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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.4 São Paulo out./dez. 2013

 

INTERFACE

 

O sujeito lírico e o sujeito pedra

 

The lyrical subject and the stone subject

 

El sujeto lírico y el sujeto piedra

 

 

Viviana Bosi

Livre-docente na área de Teoria Literária e Literatura Comparada, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), autora do livro John Ashbery, um módulo para o vento (1999), dentre outros trabalhos de crítica literária

Correspondência

 

 


RESUMO

O ensaio pretende, em sua primeira parte, apresentar brevemente algumas reflexões sobre o sujeito lírico desde o romantismo, de forma a introduzir a questão que desenvolve de modo mais concreto na segunda parte, quando analisa e discute três poemas contemporâneos (de Rubens Rodrigues Torres Filho, Francisco Alvim e Sebastião Uchoa Leite), nos quais se reconhece uma mudança de posição da voz poética. A questão principal é o encolhimento e a perda de centralidade desse sujeito, que nem se reconhece de fato como tal.

Palavras-chave: sujeito lírico; poesia brasileira contemporânea.


ABSTRACT

In its first part, this essay intends to present briefly some thoughts on the lyrical subject since Romanticism as an introduction to the second part, where there is the analysis of three contemporary poems (by Rubens Rodrigues Torres Filho, Francisco Alvim and Sebastião Uchoa Leite). A change of position can be recognized in their poetical voices. The main issue is the shrinking and loss of centrality of this subject, who doesn't even recognize himself as such.

Keywords: lyrical subject; contemporary Brazilian poetry.


RESUMEN

El ensayo pretende, en su primera parte, presentar de forma breve algunas reflexiones sobre el sujeto lírico desde el romanticismo, con el fin de introducir el tema que se desarrolla de forma más concreta en la segunda parte, cuando analiza y discute tres poemas contemporáneos (de Rubens Rodrigues Torres Filho, Francisco Alvim y Sebastião Uchoa Leite) en los cuales se reconoce un cambio de posición de la voz poética. El tema principal es la retracción y la pérdida de la centralidad de ese sujeto, que no se reconoce de hecho como tal.

Palabras clave: sujeto lírico; poesía brasileña contemporánea.


 

 

Não me proponho, neste breve artigo, a desfiar todas as teorias sobre o sujeito lírico, que se estendem desde a Antiguidade até hoje, e sim, em um primeiro momento, a introduzir aspectos preliminares da questão antes de comentar, logo a seguir, alguns de seus desdobramentos em casos contemporâneos. Evitemos, como recomendava Paul Valéry, a tentação de parar sobre a ponte perigosa de cada palavra, sob pena de afundarmos em seu abismo...

Na poesia, ouvimos a voz da pessoa que nos fala, diretamente? Ou ainda, ela revive quando a recitamos e somos nós os inspirados? Será que o poeta se transforma nos leitores, em uma transfusão de intimidades?

Para alguns, a expressão "sujeito lírico", de origem romântica, não se afasta do biográfico: na definição de Goethe, os poemas são fragmentos de uma grande confissão; ou, como queria Rousseau, expressão transparente dos sentimentos. O crítico literário Yves Vadé (1996), a quem estamos acompanhando neste passo, ao estudar a emergência do conceito, nota, desde o seu princípio, certa confluência entre a confissão e a pluralização: Victor Hugo, o grande romântico francês, caracteriza-se por expor "as fibras de sua alma", "atribuindo-se a missão de ser a voz de todos e de tudo" (p. 16). Assim, no prefácio das Contemplações (1856): "Minha vida é a vossa, vossa vida é a minha... Quando eu falo de mim, falo de vós. Como não o sentis? Ah! insensato, que crê que eu não seja tu" (citado por Vadé, 1996, p. 17). Portanto, a voz do poeta representaria todos os homens, e até mesmo a natureza: ele dá voz ao universo.

Esse eu alargado pode manifestar-se também pela via do exílio. Isto é, o poeta exprime a sua individualidade irredutível ao mesmo tempo que a de todos os homens. Pois os românticos, primeiros modernos em sentido amplo, vivem "amarga relação" com o mundo (na expressão de Hegel), quando palavras e ações não são suficientes para traduzir a alma, que se chanfra e se fere ao tentar apresentar-se através delas. Príncipe da Aquitânia na torre arruinada ou canhestro albatroz, é justamente na solidão que "essa fala se torna a voz dos homens" (Adorno, 2003).

Desde a frase de Nerval, "eu sou um outro", ou na formulação mais radical de Rimbaud, "eu é um outro" - considerando-se a tradição francesa como um dos paradigmas da modernidade -, e tendo em vista seja a "desaparição elocutória do sujeito" em Mallarmé, seja o "je maravilhosamente superior ao moi", de Valéry (só para citar alguns enunciados elegantes da questão), o eu lírico vem sendo caracterizado como uma voz que se constrói pela relação com a alteridade, pois permeada pela linguagem, instância tão coletiva quanto singular.

Baudelaire, por sua vez, figura o poema como resultado de síntese e arabesco, rejeitando a expressão espontânea "magia sugestiva" ou alquimia, quando sujeito e objeto constituem o real, assim como a si mesmos. Na esteira do poeta da modernidade, Wallace Stevens alcunhou a imaginação poética de "ficção suprema", através da qual o sujeito cria a si mesmo e ao mundo ao tentar entender o pássaro na palmeira no final da mente, cantando em uma língua estrangeira para além do pensamento último, que o poeta vai decifrar para os outros homens a quem revela aspectos ainda não captados do real.

Octavio Paz (1982), poeta e teórico, igualmente realça a dupla condição do sujeito lírico, entre a possessão por uma alteridade e a construção pelo trabalho com a linguagem, quando sua voz se enlaça à de outros homens, e ele deixa de ser mero eu para tornar-se um "pronome inominado". Esse sujeito é composto por uma "outridade constitutiva", pois o mundo não está mais fora nem dentro, uma vez que as palavras circundam o poeta e são o seu próprio ser. Paz enfatiza a concepção do poeta como "fora de si", quando ele se torna esse "pronome original".

Finalmente, Maulpoix (1996), poeta francês contemporâneo, inventou o termo "transpessoa" ("quarta pessoa do verbo"), para descrever este sujeito expandido. Conceber o eu lírico como um tipo de centro anímico coletivo (especialmente quanto mais singular e inapreendido) também implica a fratura e o mascaramento da voz, que em muitos poetas modernos aparece como persona e heteronomia.

