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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.4 São Paulo out./dez. 2013

 

COMENTÁRIOS SOBRE A ENTREVISTA

 

Mia Couto: escutar/ler/escrever/amar a África

 

Mia Couto: listening/reading/writing/loving Africa

 

Mia Couto: escuchar/leer/escribir/amar a África

 

 

Ney Marinho

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ‚) e coordenador da Comissão de Intercâmbio SBPRJ-CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa)

Correspondência

 

 


RESUMO

O autor vê Mia Couto como um dos grandes apresentadores da África. Associa a crise de identidade do escritor luso-africano à do filósofo franco-judeu-magrebino Jacques Derrida. Discute brevemente outros temas que a entrevista lhe evocou: sonhar/pensar, uma linguagem para a experiência africana; o continente sonâmbulo, a guerra, a literatura impossível; a reconciliação e a verdade, o encontro da África consigo mesma e o nosso reencontro. Chama a atenção para o constante trabalho na caesura (Bion) que vê na obra de Mia Couto. Finaliza dedicando seu texto a todos aqueles que amam a África, mencionando em particular: Alberto da Costa e Silva (nosso maior africanista) e António Pacheco Palha (orientador dos primeiros psiquiatras africanos de língua portuguesa, em sua cadeira na Faculdade de Medicina do Porto).

Palavras-chave: Mia Couto; identidade; caesura; África; verdade; reconciliação.


ABSTRACT

The author describes Mia Couto as one of the most important introducers of Africa. He associates the Portuguese-African author's identity crisis to that of French-Maghrebian-Jewish philosopher Jacques Derrida. He briefly discusses other themes that the interview raised: dreaming/thinking, a language for the African experience; the somnambulistic continent, the war, the impossible literature; reconciliation and truth, the meeting of Africa with itself and our re-encounter. He draws attention to the constant work in the caesura (Bion) which he sees in Mia Couto's writings. The author ends his text dedicating it to everybody who loves Africa, mentioning in particular: Alberto da Costa e Silva (our main Africanist) and António Pacheco Palha (professor of the pioneering African psychiatrists of the Portuguese-speaking countries, in his subject at the College of Medicine of Porto).

Keywords: Mia Couto; identity; caesura; Africa; truth; reconciliation.


RESUMEN

El autor ve a Mia Couto como uno de los grandes presentadores de África. Compara la crisis de identidad del escritor luso africano con la del filósofo franco judío magrebí Jacques Derrida. Discute brevemente otros temas que la entrevista le evocó: soñar/pensar, un lenguaje para la experiencia africana; el continente sonámbulo, la guerra, la literatura imposible; la reconciliación y la verdad, el encuentro de África consigo misma y nuestro reencuentro. Llama la atención hacia el constante trabajo de caesura (Bion) que ve en la obra de Mia Couto. Finaliza dedicando su texto a todos aquellos que aman a África, mencionando en particular a Alberto da Costa e Silva (nuestro mayor africanista) y António Pacheco Palha (orientador de los primeros psiquiatras africanos de lengua portuguesa en su cátedra en la Facultad de Medicina de Oporto).

Palabras clave: Mia Couto; identidad; caesura; África; verdad; reconciliación.


 

 

A Nelson Mandela, in memoriam

Há poucas décadas tem ocorrido a descoberta da África. Desta vez, ao contrário das experiências anteriores - como a fantástica aventura marítima portuguesa -, que para nós remontam à própria descoberta do Brasil, tal revelação ocorre em um sentido oposto. É o próprio continente africano que se revela, através de sua arte, sua cultura, suas riquezas, suas tragédias, seus líderes e suas inestimáveis potencialidades. No caso dos países africanos de língua portuguesa, área que nos toca mais de perto, pelas conhecidas razões históricas, políticas, econômicas e culturais, a revelação adquiriu uma extraordinária velocidade. Vamos nos ater mais ao contexto literário, embora seja impossível separá-lo dos demais, dada a referência a Mia Couto, um dos grandes apresentadores da África ao mundo.

