição firme a favor da recusa de participar da guerra da Argélia, a favor do apoio aos clandestinos que colaboram com o Front National de Libération e contra todas as sequelas da colonização - assinatura que lhe valerá uma condenação do CNRS e que quase lhe custa o cargo!

J.-B. tornou-se, portanto, nos Temps Modernes, o representante muito ativo da psicanálise. Sartre não pode ignorar a importância da psicanálise na reflexão filosófica, sociológica e antropológica da época, mas não parece lhe dedicar muito interesse. Até 1958, ele a recusou, tão peremptória quanto sumariamente: a "má-fé" promovida a origem e centro de toda alienação lhe parece suficiente para expurgar a noção de inconsciente. Em 1958, porém, ocorre um fato que mudará profundamente a distribuição das cartas: John Huston meteu na cabeça o desejo de realizar um filme sobre Freud: mais precisamente, sobre o Freud jovem, "aventureiro", descobridor heroico que se inscreve na tradição hollywoodiana da homenagem aos pioneiros, e é a Sartre que ele se dirige para escrever o roteiro. A motivação primeira deste, que aceita, é, ao que tudo indica, alimentícia: é muito bem pago e ele precisa de dinheiro. Mas, como sempre acontece, quando se envolve num projeto, ele se apaixona, se apropria do tema, se agarra com ele, lê os Estudos sobre a histeria, A interpretação dos sonhos, mas sobretudo, mais atentamente, o primeiro volume de Ernest Jones (Vida e obra de Sigmund Freud), que trata dos anos de juventude, e a correspondência entre Freud e Fliess (O nascimento da psicanálise). Descobre um homem bem mais complexo do que imaginava, atormentado, contraditório e que assume suas contradições, "pensando contra si mesmo", como sublinhará J.-B., retomando a fórmula sartriana. Sartre escreve uma sinopse, que é aceita; depois um roteiro de sete horas, ao qual Huston propõe cortes necessários. Sartre retoma o texto e envia uma segunda versão... mais longa! J.-B. publicará, em 1984, Le scénario Freud, em suas duas versões e com um prefácio em que evoca essas peripécias.

Huston e Sartre se desentendem, e nesse desentendimento, Sartre se torna defacto um defensor da riqueza e da complexidade de Freud - a ponto de chegar ao cúmulo, vindo dele, de acusar Huston de "não crer no inconsciente"! Depois Hollywood faz como bem entende, talha amplamente o texto de Sartre, confia o papel de Freud a Montgomery Clift e lança o filme com um título aliciador: Freud, The Secret Passion [Freud, a paixão secreta] (em francês, pior: Freud, désirs inavoués [Freud, desejos inconfessos]). Nesse ínterim, Sartre se cansou e se desinteressou, não aceitando que seu nome aparecesse nos créditos.

Dessa confrontação com a psicanálise, porém, ele não sai incólume. O pouco interesse do início deu lugar a um conflito de ideias no pensador e, certamente sem que percebesse, a um conflito interno ao homem Sartre. Sua ambivalência em relação à psicanálise, que J.-B. destacará mais tarde, é flagrante; ela também é banal. Os psicanalistas conhecem bem essas atitudes passionais, comuns em intelectuais que sentem (não sem razão) o perigo que representa para sua arquitetura defensiva uma disciplina que os fascina, os atrai até, e tentam resolver esse conflito interno na cena externa das controvérsias.

Embora banal, quando isso se dá em alguém da dimensão e da pugnacidade de Sartre não é menos rude. Vimos isso em ação em sua querela com Huston; o mesmo ocorre, embora mais sutilmente, no Scénario Freud. Mas, sobretudo, quem Sartre tem à mão é J.-B. Pontalis. Talvez veja com desagrado o deslocamento da "transferência" (é J.-B. quem o diz), mediante o qual este, passando-a para Lacan, se separa dele? Mas é uma suposição de minha parte. Em contrapartida, que a ambivalência de Sartre em relação à psicanálise se expressa com e sobre J.-B. é evidente.