Assim, além de não estar nem fora nem dentro de si, o sujeito lírico existe e não existe antes do poema. Segundo Combe (2010), que sintetiza bem o nódulo:

Vale dizer então que o sujeito lírico, levado pelo dinamismo da ficcionalização, não está jamais acabado, e mesmo que ele não é. Longe de exprimir-se como um sujeito já constituído que o poema representaria ou exprimiria, o sujeito lírico está em permanente constituição, em uma gênese constantemente renovada pelo poema, fora do qual ele não existe. O sujeito lírico se cria no e pelo poema, que tem valor performativo. Essa gênese contínua impede, certamente, de definir uma identidade do sujeito lírico, que se fundaria sobre uma relação do mesmo ao mesmo. O "sujeito lírico" não existe, ele se cria (p. 128).

Para concluir a apresentação do problema, e abrindo uma vez mais a clareira de perguntas: como poderíamos definir a posição desse "sujeito" em relação ao outro ou ao mundo?

Invoquemos um poeta-filósofo do pré-romantismo alemão. Schiller (1796/1991) postula o que denominou, de um lado, poesia ingênua, e de outro, poesia sentimental: a primeira como canto do mundo, maravilhamento do poeta que naturalmente se abre para a expressão da beleza de forma intuitiva, em que ser e aparecer se equivalem; enquanto a segunda é poesia eivada de reflexão, de ironia, de negatividade, produto de um sujeito cindido em si mesmo, o qual, por ser autoconsciente, é fraturado também em relação ao mundo, que canta de forma elegíaca (a natureza, irremediavelmente perdida), ou satírica, ou utópica. Mas, para Schiller, "Todo gênio é ingênuo", isto é, uma centelha de alumbramento permanece em meio à distância analítica. O alheamento nunca é completo, principalmente porque o sentimental aspira recuperar o estado ingênuo, como projeção futura de uma "promessa de felicidade" (evocando Stendhal...).

Hegel (1835/2004) definiu o sujeito lírico como aquele que se projeta em direção ao mundo, e ao mesmo tempo interioriza o externo, em um movimento entre o universal e o particular, transfigurando a ideia, abstrata, em manifestação sensível. O sujeito lírico é fruto de um movimento de desalienação no qual ele próprio se constitui - construção na qual a alma vai ao encontro do mundo e alcança a consciência, autodesvelando-se ao buscar a si e ao outro.

No século XX, a visada fenomenológica de Merleau-Ponty projeta sujeito e objeto imbricados e interdependentes. Para este filósofo, a arte consiste no encontro com "o coração das coisas" (2004, p. 36), uma vez que o artista não representa, meramente, o mundo, mas ambos se criam pela fusão entre quem vê e o que é visto. Então, não existe oposição entre sujeito e objeto, pois o poeta nasce das palavras densas do poema. Logo, sua obra não significa algo reificado, já que ocorre uma "transubstanciação do pintor em pintura", quando o artista se converte em "quadro-corpo". Ainda Merleau-Ponty: "A visão do pintor é um nascimento continuado" (p. 22), como se ele surgisse junto à paisagem que dele também provém: "[As coisas] são um anexo ou um prolongamento dele mesmo, estão incrustadas em sua carne, fazem parte de sua definição plena, e o mundo é feito do estofo mesmo do corpo" (p. 16).

Parece-me que a definição de Schiller contorna a contradição que poderia impossibilitar qualquer convivência entre o sentimental (reflexivo) e o ingênuo - ou, se quisermos, entre o dialético Hegel, para quem o estranhamento e o antagonismo são a condição moderna da relação entre sujeito e mundo (em parte suplantados no movimento poético do universal concreto, pelo qual o sujeito se projeta para o mundo e tenta interiorizá-lo com dificuldade, dados os seus aspectos arbitrários) - e Merleau-Ponty, que concebe um momento de fusão entre sujeito e objeto (quando um brota enraizado no outro), o qual consideraríamos, afinal, como um dos momentos do poético - entre dissonância e empatia. Em sua máxima radica-lidade, uma é distância e análise, enquanto outra, identidade e intuição.

O que podemos derivar de todas essas concepções quando nos debruçamos sobre a poesia contemporânea? Hoje, quem fala e a quem, no poema? Sobraram resquícios desses termos inteiriços como "universalidade", "singularidade", ou mesmo, "sujeito"?

 

O sujeito-pedra: tornar-se coisa

Proponho-me a ler três poemas contemporâneos nos quais se reconhece uma discreta alteração na posição do sujeito. Pois neles a voz lírica percebe-se convertida em coisa, negando-se, portanto, como tal, em um tipo de não-relação consigo mesma e com o outro. Nem se projeta para fora, em uma "íntima alteridade" (como intentaram os objetivistas Ponge e Cabral), nem é atravessada pelo externo a si. Embora a fusão ou identificação com o mundo, que tradicionalmente se considera própria do lírico puro, também aconteça em pequena escala, não ocorre como enriquecimento extensivo, porque quase não há intersecção ou tangência entre o eu e o outro. Conquanto a figura poética costume ser antropomorfizadora em relação às coisas do mundo a sua volta, como se o imaginário fosse fruto do desejo de corresponder-se, o típico enlace analógico, nestes poemas, evidencia a consciência do alheamento.

Todos foram escritos por poetas da mesma geração (porém não do mesmo grupo) na década de noventa do século XX: Rubens Rodrigues Torres Filho, Francisco Alvim e Sebastião Uchoa Leite1. Poderíamos ressaltar de comum entre os autores, à guisa de apresentação sumária, haverem adquirido seu estilo maduro, que os acompanha até a obra mais recente, quando da poesia publicada a partir do final dos anos sessenta e começo dos anos setenta, endossando certa tendência de reaparecimento da expressão subjetiva depois da ruptura extrema que o concretismo havia lançado como repto à poesia. Mas, neste caso, não se tratava de um retorno simples: afirmava-se uma forma de voz poética mediada fortemente pela desconfiança em sua centralidade.