Neste processo de apresentação do continente africano, no campo da literatura, para nós falantes do português, foi um formidável impacto entrar em contato com uma produção que antes era de conhecimento restrito aos nossos africanistas e aos meios acadêmicos muito específicos, como as cadeiras de Literaturas Africanas. Alguns escritores angolanos - brancos e negros - já são razoavelmente conhecidos por aqui, como Pepetela, Ondjaki e Agualusa. Moçambique, porém, ainda é pouco representado, sendo Mia Couto seu principal expoente; alguns livros de sua conterrânea, Paulina Chiziane, admirável escritora da condição feminina na África (autora de Niketche, uma história de poligamia), podem ser encontrados, mas ela ainda é uma desconhecida. A Guiné-Bissau é praticamente ignorada, embora Odete Semedo, com sua poesia e presença como conferencista, já se faça notar no ambiente acadêmico. Há, contudo, muito a explorar, ou navegar, se formos pensar em termos mais amplos como Macau ou Timor; a título de exemplo, citaríamos o premiado e delicioso Amor e dedinhos de pé: romance de Macau, de Henrique de Senna Fernandes, que nos desperta uma curiosa familiaridade.

O que seria esta apresentação africana? Vejo-a como a transmissão de uma variada experiência, ao mesmo tempo tão próxima como distante, embora seus temas sejam também universais, impregnados por um ambiente majestoso que forma um cenário que participa das tramas, como um imponente e inevitável personagem.

É a partir desta perspectiva que vou discorrer sobre algumas ideias que a leitura da entrevista de Mia Couto me despertou. É bom lembrar que o autor de Confissões da Leoa é um grande entrevistado. Suas entrevistas são conhecidas pela simplicidade, franqueza e poesia com que responde a qualquer pergunta, estabelecendo um estimulante diálogo.

 

Mia Couto/Jacques Derrida: o luso-africano e o franco-judeu-magrebino

Mia Couto compartilha com Jacques Derrida o mesmo drama de identidade. Derrida dizia não se sentir à vontade com a exclusividade de quaisquer das três identidades que o constituíram: a francesa, a judaica e a magrebina. Em seu complexo e estimulante livro O monolinguismo do outro, expõe a questão e oferece um comovente depoimento de como viveu, perdeu e recuperou sua identidade francesa. De nossa leitura de Derrida, entendemos que o hífen (-) define mais sua identidade de franco-judeu-magrebino. Seu sofrido testemunho - Derrida foi afastado de sua escola de língua francesa, na Argélia, por ser judeu e ter então perdido o direito à nacionalidade francesa durante a invasão nazista da França - mostra também a origem de sua liberdade para uma aceitação mais profunda do outro, do necessariamente estrangeiro, permitindo-lhe uma visão mais ampla da experiência humana. Algo semelhante me parece ter ocorrido com Mia Couto, filho de emigrantes portugueses nos anos de 1950, nascido em Beira (centro de Moçambique) em 1955. Mia acompanhou toda a guerra de libertação e ainda a civil. Ele, um luso-africano, branco, solidário com a luta anticolonial e, ao mesmo tempo, com tantos vínculos com Portugal, em um país que pelo menos em um primeiro momento tudo fez para romper com esta vinculação. Mas falar em vínculo, em hífen, remete-nos à noção de caesura (Bion), tal qual a entendemos como uma continuidade-descontinuidade, como bem registrou Strachey em sua tradução do texto freudiano do qual vem a noção desenvolvida por Bion: "Há muito mais continuidade entre a vida intrauterina e a primeira infância do que a impressionante caesura do ato do nascimento nos teria feito acreditar". Esta é a citação de Freud, e Strachey remete o termo caesura à prosódia clássica, em que "significa uma espécie particular de interrupção em um verso" (Freud, 1926/1971, p. 138).

Vale recordar que muitos de nossos mais admirados psicanalistas (como Bion e Green) não só vêm de países ao mesmo tempo periféricos ou emergentes, e com formidáveis tradições (Índia e Egito), como também foram teluricamente marcados por suas origens. Pensemos nas cartas de Bion aos filhos, em que fala que a chuva e o sol da Califórnia o faziam lembrar-se de sua infância, na Índia, e sua contrapartida, os pensamentos selvagens (Bion, 1985). André Green diz: "Nascido no cosmopolitismo, eu não tive, como a maior parte de meus colegas, de passar da condição nacional originária à dimensão 'internacional' ... devido à mistura de etnias no Egito, particularmente na comunidade europeia" (Green, 1999, p. 16-17). Mais adiante, Green falará também do papel do Rio Nilo em seu imaginário.

