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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.4 São Paulo out./dez. 2013

 

COMENTÁRIOS SOBRE A ENTREVISTA

 

Literatura, poesia e psicanálise

 

Literature, poetry and psychoanalysis

 

Literatura, poesía y psicoanálisis

 

 

Carlos de Almeida Vieira

Analista didata da Sociedade de Psicanálise de Brasília (SPB) e membro efetivo com funções didáticas da Sociedade Psicanalítica do Recife (SPR)

Correspondência

 

 


RESUMO

O autor propõe nesta comunicação aproximar a experiência literária e poética da observação e apreensão da realidade psíquica no trabalho analítico. A partir da entrevista concedida pelo escritor Mia Couto para a Revista Brasileira de Psicanálise, e acrescentando textos de outro autor, Jorge Luis Borges, enfatiza a importância do vértice estético-artístico como fundamento da pesquisa psicanalí-tica. A literatura e os poetas têm muito a nos ensinar, na medida em que o fenômeno mental, hoje, não é mais propriedade da psicanálise, ou melhor, na medida em que a psicanálise é um dos meios de observação e pesquisa da realidade psíquica, da experiência humana.

Palavras-chave: literatura; psicanálise; formação psicanalítica; prosa e poesia.


ABSTRACT

The author proposes, through this paper, to link literary and poetical experience to the observation and apprehension of the psychic reality in analytical work. Starting withth an interview carried out by this journal with the writer Mia Couto, and adding texts by another author, Jorge Luis Borges, the author emphasizes the importance of the aesthetic-artistic vertex as a foundation of psychoanalytic research. Literature and poets have a lot to teach us, considering that the mental phenomenon, today, is no longer property of psychoanalysis.That is to say, psychoanalysis is one of the vertices of observation and research of psychic reality, of the human experience.

Keywords: literature; psychoanalysis; psychoanalytic study; prose and poetry.


RESUMEN

En este artículo el autor propone aproximar la experiencia literaria y poética a la observación y comprensión de la realidad psíquica en el trabajo analítico. A partir de la entrevista concedida por el escritor Mia Couto a la Revista Brasileira de Psicanálise, y añadiendo textos de otro autor, Jorge Luis Borges, enfatiza la importancia del vértice estético-artístico como fundamento de la investigación psicoanalítica. La literatura y los poetas tienen mucho que enseñarnos, en la medida en que el fenómeno mental, hoy en día, dejó de ser una propiedad del psicoanálisis, o mejor, el psicoanálisis es uno de los medios de observación e investigación de la realidad psíquica, de la experiencia humana.

Palabras clave: literatura; psicoanálisis; formación psicoanalítica; prosa y poesía.


 

 

... o Poeta distingue-se fundamentalmente dos outros homens por sua maior prontidão para pensar e sentir sem estímulo externo imediato, e um maior poder para expressar tais pensamentos e sentimentos que nele se produzem dessa maneira. Mas essas paixões e pensamentos e sentimentos são as paixões e os pensamentos e os sentimentos normais dos homens

(Wordsworth, 2007, p. 136).

Já em 1906, em sua nota ao editor Hugo Heller, "Resposta a um questionário sobre leitura", Sigmund Freud (1969) destacava, penso eu, a importância da leitura e da cultura para um psicanalista. Ele cita autores imprescindíveis, como Homero, Sófocles, Goethe, Shakespeare, John Milton e Heine. Estava inaugurada, assim, a ênfase na literatura como subsídio para o psicanalista investigar a alma humana. A obra psicanalítica de Freud mostra quantas e quantas vezes ele recorreu a modelos, metáforas e observações de escritores, que o auxiliavam na abordagem dos "romances familiares" que se descortinavam em seu divã.

Atualmente é também conhecida de todos nós a importância da teoria observacional de W. R. Bion: "Dividimos previamente o domínio da investigação em religioso, científico e estético" (1975, p. 43). O vértice estético indica a relevância do papel de escritores e poetas, uma vez que contribuem para a pesquisa analítica duas questões fundamentais: o método de observação do fenômeno humano e a apreensão, pelos artistas, da realidade psíquica além da realidade sensorial. Vejamos o que Jorge Luis Borges, em seu belo texto "A memória de Shakespeare" (1999), escreve sobre a memória, fazendo referência aos sonhos:

... a memória já entrou em sua consciência, mas é preciso descobri-la. Surgirá nos sonhos, na vigília, ao virar as folhas de um livro ou ao dobrar uma esquina. O senhor não se impaciente, não invente lembranças. O acaso pode favorecê-lo ou atrasá-lo, segundo seu misterioso modo. À medida que eu vá esquecendo, o senhor recordará. Não lhe prometo um prazo (p. 447).