Habitantes de grandes cidades e trabalhando em ambientes bastante intelectualizados, sua produção, muito diferente entre si (e aqui não pretendemos compará-los), pode ser localizada como altamente meditada em relação à sociedade brasileira urbana contemporânea, representada, nestes poemas, por indivíduos isolados que não conseguem entrar em contato nem com outros nem, aparentemente, consigo mesmos. Outra característica marcante destes poemas é a sensação da incapacidade para o movimento. Estas vozes apresentam-se, pois, como encapsuladas e empacadas.

No poema "O ovo de galinha", João Cabral opunha a pedra ao ovo, pois este, apesar da semelhança aparente, anuncia a vida, uma vez que "seu peso não é o das pedras,/inanimado, frio, goro;", já que "é vivo e não morto", "não se situa no final:/está no ponto de partida". Por outro lado, o minério distingue-se: "Sem possuir um dentro e um fora,/tal como as pedras, sem miolo:/e só miolo: o dentro e o fora/integralmente no contorno". De forma semelhante, este sujeito-pedra de que trataremos, estanque à alteridade do ambiente, pouco revela de uma interioridade que o diferencie.

Mas, para Cabral, o poema parecia derivar de um esforço cognitivo de aproximação gradual em direção aos objetos, o que resultava em maior lucidez para o poeta e para o leitor, ambos compartilhando desse desvendamento progressivo à volta da cabra, da bailadora, do canavial. Entreveremos, contudo, nos nossos poemas, ao lado de um lamento sobre a coisi-ficação do sujeito e de uma afirmação desse alheamento como inelutável, o encolhimento, no mesmo passo, de si e do mundo.

No caso de Rubens Rodrigues Torres Filho, cuja formação não dialoga com o concretismo, e cujo estilo maduro muitas vezes se aproxima do desmascaramento pela ironia, tão praticado por outros poetas da mesma época, acentuando-se, nele, o aspecto lúdico dos jogos sonoros, não deixa de nos surpreender quando somos apanhados por uma semiaparição melancólica do sujeito - como se vê neste poema:

um toque

Estive
algumas vezes só
como um rochedo
batido pelas bestas ondas verdes
do mar adjacente. Só
é como estar ausente
no centro exato. Limita por dentro.
O céu redondo, capa impermeável
ou sobretudo lírico, acrescenta
um toque de ironia
ou de clemência: ave,
algumas vezes chuva,
no mínimo uma estrela.

(Retrovar, 1993, incluído na coletânea Novolume, 1997).

Aqui, o ritmo em staccato e os cortes drásticos dos versos dificultam a enunciação corrente, reiterando a impossibilidade da comunhão entre sujeito lírico e natureza. As imagens não promovem encontros: o rochedo não se consola com as ondas ironicamente aliterativas do mar, ou com os limites opressivos do horizonte em que até a estrela que ali brilha iluminando sua solidão é fixa e, portanto, paisagem inútil. Tanto por fora como por dentro o lamento sem refúgio ou consolo reconhece sua impotência. O "solitude récif étoile" de Mallarmé, ponto de partida, não avista amigos na proa para o brinde nem acredita no lirismo que enfuna velas de viagem. Há uma subtração no tom, pois o isolamento não se deu apenas em relação ao outro, mas igualmente em relação a si mesmo. A pedra é ausente de si, matéria que não interage, inalterável e dura. Alcançada pela água ou pela luz, não é permeável em relação a um mundo estrangeiro a si.

Ave, chuva, estrela e onda movem-se no céu e no mar, mas não podem alcançar a pedra, "alheia a tudo que na vida é porosidade e comunicação" (Drummond). Justamente as imagens mais costumeiras da lírica romântica que Rubens estudou como professor de filosofia, as quais reúnem homem e cosmos em símbolos (como a realizaram Goethe e Schiller), são atualizadas ao revés, no laconismo severo de enjambements tristes.

Até possíveis rimas são cuidadosamente evitadas, como se nota na coincidência sonora que haveria entre "adjacente" e "ausente", interposta pelo ponto final e pelo "Só" antecipado, para que maior relevo concentrasse esta repetida palavra. O mesmo acontece adiante, quando poderia se constatar algum eco toante entre "ironia" e "clemência", logo impedido pelos dois pontos que antecipam "ave" (saudação?). O metro é em alguns momentos discretamente regular, alternando-se alguns decassílabos a hexassílabos, mas de tal forma tropeçamos na ostensiva pontuação que não se pode observar uniformidade rítmica.

As duas comparações iniciais, que se propõem a explicar por meio de imagens o que é ser só, conectam-se uma à outra como variações do mesmo em ângulos complementares. Localiza-se espacialmente o sujeito no seu entorno: à volta, por dentro e afinal por cima. Centralizado sob a brilhante e vívida abóbada celeste e rodeado pelo mar rítmico, verde e cambiante, o eu-lírico, em contraposição - ainda que imóvel e firme -, não é nada: está ausente e sem conexão2.

Que a solidez da pedra traduza-se como uma representação da resistência moral a qualquer assédio, como na imagem do penedo que se lança contra o céu, ou como no verso do samba enredo da União da Ilha, "luta do rochedo com o mar", já o assinalou belamente Bachelard (1991) em seus estudos sobre os elementos. Não há, porém, no poema, magnificação alguma de suas possíveis qualidades - apenas uma constatação de triste negatividade.

Se o começo do poema abre-se em primeira pessoa, a descrever a atitude existencial do eu lírico na vida, logo a seguir passa-se para a terceira, que permanece até o final, ampliando afirmações agora impessoais de forma assertiva, a enunciar uma verdade mais geral, dissolvendo em um sujeito neutro a experiência da segregação radical.

O tema do isolamento frente ao mundo indiferente não é novo. Desde os famosos versos de Safo, paradigma da mais antiga poesia ocidental ("A Lua já se pôs, As Pléiades também/Meia noite, foge o tempo/e eu estou deitada sozinha"), associa-se o conceito mais tradicional de lírica à imagem do sujeito face ao universo, solitário como os astros quando todas as luzes se apagam, mas bem mais efêmero em sua mínima existência. Contudo, aquele "eu" antigo que se colocava sob as estrelas reconhecia no cosmos algum eco dos seus sentimentos, enquanto o poeta contemporâneo não advoga para si possibilidade de correspondência.