 

Sonhar/pensar. Uma linguagem para a experiência africana

A evocação de Guimarães Rosa é inevitável na leitura de Mia Couto, assim como a de Drummond, como revela o entrevistado. O regional-universal - com seus personagens humanos ou bichos, vivos, mortos ou encantados, brancos, negros ou indianos - desperta o sentimento de um estranhamento ao mesmo tempo tão familiar. Embora seja também inevitável a evocação do sinistro (Freud), a poesia de Mia Couto confere a este sentimento uma peculiaridade inconfundível. Tudo isto nos leva ao processo de criação sobre o qual o entrevistado nos dá um depoimento esclarecedor - um esclarecimento que aponta para o mistério. Como um sofisticado epistemólogo, Mia Couto nos confessa que ignora as origens de sua criação; não sabe se de uma anotação sairá um poema, um conto ou um romance. Em suma, o contexto da descoberta não seria epistêmico, não estaria no domínio do conhecimento, afirmações semelhantes às de Jacques Hadamard (1954) - discípulo de Poincaré - sobre a invenção da fórmula matemática1. Ultimamente tem me interessado bastante refletir sobre a necessária antecedência do sonhar sobre o pensar, tema para muitos banal, reconheço, mas que talvez mereça maior escrutínio. Imagino a seguinte questão: será possivel pensar algo que não consigamos sonhar? Voltarei adiante a esta questão, em companhia de Mia Couto. Quando afirmamos, no início deste texto, que Mia era um grande entrevistado, ressaltamos sua sinceridade e simplicidade, e também seu convite a um aprofundamento do diálogo. Em suas palavras, nada há de categórico; é sempre um convite; não é a fala de um colonizador apresentando indígenas aos olhos basbaques da corte francesa - lembremo-nos da visita de nossos índios à França, logo após a descoberta - nem o relato arrogante do ex-colonizado triunfante denunciando os crimes de que foi vítima e as glórias de sua vitória sobre o humilhado carrasco. Nada disso. É uma conversa entre amigos, o que permite uma liberdade às vezes assustadora.

A linguagem para a experiência africana pede algo similar ao realismo fantástico, que marcou a literatura latino-americana na segunda metade do século passado. O estilo de Mia Couto vem ao encontro deste ponto de vista. Poesia/poema/prosa, o encantamento, o ambiente, o cenário como um personagem constante. Tudo é majestoso: o clima, a floresta, os animais, o continente. Entretanto, quando falamos em África, falamos de uma grande diversidade. Cabo Verde é um país atlântico nada mais diferente do que Angola, agora uma quase potência continental, e do que Moçambique, com sua diversidade acentuada de culturas, o sul tão próximo do gigante econômico em que se constituiu a África do Sul, e o norte voltado para as rotas asiáticas, alvo de grande interesse como porta de entrada dos produtos chineses para a África e, outrora, rota comercial árabe. É importante registrar que setenta por cento da população do norte de Moçambique é muçulmana de origem indiana. A influência de Goa é marcante, como vemos em muitas obras de Mia Couto - lembremo-nos de O outro pé da sereia. A Ilha de Moçambique, em que Camões viveu por dois anos e onde concluiu Os Lusíadas, era porto de espera de bons ventos para viagens mais longas - a Goa, Malaca, Macau e Timor. História e cenário paradisíaco são um convite à aventura do pensamento tanto quanto o navegar de nossos ancestrais marinheiros.

 

O continente sonâmbulo. A guerra. A literatura impossível

A partir da metade do século passado surgiram os movimentos armados de descolonização em toda a África. As tentativas políticas e diplomáticas de uma extinção pacífica do já então anacrônico colonialismo fracassaram. Podemos tomar o assassinato de Patrice Lumumba - o maior líder africano antes de Mandela -, e poucos meses depois, o acidente aéreo (até hoje não esclarecido) com o secretário geral da ONU, Dag Hammarskjold, em missão de paz na antiga Rodésia, como o ponto de ruptura de qualquer tentativa pacífica de transição. As guerras anticoloniais pipocaram em toda a África.