Sartre chegará a lhe pedir, numa conversa rápida, para tomá-lo em análise, por curiosidade intelectual, diz ele, para melhor conhecer o que, por outro lado, repudia. Sartre só compreenderá pela metade os motivos da evidente recusa de J.-B. - convívio prévio e persistente, relações de trabalho e de amizade, iniciar uma análise por "curiosidade intelectual" não tem muito bom prognóstico -, mas não parece ter ficado tão decepcionado. E surge uma oportunidade que ele não hesita em aproveitar. J.-B. dizia saber que, no Comitê de Redação, onde o assunto foi decidido na sua ausência, Sartre teria dito: "O Pontalis vai ficar chateado". De que se trata?

É o chamado episódio do "homem do gravador". É bem conhecido e vou resumi-lo brevemente. Em 1969, A., um jovem teatral de 28 anos decide, após 14 anos de análise, no que parece ser um surto delirante, impor a seu analista a gravação de uma sessão de "explicação". O gravador que ele trouxe só é ligado depois de alguns minutos e, portanto, não se conhece o começo da cena. O analista se recusa, o enfrentamento é violento, essencialmente verbal, mas também no limite da passagem ao ato físico, e termina com o analista chamando a mulher para ajudá-lo e com o pedido de intervenção da polícia.

A. faz chegar ao Comitê de Redação dos Temps Modernes, do qual conhece um dos membros, essa gravação, que dura 24 minutos e que ele intitula ironicamente "Diálogo psicanalítico". De imediato, Sartre fica muito interessado e quer publicá-lo. Pontalis e Pingaud se opõem firmemente. Um "compromisso" conclui a controvérsia, que é muito intensa: os Temps Modernes de abril de 1969, n. 274, publicarão a transcrição da gravação, num sanduíche entre uma apresentação de Sartre e as respostas de Pontalis e Pingaud (Sartre retomará o conteúdo integral desses textos em Situations IX, em 1972).

A ruptura está em andamento; só se tornará efetiva em 1970, por causa do artigo "Destruir a Universidade" de André Gorz que, responsável pela publicação desde 1966, o impõe por conta própria. Pontalis e Pingaud não podem aceitar o que, na forma de um editorial, apresenta-se como uma linha política da revista - globalmente maoísta libertária - e se demitem. Mas é certo que a controvérsia a respeito do "Homem do gravador" é, para J.-B. pelo menos, tão determinante quanto, se não mais, para sua partida.

"A explicação" de Sartre, prévia ao texto da gravação, começa com uma avalanche de denegações. Ele afirma ser um "simpatizante", crítico, da psicanálise, e de jeito nenhum um "falso amigo"; não tem nem vontade nem, aliás, meios, afirma ele, de ridicularizá-la; é uma disciplina que visa ao rigor e cuja finalidade é curar e, quanto a isso, perfeitamente respeitável. Como sempre, o "retorno do recalcado" emerge na afirmação que visa mascará-lo: "A nosso ver", escreve Sartre, "a psicanálise não pode ser questionada por um caso isolado, assim como o 'crime do padre Uruffe' não põe a Igreja em perigo aos olhos de um crente". Difícil ser mais claro quanto à necessidade de ser crente para não ver que esse texto questiona a psicanálise, essa "disciplina que visa ao rigor"!

Tomadas essas precauções ambíguas, Sartre chega a seu principal argumento: esse texto, esse "diálogo", o fascinou, pois "ilumina, com uma evidência deslumbrante, a irrupção do sujeito no consultório analítico, ou melhor, a reversão da relação unívoca que liga o sujeito ao objeto". Para Sartre, o sujeito é entendido no sentido que Marx fala do proletariado: como sujeito da História. O que marca para ele o dispositivo analítico, e que esse texto revela exemplarmente, é "a impossível reciprocidade" que, desde o começo, estruturalmente, caracteriza o dispositivo analítico. Alguns anos antes, em 1960, ele publicou o primeiro volume da Crítica da razão dialética, cujo momento central (em sentido tanto cinético quanto histórico) é a reversão da passividade a que o poder submete aqueles que ele sujeitou, no movimento - à imagem exemplar da Revolução de 1789 - em que, tomando os instrumentos da coerção, eles negam o que os negava. Para ele, é exatamente isso que ocorre no episódio do homem do gravador. Aquele que estava coagido a voltar as costas para o opressor o enfrenta. Sua fala era "objetivada"; agora é ele que, objetivando -com a ajuda da arma do gravador - a fala do analista, liberta-se dessa opressão.