Já a afinidade com o spleen baudelairiano se explicita não só na figuração do céu baixo e opressivo, como também pela comparação ambígua, inesperada, com capa e sobretudo - vestes que protegem da chuva, acrescentando "um toque de ironia ou de clemência" à posição do sujeito-pedra. Assim, esta natureza que o rodeia poderia estar ali para melhor realçar a discrepância intransigente (e mesmo crítica) entre sua imobilidade melancólica, em contraste com o brilho, a leveza e a dança rítmica do mar, da chuva, da ave e da estrela. Ou quem sabe estes elementos estão ali para inutilmente consolá-lo, posto que não podem dirimir sua irredutibilidade. O próprio céu apresenta uma forma finita - é redondo e impermeável -, destacando ainda mais os limites do horizonte interno e externo.

Também a identificação com um objeto inanimado apresenta-se paradigmática em um dos poemas do "Spleen", quando a voz lírica compara-se a uma cômoda, um quarto velho, um cemitério, e afinal assevera: "- Désormais tu n'es plus, ô matière vivantel/Qu'un granit entouré d'une vague épouvante". Tornar-se mineral afigura-se como atributo do poeta impermeável e mesmo contrário ao movimento agressivo do mundo, ao qual ele retribui com um desconsolo profundo.

Este sujeito, além de diminuído, percebe-se clivado em seus possíveis laços com o universo e consigo mesmo - e incerto quanto à possibilidade ou desejo de comunicação, seja dele mesmo em relação ao entorno e a si mesmo, seja dos elementos da paisagem à volta -apática, agressiva ou compassiva? -, em um poema que se chama, afinal, "um toque".

Francisco Alvim achava, desde o começo de sua obra, nos anos 60, que o sujeito lírico estava "gasto". Mas, por outro lado: "Não concordava com os poetas concretos de que era preciso eliminar o eu" (entrevista a Mello, 2001, p. 260). Sentia-se atraído pelas personae criadas por Pound, adaptando-as, entretanto, para a fala brasileira. Começou, então, a escrever com "vozes". Passou a ser conhecido por "ceder a voz", introduzir a "voz do outro" (conforme o descreveu Cacaso), como retalhos de fala costurados por uma "moviola" unheimlich - o estranho muito conhecido, o familiar oculto interiorizado, revelando a sociedade que o rodeia e produz3. Esta vertente de sua poesia elide a pessoalidade, ainda que empreste voz a supostos sujeitos.

A percepção de estar esvaziado de si e do outro se afigura dolorosa neste seu poema:

Escolho

Parado

Na plataforma superior

Entre as pernas
no chão
as compras num plástico

Longe do verso perto da prosa
Sem ânimo algum
para as sortidas sempre -
enquanto duram -
venturosas da paixão

Longe tão longe
do humor da ironia
das polimorfas vozes
sibilinas
transtornadas no ouvido
da língua

Ali onde o chão é chão
as pernas, pernas
a coisa, coisa
e a palavra, nenhuma
Onde apenas se refrata
a ideia
de um pensamento exaurido
de movimento

Entre dois trajetos
dois portos
(duas lagunas)
duas doenças

Sublimes virtudes do acaso
por que não me tomais
por dentro
e me protegeis do frio de fora
da incessante, intolerável, fuga do enredo?
da escolha?

(Elefante, 2000).

O título, já de antemão um trocadilho espelhado no último verso (escolho-escolha), parece aludir à concepção existencialista sartreana da obrigatoriedade da liberdade individual: o sujeito inexoravelmente responsável por seu destino. Mas, aqui, assiste-se alguém parado de pé em uma plataforma com um saco de compras entre as pernas, cansado, como um resto abandonado. Pensamento, ideias, palavras, amores e poemas - exauridos. Só o chão afigura-se sólido, e as pernas, imóveis, nele se apoiam como partes das coisas. Uma experiência característica da grande cidade contemporânea.

A comparação com a ideia de escolho como pedra é mesmo fluvial, porque se imagina entre duas lagunas (de água rasa e parada), dois portos, mas, também, entre duas doenças ou entre duas paixões, breves e exaustivas. Todas as imagens reforçam o foco na estagnação. A plataforma alude a algum modo de locomoção urbano - possivelmente trem, metrô ou ônibus. Remete, portanto, à ideia de trilho ou estrada como os espaços para onde se dirigiria o passageiro - meios de transporte aos quais se tornou indiferente, uma vez que preferiria, ao que parece, não se mover.

Este sujeito esvaziado de paixões e lances aventurosos, de deslocamentos quaisquer -seja na vida seja na linguagem -, está fundeado ou imobilizado em um lugar pouco humano, em que os lances do relacionamento inteligente ou amoroso não chegam. As camonianas "sortidas venturosas da paixão", que tanto o animariam, posto que fugazes, emprestariam intensidade e dinamismo a tal vida (como sugeriu Vinícius ao exprimir o paradoxo do lirismo, entre a forma perene e o instante de vibração) - mas nada ocorre neste não-lugar.

À maneira de um Cabral obsessivo, há, além da redução quase elíptica na linguagem, uma repetição enfática de termos, como se, por vezes, o substantivo fosse o melhor adjetivo para defini-los. Mas, se chão é chão, perna é perna, coisa é coisa, o mesmo não se pode dizer de palavra... Soam "tão longe" as rimas toantes características da cantilena do pernambucano em "ironia/sibilinas/língua", contrastando o elevado poético a esse mundo prosaico.

Talvez os versos "Onde apenas se refrata/ a ideia/ de um pensamento exaurido/ de movimento" sejam uma alusão às "subdivisões prismáticas da Ideia" de Mallarmé, uma vez que neste poema, em oposição, quase tudo é desmetaforizado e literal, sem nenhuma possibilidade de que "toda realidade se dissolva" nem que "todo Pensamento emita um lance de dados". Pelo contrário, o "pensamento exaurido/de movimento" recusa-se ao deslocamento, no sentido literal ou figurado.

As "polimorfas vozes/sibilinas" - que imaginamos variadas, intensas, sábias - aquelas que comporiam o universo poético - "transtornadas no ouvido da língua" - não apenas vertidas, entornadas, mas revirando-se entre audição e fala, aqui mescladas - são o oposto, em seus transtornos e transportes, a esse lugar de coisas sem movimento algum.