Mais adiante nesse conto, retomando Spinoza, Borges brinda-nos com outra beleza de modelo disciplinar de apreensão da realidade psíquica:

Eu havia imaginado disciplinas para despertar a antiga memória; tive de buscar outras para apagá-la. Uma entre tantas foi o estudo da mitologia de William Blake, discípulo rebelde de Swedenborg. Comprovei que era menos complexa do que complicada. Esse e outros caminhos foram inúteis; todos levavam-me a Shakespeare. Encontrei, enfim, a única solução para povoar a espera: a estrita e vasta música, Bach (p. 451).

Em Atenção e interpretação, Bion (1970/2007) volta a falar do bardo inglês ao mencionar outro poeta, não menos importante: John Keats. Este, em carta a seu irmão, fala da "capacidade negativa" e cita como homem de sucesso e realização William Shakespeare. Capacidade negativa é essa qualidade que um homem necessita ter para conviver com o mistério, a incerteza e a dúvida, sem querer chegar a fato ou razão.

Borges, Spinoza, Bion, Keats e Mia Couto nos dão auxílio quando enfatizam essa disciplina para intuir, sentir e apreender a realidade psíquica. Mia Couto, em sua entrevista à Revista Brasileira de Psicanálise, fala em observar os silêncios, em escutar o que para nós venha a ser a observação da comunicação pré-verbal. Tratando de seu processo criativo, Mia nos diz:

Quase tudo o que fiz foi nessa incapacidade de dormir, que me faz acordar às três horas da manhã e não dormir mais. É quando as coisas acontecem e me instigam e seduzem a ponto de me fazer levantar e escrever. Esse estado de semivigília é o melhor momento. Eu o prolongo o mais possível. Ao acordar também faço essa transição como se fosse uma coisa mastigada, lenta. Esse momento é muito produtivo.

A associação livre e a atenção flutuante são ferramentas dos psicanalistas e funcionam sob um estado de dormindo-acordado ou estado de sonho. É através de estados como esses que se disciplina a observação do fato estético.

Gostaria agora de restringir meu escrito à experiência que tenho, há vários anos, de ler a obra desse moçambicano, poeta, escritor, biólogo e crítico - Mia Couto. Muitos são os seus livros, livros que narram experiências dolorosas das guerras na África, vivência própria do autor. Nessas narrativas, em forma de romance, em forma de poesia e, principalmente, em forma de uma "prosa poética", Mia, aqui e acolá, traz modelos, metáforas, que podem auxiliar a nossa atividade clínica no tocante à disciplina e à observação para se chegar mais e mais perto da realidade psíquica.

Em um livro citado na entrevista, Antes de nascer o mundo (2009), Mia Couto escreve a história de um "menino que habita o silêncio". Logo no Livro Um, na história "Eu, Mwanito, o afinador de silêncios", achamos um modelo muito rico em forma de metáfora:

Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo silêncio é música em estado de gravidez. Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era afinador de silêncios (p. 13).

Em outro livro, Estórias abensonhadas (1996), nosso autor volta à questão do que estou chamando de disciplina para escutar o não verbal, o indizível. Em um conto dessa obra, "O cego Estrelinho", lemos:

No tempo que se seguiu, o cego falou alto, sozinho como se inventasse a presença de seu amigo: escuta, meu irmão, escuta este silêncio. O erro da pessoa é pensar que os silêncios são todos iguais. Enquanto não: há distintas qualidades de silêncio. É assim o escuro, este nada apagado que estes meus olhos tocam: cada um é um, desbotado à sua maneira. Entende, mano Gigito? (p. 23).

Em um outro conto, "Os infelizes cálculos da felicidade", Mia Couto narra sua experiência de captar as defesas contra os afetos - fatos tão conhecidos por nós analistas em nossa clínica - de uma maneira poética e profunda. Seu personagem Júlio Novesfora passou a vida matematizando a experiência afetiva para não senti-la, vivendo uma vida vazia, obsessiva e triste. Mia o descreve assim:

Doseava o coração em aplicações regradas, reduzida a paixão ao equivalente numérico. Amores, mulheres, filhos: tudo isso era hipótese nula. O sentimento, dizia ele, não tem logaritmo. Por isso, nem se justifica a sua equação. Desde menino se abstivera de afetos. Do ponto de vista da álgebra, dizia, a ternura é um absurdo. Como o zero negativo. Vocês vejam, dizia ele aos alunos: a erva não se enerva, mesmo sabendo-se acabada em ruminagem de boi. E a cobra morde sem ódio. Na natureza não se concebe sentimento (1996, p. 83).