A violência dessas guerras foi acentuada pelo clima de Guerra Fria em que estavam envolvidas, além da feroz resistência do apartheid sul africano, que temia - com absoluta razão -seu fim em caso de vitória dos movimentos nacionalistas vizinhos. Em poucos países duraram menos de dez anos, pois foram seguidas, em muitos casos, por duas décadas de guerra civil, fruto de disputas internas alimentadas pelas grandes potências. Mesmo após o fim do mundo socialista, as guerras prosseguiram, como foi o caso de Angola - exemplo mais cruel - e de Moçambique. Números e dados são tão inacreditáveis como pouco conhecidos fora da África. Somente em Angola, um milhão de crianças mortas, aleijadas ou órfãs de guerra. O napalm foi utilizado pela primeira vez, bem antes do Vietnã, por Portugal em Moçambique. A manada de búfalos se reduziu de quinhentos mil a menos de cinco mil; o mesmo ocorrendo com os elefantes, sendo que os sobreviventes fugiram para a Tanzânia e recusam-se a voltar. Jorge Ferrão, reitor da UNILURIO (universidade do norte de Moçambique), sociólogo de origem que se tornou um renomado especialista em parques naturais - com mestrado no Brasil e doutorado na França -, nos informou em uma longa entrevista que as maiores vítimas da guerra foram os animais. Moçambique perdeu, entre 1980 e 2008, mais da metade de seus elefantes - seu número passou de trinta e seis mil para dezesseis mil - e noventa por cento dos animais do Parque Gorongosa, outrora o mais importante do país. Estes números ajudam a explicar a declarada dificuldade de Mia Couto quanto a escrever sobre a guerra. Mesmo assim, surgiu Terra sonâmbula:

O tempo passeava com mansas lentidões quando chegou a guerra. Meu pai dizia que era confusão vinda de fora, trazida por aqueles que tinham perdido seus privilégios. No princípio, só escutávamos as vagas novidades, acontecidas no longe. Depois, os tiroteios foram chegando mais perto e o sangue foi enchendo nossos medos. A guerra é uma cobra que usa os nossos próprios dentes para nos morder. Seu veneno circulava agora em todos os rios da nossa alma. De dia já não saíamos, de noite não sonhávamos. O sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos (Couto, 2007, p. 17).

Derrida certa feita pediu aos psicanalistas que escrevessem Novas reflexões em tempos de guerra e morte. Acreditava que somente a psicanálise poderia tomar como objeto o mal pelo mal, ou:

... onde a questão do mal radical ou de um mal pior que o mal radical não estaria mais abandonada à religião ou à metafísica, nenhum outro saber estaria disposto a se interessar por algo como a crueldade - salvo o que se chama psicanálise (2001, p. 7).

Certamente poderiamos agradecer a confiança, declinando porém do convite, pois, como muitos já escreveram brilhantemente2, talvez não seja possível falar - dizer, no sentido wittgensteiniano -, mas apenas mostrar situações de tal crueldade. Lembremo-nos do Holocausto e de Hiroshima. No caso, gostaríamos de salientar o cruel ataque à infância -pensamos nas crianças soldados3 -, à fauna, à flora, à terra, ao animado e ao inanimado. Certamente, é disto que Mia Couto fala quando dá a seu magnífico romance um lugar privilegiado e maldito em sua obra. Contudo, Mia Couto escreveu, ousou sonhar o impossível. A ideia de terra sonâmbula me parece de extrema felicidade, uma vez que mesmo este sonho é imperfeito; é mais um estado sonambúlico, como parece ter sido o do continente africano em muitos momentos do século passado - estado que ainda ocorre em muitas regiões neste século XXI, quer seja na mesma África, quer nos Balcãs ou no Oriente Médio. O ponto que desejamos sublinhar é o convite, tanto de Derrida quanto de Mia Couto, de trabalharmos na caesura, neste espaço impossível de continuidade-descontinuidade.

 

A reconciliação e a verdade. O encontro da África consigo mesma. O nosso reencontro com a África

Ao escrever estas notas, vem com frequência à lembrança algum texto de Derrida. Fico intrigado. Além da crise de identidade vivida por ambos os autores, há algo mais em comum. Não sei. Suspeito que seja certa doçura, delicadeza, amor sem pieguice. Seria uma modalidade de linguagem de êxito que permite que falem de assuntos dolorosos, muitas vezes cruéis, de uma forma que nos convida a sonhá-los? Deixo em aberto para outras possibilidades. O texto que me ocorre no momento é o magnífico ensaio "O perdão, a verdade, a reconciliação. Qual gênero?" (Derrida, 2005) - texto fruto de sua experiência na África do Sul ao acompanhar os trabalhos da Comissão de Verdade e Reconciliação, inusitada criação de Nelson Mandela e somente possível por sua incomparável liderança e, ao mesmo tempo, uma formidável experiência do trabalho com a impossibilidade (no caso, a do perdão). Vejo a reconciliação e a verdade como um convite que ultrapassa a questão do apartheid, e que uma vez aceito poderia permitir um encontro da África com ela mesma - indo, portanto, muito além de um acerto de contas com o colonizador ou de uma autoacusação estéril. As guerras brutais e a corrupção substituem muitas vezes antigos senhores e pedem uma ines-capável responsabilidade. É interessante registrar que Cabo Verde é avaliado, por pesquisadores internacionais, como o segundo país menos corrupto da África e ali não houve guerra civil. Parece haver uma relação.