Sinalize-se, nesses versos, a obsessão aliterativa do /p/, intensificando a impressão de dureza e paralisia, em especial nos dois primeiros versos, bem destacados em frases isoladas. Já na última estrofe, de estilo bastante diferente, a repetição do /f/ e do en/in se faz audível, como possível concretização do destino fluido, que o eu lírico pretende querer evitar.

Quando finalmente manifesta-se a voz do sujeito, em atitude de apóstrofe invocando estranhas musas ("Sublimes virtudes do acaso"), ela surge para clamar por sua autodestruição. O poema conclui-se com um apelo, como uma prece, em um momento de anti-iluminação. Abandona-se a um tipo de providência, não mais divina, mas nesse instante de parada e exaustão, considerada superior à consciência finita e errada. É como se estivéssemos diante de um Ulisses (ou Vasco da Gama) ao revés, queixando-se da falta de destino da viagem, da indiferenciação entre homem e mundo, com um cansaço que o reduz às mercadorias. Não temos mais aquele sentimento de indivisão épica entre interior e exterior, nem o belo abandonar-se à contemplação da paisagem ao ponto de nela transfigurar-se para mais intimamente exprimi-la. Ocorre, pelo contrário, uma paródia extrema disso. Quem sabe como seria melhor alienar-se e deixar-se levar pelo arbítrio do acaso, que transformaria o escolho do eu na escolha impessoal...

Heitor Ferraz de Mello, ao analisar "Escolho", amplia a interpretação observando que, uma vez que as rememorações da natureza, que conduziam o poeta para um estado de felicidade súbita, inexplicável, ligada à infância4, se comprimem para dar lugar ao mal-estar da história presente, do mundo dos homens, o eu-lírico invoca em prece o acaso para abduzi-lo, quem sabe, da pressão redutora do real hostil, que obriga a (falsas) escolhas5.

O poema adota uma aparente configuração descritiva por conta da utilização de termos precisos de localização espacial: superior, entre, no chão, longe, perto, ali, onde, dentro, fora. Porém, ao lado da objetividade com que a cena "parada" nos é apresentada, logo somos conduzidos à viagem imaginária para destinos almejados pela lembrança e pelo desejo6, por um sujeito, no entanto, resignado à sua impossibilidade e conformado com a mediocridade do trajeto. Talvez haja algum resquício de contraste entre os termos "superior" e "chão" -análogo aos (não) deslocamentos horizontais - como outro vetor de comparação, que mais enfatiza a imobilidade e o achatamento do sujeito-coisa. A própria disposição isolada dos primeiros versos parece ressaltar a verticalidade do poema. De fato, o espaço ocupa lugar preponderante (com perdão da tautologia), uma vez que se trata de um sujeito-coisa comparável à sacola plástica, representado metonimicamente pela perna apoiada no chão. Uma vez que os movimentos físicos e mentais foram extintos, também o processo do desenrolar da vida - o "enredo" - que se desenvolveria no tempo - está enfaticamente "parado".

Na invocação final, a clamar pela autoanulação, quando então as possibilidades sonhadas poderiam ser definitivamente suprimidas, e esta voz tornar-se-ia submissa e indiferente às adversidades do mundo real, a polarização entre dentro e fora seria apaziguada porque abolida a sua contraposição7. O indivíduo ainda sofre porque mantém a espessura interior, que a linguagem mais literária, "alta", denuncia, posto que já consciente de ela ser um "escolho" que será afinal eliminado.

Desde Homero (no episódio de Cila e Caribdes) até Drummond, que "tinha uma pedra no meio do caminho"8, ou afinal no poema rapsódico de Enzensberger contra o iceberg (no Naufrágio do Titanic, 1978), as pedras comparecem na poesia ocidental, figurando em geral um obstáculo a ser enfrentado, por vezes intransponível. Também ressurgem como motivo recorrente em Cabral, verdadeiro "paradigma moral e estético" (Escorel, 2001, p. 22). Mas em Rubens Rodrigues Torres Filho e Francisco Alvim, a pedra encarna-se na própria voz lírica: ela mesma óbice. Ao identificar-se com ela, na verdade a voz que fala abdica da ilusão de ser sujeito no sentido pleno e se deixa revelar na sua condição de coisa, objeto portanto indiferente a qualquer possibilidade de decisão voluntária9.

Não se poderia evitar a alusão a certo parentesco com o instinto de morte freudiano ("Além do princípio do prazer", 1920/1996): a verificação, no ser humano, de uma pulsão pré-histórica de retorno à matéria inanimada inorgânica anterior ao instinto sexual de ampliar e reproduzir a vida. Trata-se de memória primitiva que remete a seres unicelulares, quando a humanidade estava próxima ainda da forma mineral, e o trajeto da vida terminava na rápida dissolução. Portaríamos, então, um desejo remoto de completo apaziguamento. Regredir a esse estágio seria característico de momentos próximos ao terminal, ou encontráveis nas depressões profundas, quando o sujeito perdeu as forças vitais10.

De certo modo, ressoa nos versos de "Fraga e sombra", de Drummond (Claro enigma, 1951), o sentimento de limiar com o crepúsculo, quando o sujeito lírico, sobre um rochedo, vê a paisagem se desvanecer em "mar ausente e abstrata serra", e recalca "sob o profundo/instinto de existir, outra mais pura/vontade de anular a criatura". Entre o desejo de viver e a inclinação a diluir-se no nada, a suavidade contemplativa convida à meditação sobre a efemeridade da passagem humana11. Mas a consciência de existir, ainda que brevemente, em um intervalo musical, faz diferir a meditação do nosso mais subido viandante noturno do tipo de situação experimentada pela voz lírica em "um toque" e "Escolho", quando não há enlevo algum do sujeito com o mundo - apenas recusa e desânimo.

Os dois poemas focam a consciência possível sob o alheamento extremo, ambos retratando o estranhamento do eu voltado a si mesmo como coisa quando se perderam os laços com o próprio impulso vital. No primeiro, "um toque", a voz lírica quem sabe gostaria de alcançar um possível interlocutor, rodeada que está pela natureza com a qual não pode se relacionar. Ensimesmada, pressente o mundo à sua volta. Paira certo clima de "romantismo da desilusão". Embora o próprio sujeito também se ausente de si (uma vez que não há contato com a alteridade), ao definir-se como "só", e lamentar o seu isolamento, ele se vê como uma forma esvaziada de indivíduo. No segundo poema, "Escolho", a consciência do isolamento em relação a tudo é de tal ordem que não sobraram mais esperanças (ainda que permaneçam as lembranças sinalizadas pelo "longe, tão longe"), a não ser aquele anseio ambivalente, talvez resignado, de deixar de ser um sujeito. Observando a si mesmo como objeto, perde a possibilidade de movimento no espaço e no tempo, reduzido ao "presentismo" (na expressão do historiador François Hartog, 1996), um regime de historicidade em que o futuro e o passado são recompostos para referir-se apenas ao agora.