A resposta de J.-B. (assim como a de Pingaud) é lapidar. "Espero que se entenda que não desejo comentar o 'documento' que Sartre assumiu a responsabilidade de publicar". Por quê? Simplesmente porque esse episódio é um fato que só ganha sentido no interior do drama trans-ferencial que então se desenrola. É confessar desconhecer tudo sobre psicanálise tê-lo por exemplar de uma libertação à qual, ao contrário, ele se opõe: pois, embora se possa concordar com a reversão libertadora que importa para Sartre, é preciso entender que a análise visa à sua realização na cena da transferência, pois nela, e somente nela, viva e atual - e não apenas evocada -, pode haver, nas palavras tão fortes de Freud, um "assassinato". Assassinar o analista é se esquivar do assassinato do que ele representa na transferência - e isto convém perfeitamente a Sartre!

Mais do que esse desconhecimento, o que J.-B. não pode aceitar (assim como, em seguida, tampouco o aceitará de Lacan, por motivos, no fundo, idênticos) é o que ele sente como um "abuso de poder": na realidade dos fatos, é claro, mas mais profundamente na coerção de uma onipotência da linguagem. Há uma parte obscura, uns no man's lands, alguns entre-dois nos quais, para J.-B., é vital poder vaguear e sonhar. Com a arma da língua, que ambos manejam de forma diferente, mas de modo igualmente totalitário, tanto Sartre quanto Lacan impedem o acesso a ela.

A resposta de Pingaud, mesmo ele não sendo analista, também afirma com vigor a incompreensão de Sartre no tocante ao processo analítico. É precisamente essa não reciprocidade do dispositivo analítico que permite a dramatização e, idealmente, a resolução dessa alienação essencial, nesse "entre quatro paredes" da análise que é o analogon do espaço psíquico do paciente. "O texto de A.", escreve ele, "justamente por não ir além de uma 'passagem ao ato', foi, por esse motivo, [para um debate de fundo] o mais mal escolhido dos pretextos".

Mas J.-B., nas últimas frases de sua curta resposta, vai mais longe. Sartre, diz ele, se trai, não está, neste caso, à altura do que ele, no entanto, expôs de forma tão magnífica em Os sequestrados de Altona, por exemplo, em que, também, "um gravador já servia para imprimir as marcas de um 'diálogo interno'".

Se a transferência com Lacan ajudou J.-B. a se livrar daquela que estabeleceu com Sartre, ela também se desfez na mesma recusa. J.-B. tentara traduzi-lo, recusava-se a incorporá-lo como via tantos outros fazerem, o que para ele era odioso. Ora, Lacan não deixava alternativa; a língua que inventava fascinava por sua inteligência, sua novidade, mas procurava se impor como a única possível - e conseguia! "Ali onde o mal opera", escreve J.-B. em L'amour des commencements, "é quando essa língua nova quer se impor. Inversamente a seu destino inicial, acaba ordenando as palavras da tribo. A tirania está nela quando pretende dizer o que existe, naquelas palavras". J.-B. irá tirar as consequências disso, fará o gesto libertador em 1964, separando-se de Lacan. Fará parte dos "cinco peticionários", com Lang, Laplanche, Smirnoff e Widlocher, que estarão na origem, com Lagache, Lavie, os Favez, Granoff e Anzieu, da cisão com Lacan, que resultará na criação da Association Psychanalytique de France.

Meu propósito não é fazer o histórico da psicanálise na França e do papel que nela desempenhou J.-B. Pontalis, mas não podia separar radicalmente esses dois movimentos pelos quais, em 1964, com Lacan, e em 1969, com Les Temps Modernes, ou seja, com Sartre, J.-B. vai se livrar dessas "transferências" para continuar o homem livre que sempre foi. Ele mesmo, em várias ocasiões, ligou os dois episódios na mesma relação pessoal com o intolerável do abuso de poder.