Poderia adentrar mais e mais na obra desse escritor que, a cada dia, se transforma em um ícone da literatura de língua portuguesa. O que gostaria de frisar aqui é a importância, a necessidade, na formação e desenvolvimento da função analítica, da disciplina para observar os fenômenos da alma humana; a importância da intuição e dos recursos estéticos como método e treino. Ler, reler e estudar os autores ditos "canônicos" da literatura universal a fim de desenvolver, desse modo, a sensibilidade para apreender aquilo que se encontra além do dito, do sensorial e do manifesto.

Essas considerações, que remetem ao vértice estético-artístico como ferramenta para a apreensão da realidade psíquica, fazem com que pensemos em quão necessário é aprofundar, mudar e expandir a técnica psicanalítica. Existe a teoria da técnica, a técnica e, principalmente, o estilo que cada analista desenvolve, o seu ser psicanalista. Não se faz análise com a psicanálise; faz-se, ou melhor, experimenta-se análise com a pessoa do analista.

Na experiência clínica atual, com o advento das patologias da pós-modernidade, o analista se depara com a predominância de fenômenos psicopatológicos ligados aos desastres narcísicos ou, poderíamos dizer, distúrbios do narciso do Édipo: falhas na simbolização, predomínio de atos, de uma mente muscular, atuações de partes perversas e psicóticas da personalidade e sintomas psicossomáticos. A mente se expressa pelo corpo, dificultando a observação e mascarando o viver emocional, a experiência psíquica nas salas de análise, através de mecanismos mais graves: dissociações, divisões, identificações projetivas severas. O vazio, os silêncios longos, o indizível e os atos tomam conta e transformam a relação analítica no palco de atuações transferenciais e contratransferenciais mais do que no passado. Diante desses fatos, ao analista atual se requer dobrar sua disciplina para manter um clima de associações livres, atenção flutuante e capacidade de sonhar sonhos não sonhados do seu analisando. A inspiração, o estado de alumbramento e a capacidade intuitiva e estética para ouvir e apreender o não dito, próprio dos artistas, penso que são um grande auxílio ao exercício técnico.

Vivemos restos de um desastre traumático precoce, que dificultam o resgate da experiência afetiva. Não podemos mais ser analistas obcecados pelo entender, pelo "psicanalisar", como defesa da angústia de criar no silêncio, no vazio. A pessoa real do analista assume importância também, ao lado do "analista alucinado da transferência". Nossas análises devem percorrer estradas mais obscuras, dúvidas mais angustiantes diante de experiências fraturadas de correspondentes simbólicos. É momento de muita criação, e criação em parceria com nosso analisando, na esperança de refazer vínculos fragmentados, de dar significados, de "poetar" com, pois a poesia tem essa condição - criar metáforas para aproximar experiências além do concreto e estados muito primitivos. Um analista sem desenvolvimento de seu senso estético, identificado com a pressa e a tecnocracia do mundo atual, correria o risco de transformar a psicanálise em uma prática psicoterápica focal. Daí a literatura, a poesia, a música, as artes plásticas, no que concerne a seus métodos, serem um recurso necessário à formação de psicanalistas.

Deixo o leitor com um belo poema de Mia Couto (1999, p. 13), em que o autor, com sua sensibilidade, intui questões ligadas à identidade humana:

Identidade

Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta

Sou pólen sem inseto

Sou areia sustentando
o sexo das árvores

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato
morro
no mundo por que luto
nasço

 

Referências

Bion, W. R. (1975). Conferências brasileiras 1 (P. D. Corrêa, trad.). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Bion, W. R. (2007). Atenção e interpretação (P. C. Sandler, trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1970).         [ Links ]

Borges, J. L. (1999). A memória de Shakespeare. In J. L. Borges, Obras completas (B. Jozef et al., trads., Vol. 3, pp. 444-451). Rio de Janeiro: Globo.         [ Links ]

Couto, M. (1996). Estórias abensonhadas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.         [ Links ]

Couto, M. (1999). Raiz de orvalho e outros poemas. Lisboa: Caminho.         [ Links ]

Couto, M. (2009). Antes de nascer o mundo. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Freud, S. (1969). Resposta a um questionário sobre leitura. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 9, pp. 251-252). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1906).         [ Links ]

Wordsworth, W. (2007). O olho imóvel pela força da harmonia (A. Marsicano & J. Milton, trads.). São Paulo: Ateliê         [ Links ].

 

 

Correspondência:
Carlos de Almeida Vieira
SHIS QI 09, Lote E, Bloco I, sala 310
Ed. Centro Clínico do Lago, Lago Sul
71625-009 Brasília, DF
Tel.: (61) 3248-2502
vieira041144@gmail.com

Recebido em 14.11.2013
Aceito em 26.11.2013

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