No capitalismo, quando "o trabalhador tornou-se uma mercadoria", "corpórea e espiritualmente reduzido à máquina", "a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens": "quanto mais o trabalhador se desgasta trabalhando, tanto mais poderoso se torna o mundo objetivo, alheio, que ele cria diante de si, tanto mais pobre se torna ele mesmo, seu mundo interior, tanto menos pertence a si próprio" (Marx, 1844/2008, pp. 24, 26, 80, 81 respectivamente). A desumanização e a não-existência são o quinhão deste homem alienado do processo e do produto de seu trabalho, além de, consequentemente, da relação com os outros homens, concluía ainda Marx: "Em geral, a questão de que o homem está estranhado do seu ser genérico quer dizer que um homem está estranhado do outro, assim como cada um deles [está estranhado] da essência humana" (p. 86).

Mas, comenta Meszaros (1981), quem sabe a sociedade não seja uma "totalidade inerte de alienação", uma vez que pode ser dinâmica: tem-se a esperança de que não produza apenas "consciência alienada" como também "consciência de ser alienado" (p. 162), o que implicaria, supõe-se, necessidade de superação. O próprio sistema em parte produz suas contradições tal como, por exemplo, o incremento da ideia de indivíduo, que se julga soberano (ainda que esta seja uma crença no fundo ilusória), o que poderia conduzir à revolta, sempre latente, contra este regime de exploração (p. 167). Evocamos rapidamente tais reflexões bem conhecidas para ponderar sobre o movimento duplo do eu lírico dos poemas em tela, que sofrem a inevitável reificação tanto quanto, ao nela imergir, parecem denunciá-la12.

Lembramos que os anos noventa correspondem, no Brasil, a um momento de consolidação da democracia neoliberal e de aceleração da economia de mercado. É a era da submissão aos ditames do FMI e das privatizações levadas triunfalmente a cabo pelo governo, quando deixara de existir o horizonte socialista, que ruíra na década anterior. Estes poetas - que haviam testemunhado um momento de desenvolvimentismo e possíveis reformas de base (em meados dos anos cinquenta e início dos sessenta), logo seguido pelo trauma da ditadura, o exílio e a morte de amigos, concomitante ao milagre econômico com posterior endividamento do país (nos anos sessenta e setenta), e depois a retomada "lenta, segura e gradual" do estado de direito, a constituinte e acaloradas discussões à volta dos direitos humanos e da anistia (nos anos oitenta)... enfim, todas essas reviravoltas que exigiram posturas pessoais candentes e que poderiam, quiçá, ter desembocado em superação futura das nossas misérias e desigualdades - talvez tenham se ressentido de fortes decepções, como se essa trajetória tivesse, afinal, resultado em um tipo de estabilidade que correspondesse, no fundo, ao esfarelamento das grandes esperanças de sua geração. Àquela altura, e simultânea à queda do muro (e da crítica ao socialismo real realizada pelo Solidarnosc, por exemplo), não havia mais probabilidade de qualquer guinada transformadora. A crítica ao capitalismo voltava-se, no máximo, para as tentativas cidadãs de inclusão social, com abdicação de um aprofundamento radical, dada a sua completa impossibilidade real e até mesmo imaginária. Mas não pretendemos, a partir destas observações factuais, conduzir a leitura dos poemas a uma única posição, que os comprimiria ou ancoraria em um local reduzido, pois sua condição de literatura permite que firam várias camadas existenciais e históricas. Sem descurar de sua situação encravada em um sentimento de mundo específico, movem-se para frente e para trás, alcançando círculos alargados no tempo e no espaço de nossa condição contemporânea.

Nossa nítida impressão, ao ler "um toque" e "Escolho", é de paródia melancólica, como se os poetas sofressem a percepção muito consciente da dificuldade de continuar a serem sujeitos cuja vontade e decisão contassem nessa realidade estagnada: transfigurados em pedra - matéria por excelência morta. Os poemas reforçam os pressupostos hegeliano-marxistas sobre a alienação aparentemente pelo avesso, uma vez que, como adverte Adorno: "O artista deve transformar a si mesmo em instrumento: tornar-se até mesmo coisa, se não quiser sucumbir à maldição do anacronismo em meio ao mundo reificado" (2003, p. 160)13.

Em "um toque", a voz poética recolhe-se, antevendo o malogro de se integrar ao mundo, e em "Escolho", o sujeito tenteia resistir como pedra no caminho. Poema-topada, último suspiro ou resmungo irônico de desconforto antes da "ansiada" submissão ao reino dos bens descartáveis. A rememoração do que se perdeu ecoa na consciência como fragmentos da experiência que uma vez se viveu, impedindo ainda, malgrado seu, de metamorfosear-se totalmente em coisa.

Entrevê-se, ao lado de um lamento sobre a coisificação do sujeito e de uma afirmação desse alheamento como inelutável, o encolhimento, no mesmo passo, de si e do mundo. No entanto, este sujeito que se autodescreve como mônada solitária não o é no momento mesmo em que expressa no poema o seu isolamento.

Ampliando o universo de exemplos, evocamos Sebastião Uchoa Leite, outro poeta crítico da ilusão de um eu lírico soberano. Seu percurso é especialmente interessante, uma vez que se identificou com o experimentalismo vanguardista e seu rigor depurativo da linguagem, mas este foi por ele ruminado como consciência irônica e destrutiva. Vale a pena transcrever um de seus poemas:

Dentro/fora: Rio de Janeiro

Daqui de dentro
Por trás dos vidros
Vê-se lá fora
A rua pétrea
De pedestres
Ao sol incósmico
Deslizam
Por dentro do vidro
Parecem vir
Do outro lado
Desta mesa
Onde o olho
É outro espelho
Pétreo
1994

(A espreita, 2000).