Verdade e reconciliação é uma outra forma de pensar que está sendo oferecida.

Em relação a que ele [o produto final da transformação de uma experiência emocional] tem que ser verdadeiro, e como vamos decidir se é ou não? Quase qualquer resposta parece tornar a verdade contingente em alguma circunstância ou idéia que é em si mesma contingente. Voltando à experiência analítica em busca de uma pista, estou lembrado que crescimento mental saudável parece depender da verdade assim como o organismo vivente depende de comida. Se ela está faltando ou é deficiente a personalidade se deteriora. Não posso fundamentar essa convicção por evidência considerada como científica. Pode ser que a formulação pertença ao domínio da estética (Bion, 1983, p. 54).

Não consigo desenvolver este ponto. Talvez, minha experiência de trabalho e minhas viagens ao continente africano possam vir a esclarecer. Um sentimento de familiaridade e um estar em casa sem ser o da arrogância do conquistador, ou do catequista, pois reconhecemos ao mesmo tempo a diferença. Estranho/familiar. Sentimos um reencontro com algo que nos foi tirado, pelo preconceito, pelo temor do contágio. Curioso sentimento que me leva - e já ouvi depoimentos semelhantes - a pensar na viagem seguinte.

Finalizo estes comentários, gentilmente solicitados pela RBP, dedicando-os a todos os que amam a África, porque são os que poderão vir a compreendê-la, ouvi-la, lê-la, aprender com ela, dar-lhe voz e dialogar com ela. Citaria duas personalidades que muito têm me ensinado sobre a África: Alberto da Costa e Silva - poeta, acadêmico, diplomata, escritor e nosso maior africanista - e António Pacheco Palha - professor titular de psiquiatria da Faculdade de Medicina do Porto -, o principal orientador e formador dos primeiros psiquiatras africanos, construtores de seus países cheios de vida e esperança. Alberto da Costa e Silva e António Pacheco Palha amam a África e não receiam derrubar muros erguidos pelo medo e o preconceito. Nas palavras de Mia Couto: "há quem tenha medo que o medo acabe" (2013, p. 31).

 

Referências

Bion, W. R. (1983). Transformações: mudança do aprendizado ao crescimento (C. H. P. Affonso, M. R. A. Junqueira & L. C. U. Junqueira Filho, trads.). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Bion, W. R. (1985). All my sins remembered: the other side of genius. Abington: Fleetwood Press.         [ Links ]

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Couto, M. (2007). Terra sonâmbula. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Couto, M. (2013). Murar o medo. Revista Brasileira de Psicanálise, 47(1),29-31.         [ Links ]

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Derrida, J. (2005). O perdão, a verdade, a reconciliação. Qual gênero? In E. Nascimento (Org.), Jacques Derrida: pensar a desconstrução (pp. 9-92). São Paulo: Estação Liberdade.         [ Links ]

Freud, S. (1971). Inhibitions, symptoms and anxiety. In S. Freud, The standard edition of the complete psychological works of Sigmund Freud (J. Strachey, trad., Vol. 20, pp. 77-175). London: The Hogarth Press. (Trabalho original publicado em 1926).         [ Links ]

Green, A. (1999). Um psicanalista engajado (J. Canelas, trad.). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Hadamard, J. (1954). The psychology of invention in the mathematical field. New York: Dover.         [ Links ]

Horenstein, M. (2013). Psicoanalizar después de Auschwitz. Texto não publicado.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Ney Marinho
Rua Sergio Porto, 153
22451-430 Rio de Janeiro, RJ
Tel.: (21) 2294-4686
neymarinho@globo.com

Recebido em 28.11.2013
Aceito em 16.12.2013

 

 

1 Hadamard levou adiante as pesquisas de Poincaré, das quais Bion utilizou a noção de fato selecionado.
2 Horenstein (2013).
3 Bragin (2010). O texto de Bragin apareceu em um volume da revista Trieb, da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, dedicado ao intercâmbio com a Comunidade de Países de Língua Portuguesa. O volume vem acompanhado de um dvd em que há depoimentos de psiquiatras angolanas e da ex-ministra da saúde de Guiné-Bissau, em entrevista com os editores, sobre as guerras africanas, entre outros temas.

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