Essa liberdade conquistada expande-se, então, muito rápido. Em 1966, inicia sua primeira colaboração em nível editorial, fundando e assumindo a direção, na editora Gallimard, da grande coleção "Connaissance de ¡'inconscient", que até hoje é o projeto editorial francês mais importante no campo da psicanálise e que dará a conhecer, em particular, autores anglo-saxões como Winnicott, Searles, Masud Khan e muitos outros, relativamente ignorados até então. Em 1970, mal tendo saído dos Temps Modernes, funda, também na Gallimard, sua própria revista, a Nouvelle Revue de Psychanalyse, que, desde o início, se pretende independente de qualquer instituição psicanalítica, ainda que marque sua proximidade com a Association Psychanalytique de France. Porá fim a ela em 1994, com o número 50 - vinte e cinco anos! - intitulado "L'inachèvement" [O inacabamento]: para que seu desaparecimento dê lugar a outros aparecimentos.

Acrescentemos brevemente, para completar a lista desses empreendimentos, a criação do Temps de la réflexion em 1980, uma revista anual que, evocando o modelo do tear, visava ao entrecruzamento de reflexões filosóficas, psicanalíticas, sociológicas e antropológicas, na qual colaboraram os maiores nomes da época, e que se encerrou em 1989, vítima paradoxal de sua altíssima exigência; subcoleções de "Connaissance de l'inconscient" (as séries "Tracés", "Nouvelles traductions" etc); e uma coleção literária, "L'Un et l'Autre", que começa em 1989 e só se extingue com seu criador, reunindo no entretempo quase cem títulos e nomes de prestígio ou, até então, desconhecidos.

Acrescentemos também, e sobretudo, as obras do próprio J.-B. Além de trabalhos puramente psicanalíticos - em quantidade limitada, aliás - e da contribuição com uma dezena de obras coletivas, mais de vinte livros de difícil classificação. Nem verdadeiramente analíticos (mas que decerto bebem na sua experiência de analista), nem verdadeiramente autobiográficos (mas que não hesitam em evocar episódios muito pessoais, íntimos até), nem puramente ficcionais (mas que acolhem a invenção ou, mais precisamente, o sonho que se nutre da realidade para transformá-la) - seu estilo é único. Mais que um estilo, é uma voz, livre, espontânea, calorosa e sem entraves. Concebeu o projeto de precisar o que poderia ser, bem diferente da autobiografia ou da "autoficção" tão em voga, uma autografia, uma escrita de si na qual não se cessa de renascer para um mundo novo, e convenceu alguns de nós a participar de uma tentativa coletiva de precisar esse modo de aparecimento na escrita. Depois de algumas reuniões que deixaram saudade, o projeto se encerrou. Retrospectivamente, penso que era inevitável: não se teoriza a emergência; o que se faz é acolhê-la e aceitá-la. A palavra, quando se faz práxis transformadora, não pode preceder seu próprio nascimento.

No sobrevoo que fiz de seu percurso, entre aqueles que ele acompanhou e que o acompanharam mais de perto, ainda não citei os grandes amigos, aqueles com quem estava em harmonia e em prazer de pensamento e de proximidade: Merleau-Ponty, Vernant, Staro-binski, para citar apenas os de mais prestígio. Ele os amou, eles o amaram.

A voz de J.-B., mais que presente, constitutiva de seus escritos, acompanhou vários de nós, psicanalistas ou não, e ainda ressoa quando o lemos ou relemos. Ele não era um Mestre, não tinha discípulos, não procurava fazer uma obra ou deixar seu nome associado a algum conceito ou teoria. Era, para todos os que o conheceram, um amigo, e sua liberdade nos tornava mais livres.

E omiti dizer que ele estava quase sempre alegre e nos alegrava. Lembramos isso, e ainda o sentimos, mesmo na tristeza de seu desaparecimento.

 

Referências

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Les Temps Modernes, 274 (1969, abril).         [ Links ]

Perruche, M. & Pontalis, J.-B. (2008). Une œuvre, trois rencontres: Sartre, Lacan, Perec. Paris: L'Harmattan.

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Sartre, J.-P. (1960). Critique de la raison dialectique (Vol. 1). Paris: Gallimard.         [ Links ]

Sartre, J.-P. (1972). SituationsIX. Paris: Gallimard.         [ Links ]

Sartre, J.-P. (1984). Le scénario Freud. Paris: Gallimard.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
François Gantheret
13 Rue de la Cerisaie
75004 Paris
Tel.: (01 42) 74 42 32
federgan@noos.fr

Recebido em 24.6.2013
Aceito em 15.7.2013

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