Também aqui assoma o sujeito-pedra, em meio a pessoas-coisas-imagens, em uma paisagem em que apenas as aparências, vítreas, deslizam, como se olho, sol, vidro, fossem telas ou janelas virtuais, sem espessura ou volume. "Daqui de dentro" e "lá fora" deixam de ser opostos quando a luminosidade do "sol incósmico" equaliza os espaços, como se todos -voz que fala e pedestres - flutuassem no mesmo aquário. A falta de pontuação, o corte brusco dos versos e a sonoridade aliterativa compulsiva acentuam a impressão de espelhamento deslizante entre as partes.

O próprio olho, sinal da alma, foi esvaziado da potência de expressão da interioridade. Sua aparência líquida e brilhante associa-se, no poema, ao vidro, vazio de singularidade, "espelho pétreo" refletindo uma "rua pétrea", de modo contraditoriamente impessoal: "ao movimento adquirido pelo que era pétreo - os pedestres da 'rua pétrea' - corresponde à petrificação do olhar do eu que os via", reflete Luiz Costa Lima (2002), que se deteve sobre este poema, em meio a vários, com vistas à tentativa de compreensão do tipo de eu lírico na obra final de Sebastião Uchoa Leite. Dele observou que "a oposição entre sujeito e objeto se converte em uma transitividade ... intransitiva" (Lima, 2002, p. 234). Conclui então, tendo em vista igualmente outros poemas do livro A espreita:

... a ironia sustenta a consciência, ao mesmo tempo que ri zombeteira de ela se considerar o centro das coisas. A separação entre o eu e o outro por certo não desaparece, mas tampouco permanece intacta, ao impedir que o eu ainda se tenha por centro (p. 236).

Não há propriamente sujeito: tudo se dá como se a voz que enuncia fosse alheia - o olho pétreo espelhado que reflete outros, imagens passageiras, enquanto ele permanece parado, dentro de um espaço visual limitado, de certa forma indiferente a tudo e sem possibilidade de interlocutor. A contraposição entre ele e o mundo apresenta-se de modo diferente neste poema, pois nos dois anteriores havia um sujeito-coisa que se ressentia de sua imobilidade e isolamento mesmo quando parecia renegar tais recaídas. Já aqui tudo parece equalizado na mesma apatia. Nem sequer se poderia atribuir a esta voz um polo subjetivo de testemunha. Aparentemente, anula-se o indivíduo que enfeixava um núcleo anímico que imagina e deseja: passivo, o olho desliza como se houvesse um achatamento da perspectiva a comprimir proximidades e distâncias.

Em outro poema, mais antigo, Rubens Rodrigues também figurava a cristalização mineralizada do olho:

acidente

O olho, vidro,
voou em cacos. O que resta
deste farol, a órbita vazia
é certa fome irônica
e algum câncer prolífico que a ataca.

Já mordes no vazio, minha doença,
debaixo do teu dente a polpa é escassa.

(O vôo circunflexo, 1981, em Novolume, 1997).

Apesar da magnificência dos decassílabos finais (em contraste com o ritmo irregular do começo), e dos sutis ecos aliterativos e assonantes, o poema assemelha-se a um veneno que consome a si mesmo, pois a substância do eu lírico é o ácido que o desfaz. À fome que tenta devorar o vazio corresponde o câncer que desfaz o próprio sujeito, corroído e corroidor. Outro matiz tingia esta voz: a constatação do pouco que resta de si mesma durante o processo de autodestruição.

Estes poemas não são um referendo para a autoanulação - pelo contrário, refletem sobre ela: sofrem e denunciam. De modo aparentemente análogo, mas com ânimo de resistência bastante acentuado, Paul Celan, no poema "Esperança" (1959/1993) imaginou um olho movente "sob a pálpebra de pedra", cavando com os cilios a rocha a que o mundo (e o próprio corpo estranhado) se reduzira. São as "lágrimas não choradas", guardadas nas pestanas, que furam como "o mais fino dos fusos" a dureza extrema. Esta célula do sujeito que sobreviveu, sensível a "um toque", tentava reverter a morte-em-vida.

 

Referências

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Correspondência:
Viviana Bosi
Depto. de Teoria Literária e Literatura Comparada - Letras - FFLCH-USP
Av. Prof. Luciano Gualberto, 403
05508-900 São Paulo, SP
vivianab@usp.br

Recebido em 4.10.2013
Aceito em 19.10.2013

 

 

1 Como iremos nos centrar no problema que ora nos ocupa, destaco-os de seu entorno. Para tanto, retomo e desdobro comentários analíticos que fiz em textos anteriores, sem me deter no exame específico da obra dos poetas, de seu contexto ou fortuna crítica. Desenvolvi comentários mais extensos sobre a poesia de cada um em "Rubens Rodrigues Torres Filho: verso e avesso" (2004), "As faces da musa em Francisco Alvim" (2006) e "As 'idéias-dente' de Sebastião Uchoa Leite" (no prelo) - todos revistos e incorporados à tese de livre-docên-cia Poesia em risco (itinerários a partir dos anos 60) (2011).
2 Quando analisei "Um toque" em sala de aula, o aluno Danilo Andrade Silva Pires observou que no sétimo verso deste poema de treze, lemos: "no centro exato. Limita por dentro".
3 Conforme observou Roberto Schwarz (2002): "as vozes que falam através do poeta não são de ninguém em particular, o que não quer dizer que sejam de todo mundo"... "Anônimas e típicas, nem individualizadas nem universais, elas têm a polivalência do uso corrente, sempre em via de especificação, com encaixe estrutural em nosso processo coletivo, a cujas posições cardeais respondem alternadamente e cujo padrão de desigualdade veiculam".
4 Ou ao amor, acrescentaríamos. A poética de Alvim possui uma vertente do mais puro alumbramento lírico. Em contraponto a "Escolho", poderíamos citar "Água": "Falar de ti/é falar de tudo que passa/no alto dos ven-tos/na luz das acácias/é esquecer os caminhos/apagar o enredo/é pensar as formas do branco/como teu corpo numa praia/branda e azul/Tua pele não retém as horas/escorres, líquida/sonora" (Lago, montanha, 1981). As imagens relacionadas ao amor e à natureza parecem transbordar na poesia como o momento "ingênuo", sensível, opostas à história social, como instâncias separadas, em Alvim.
5 Em sua dissertação de mestrado sobre a obra do poeta, Heitor Ferraz de Mello analisa "Escolho" detidamente (pp. 219-225), dentre muitos outros poemas. Ressalta, em sua obra, a consciência da "reificação como resultado da automatização da vida" (p. 98), como destaca na análise que realiza de "O corredor" (Passatempo, 1974), o qual caminha por si, conduzindo maquinalmente as pessoas que nele passam (p. 98ss).
6 Em The waste land (T.S. Eliot, 1922/2002), a "obrigação" de mover-se, de precisar nascer e crescer (a que nos impulsiona a primavera) é definida como cruel: memória e desejo causam sofrimento. Lá, como aqui, a perda da experiência, vinculada à tradição coletiva de gerações, leva ao encolhimento do sujeito, que corrompeu o objetivo de sua peregrinação e apenas deambula como autômato pela terra estéril.
7 Notara-o Augusto Massi (1999) que "Desde o início, a poesia de Chico estrutura-se a partir de uma tensão entre o mundo exterior e o latejar da experiência íntima. É impressionante a recorrência de imagens espaciais que giram em torno de 'fora' e 'dentro"' (p. 23). Outra observação a destacar do crítico refere-se à relevância do ouvido e das vozes - tão reiterada em Francisco Alvim - em contraste com a dominância do olhar em Sebastião Uchoa Leite.
8 Um dos versos mais emblemáticos de nosso modernismo, reconhecimento de não identidade e de desconforto entre sujeito e mundo. A identificação com as características do ferro, que encontramos em "Confidência do Itabirano", tende a ser uma triste constatação, nesse sentido semelhante aos nossos poemas, nos quais a voz lírica tornada pedra no meio do caminho empaca como algo que emperra o fluxo, seja das correntezas, seja da multidão em trânsito. Heitor Ferraz, ao comentar "Escolho", já se referia a "No meio do caminho" como possível alusão (Mello, 2001, p. 220).
9 Também nos deparamos com afinidades em Beckett (2008), especialmente em textos tardios como O despo-voador (1968-1970), uma antiutopia em que algumas pessoas - na verdade corpos sem identidade - recusam-se a continuar caminhando inutilmente, e param no meio do fluxo atrapalhando o trânsito dos outros: "É curioso notar a presença na pista de um certo número de sedentários sentados ou em pé contra a parede. Praticamente mortos para as escadas e fonte de incômodo tanto para o transporte quanto para a espera eles são no entanto tolerados" (p. 16); e em Mal visto mal dito (1979-1981), no qual uma velha solitária deseja a morte: "Ali está ela portanto como que transformada em pedra diante da noite"... "Como se ela tivesse a infelicidade de ainda estar viva" (pp. 37-38), "Se ao menos ela pudesse ser somente sombra" (p. 44), "Paralisada fiel a si mesma parece transformada em pedra" (p. 49).
10 O complexo estudo de Maria Rita Kehl (2009) sobre o aumento da depressão hoje contrasta a demanda por produtividade no capitalismo atual e o abatimento dos depressivos, que "sofrem de um sentimento do tempo estagnado" (p. 17), pois, ao desistirem de ser sujeitos desejantes, não mantêm "nenhuma representação esperançosa do devir" (p. 58), tendo perdido o sentido de duração da experiência. Pelo contrário, são tomados por uma "indolência fatalista ante um mundo vazio e a reificação das relações humanas" (p. 87). Conclui, por fim: "A depressão, do ponto de vista da vida social, expressaria a desvalorização da vida que interroga seu sentido diante do espelho, em que não existe nem passado, nem futuro, nem alteridade - e se depreende a inutilidade de realizar qualquer ação" (p. 297).
11 Ivone Daré Rabello analisa, em aula, este soneto de Drummond, ressaltando o contraste entre fraga e sombra, luz e crepúsculo, música e silêncio, e afinal, vida e morte, que se equilibram por meio da sonoridade e da figuração no poema.
12 Em nosso tempo, a indústria de entretenimento vem criando objetos de distração tão completos que evocam o "almejado" esvaziamento da consciência testemunhado pelo poema de Francisco Alvim. Em uma propaganda de televisão atual, presenciamos a seguinte estorieta: um rapaz entra em um vagão de metrô no qual se sente deslocado por ser o único que não possui um determinado celular que os outros passageiros seguram, obedecendo todos a um ritmo comandado pela pequena máquina, que simula jogos diversos. Assim, cada feliz portador de um destes aparelhos está alheio ao ambiente do trem, participando de uma competição individual com o seu celular, e fazendo movimentos enigmáticos para o recém-chegado, como se fossem estranhos autistas controlados por um ritmo invisível. A cena se repete na rua, onde outros jovens se mexem de modo incompreensível para ele, enquanto olham fixamente para seus celulares. Finalmente, alguém lhe atira um celular igual ao que os outros possuem, e então nosso herói passa a fazer parte da confraria de zumbis. Os espectadores da propaganda podem compartilhar de sua alegria ao também vê-lo jogar, como os outros, em uma quadra de tênis ou em uma mesa de bilhar virtuais que aparecem na telinha do aparelho. Não há, evidentemente, angústia alguma nesta abdicação da autoconsciência e mesmo de toda alteridade à sua volta em prol da distração contínua - à semelhança da horrível utopia de Huxley, em Brave new world (1932) em que a tv é onipresente até mesmo no momento da morte, quando uma paciente terminal se distrai vendo um campeonato esportivo em uma tela ligada ininterruptamente na frente de sua cama no hospital. A escolha do jovem protagonista da propaganda pela anulação de sua diferença e pela integração total ao controle maquinal é um abandonar-se contente.
13 O filósofo referia-se, no ensaio "O artista como representante" (1953), à paradoxal despersonalização do eu lírico propugnada por Valéry, quando este sugeria uma sublimação do sujeito em nome de uma superação da individuação imediatista e possivelmente alienada na sua falsa partição em relação ao todo humano. Porém, o contexto utópico ali proposto era a possível redenção do homem como ser completo quando, mergulhando na especificidade da linguagem poética de forma obstinada, atingisse um fundo universal, no qual as barreiras de classe e de divisão de trabalho fossem canceladas pela sua expressão como representante da humanidade libertada (Adorno, 2003).

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