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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.47 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2013

 

ARTIGOS

 

A sombra do objeto caiu sobre o analista

 

The shadow of the object fell upon the analyst

 

La sombra del objeto cayó sobre el analista

 

 

Dora Tognolli

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

Este texto pretende colocar em cena o tema da melancolia, valendo-se de uma análise que desemboca em um impasse e é interrompida. A obra de Freud - desde o trabalho do Narcisismo, passando por Luto e melancolia e O ego e o id - é tomada como ponto de partida para pensar a clínica. Discutem-se também estratégias de trabalho diante da melancolia e os desafios subjacentes à construção e criação de narrativas que introduzam o tempo e a história na vida do sujeito.

Palavras-chave: sombra; objeto; melancolia; narcisismo; pulsão de morte.


ABSTRACT

This work aims to bring the theme of melancholy into evidence, starting from an analysis that leads to a stalemate and is interrupted. Freud's texts, from the work of Narcissism, followed by Mourning and Melancholy and the Ego and the Id, are considered a starting point for reflecting upon the clinical practice. Also discussed are work strategies with regards to melancholy and the underlying challenges of the construction and creation of narratives that introduce time and history in the individual's life.

Keywords: shadow; object; melancholy; narcissism; death drive.


RESUMEN

El trabajo se propone poner en escena el tema de la melancolía, a partir de un análisis que llega a un dilema y es interrumpido. Los textos de Freud, a partir del trabajo del Narcisismo, pasando por Duelo y Melancolía y el Ego y el Id, son tomados como punto de partida para pensar la clínica. También se discuten estrategias de trabajo frente a la melancolía y los desafíos subyacentes a la construcción y creación de narrativas que introduzcan el tiempo y la historia en la vida del sujeto.

Palabras clave: sombra; objeto; melancolía; narcisismo; pulsión de muerte.


 

 

Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa
(Marx, 1852/1978, p. 329).

O texto freudiano costuma nos convidar a visitas frequentes: textos lidos são relidos; novas frases são repensadas; outros sentidos se delineiam, e a cada desafio na clínica temos muito a ouvir consultando a obra de Freud. Diante de situação clínica que provocou inúmeros questionamentos, recorro ao trabalho Luto e melancolia e transcrevo importante trecho, que utilizarei para pensá-la:

Assim, a sombra do objeto caiu sobre o Eu, e a partir de então este pode ser julgado por uma instância especial como um objeto, o objeto abandonado. Desse modo, a perda do objeto se transformou numa perda do Eu, e o conflito entre o Eu e a pessoa amada, numa cisão entre a crítica do Eu e o Eu modificado pela identificação (Freud, 1917/2011, p. 181).

Este pequeno parágrafo contém um grande desafio metapsicológico e clínico, de difícil operacionalização. É comum sua lembrança condensada por meio da frase A sombra do objeto caiu sobre o Eu (ou Ego, como aparece nas traduções mais usuais) - alusão à melancolia, e que nos aproxima de uma dinâmica particular de certos pacientes que nos procuram.

Tomo a frase como ponto de partida e destaco dois conceitos que ela abriga: sombra e objeto.

Que associações a palavra sombra encerra? Inúmeras. A sombra que buscamos na natureza costuma nos acolher e é bem-vinda. Propõe proteção diante de agentes que saturam nosso corpo e causam desprazer. A sombra de uma árvore frondosa. De um guarda-sol na praia tropical. De uma marquise de um prédio, que nos protege do sol intenso ou da chuva inesperada.

Há um lado incômodo - sinistro até - associado à sombra: quando um objeto atrapalha a imagem de outro, invadindo seu campo visual e dificultando a apreensão de sua forma. Ou, quando construídos de forma invasiva, prédios roubam o sol de praias e interferem em sua configuração original. Também existe a palavra sombrio, carregada de estranhamento, que nos mete medo.

Não podemos nos esquecer de outros derivados de sombra: assombração ou assombrado - que usamos para falar de personagens e lugares que nos levam aos medos infantis, das histórias de terror. Uma sombra sem objeto pode ser um fantasma - e não sabemos como lidar com os fantasmas, mesmo porque não temos dimensão racional de seu poder. Uma sombra e um objeto também podem estar amalgamados, a ponto de não conseguirmos distinguir onde começa um e onde termina outro.

Encaminhar este tema para a história da arte implica lembrar que o Renascimento inaugura uma nova forma de representar o mundo. Na Arte Medieval, os espaços eram hierarquizados; havia nítida separação entre o divino e o humano; o espaço celeste era representado de forma especial até nas cores - o azul do céu sagrado não era o equivalente do azul da natureza, onde habitavam os homens após sua expulsão do paraíso; o dourado (que não era pigmento, e sim folhas de ouro) era reservado tão somente para demarcar o céu sagrado e as auréolas dos santos e figuras divinas. O Renascimento traz para a cena a verossimilhança: os homens se aproximam dos deuses, o espaço passa a incluir uma dimensão racional, a partir das proporções. As linhas do horizonte que a perspectiva introduz sugerem um espaço que se abre ao infinito, no qual estão incluídos o homem e a natureza.

Em Giotto, pré-renascentista, mas que muito influenciou o Renascimento, assistimos à dessacralização até dos sentimentos religiosos, trazidos para a esfera pública. Em seus afrescos, os anjos sofrem visivelmente a morte de Jesus. Suas figuras introduzem o claro-escuro, volumes, uma nova espacialidade, ainda que anterior à perspectiva. Suas figuras têm volume, massa, profundidade: são verdadeiros objetos. Estamos próximos ao Iluminismo, quando o sujeito ganha um novo estatuto, do qual somos herdeiros.

Qual a sensação diante de um quadro medieval? Algo diáfano, a sobrepairar, desprovido da forma humana, tal qual a percebemos? E qual nossa percepção diante dos afrescos de Giotto, que prenunciam Leonardo da Vinci? Além da estrutura plástica de sua produção, introduzem-se nesses afrescos as sombras, os contrastes, o mundo sensível tão caro aos gregos, que sucumbira às trevas da Idade Média.

Chegamos a Leonardo da Vinci: um exemplo ilustra nossa questão. O trabalho "Anunciação", no qual as figuras da Virgem e do Anjo não se tocam: apenas esboçam um movimento que sugere tensão. O movimento sugerido pelas mãos - a mão esquerda de Nossa Senhora que recua, e a mão direita do Anjo que avança - fala-nos de uma relação entre dois personagens, muito mais do que de cada um em particular. É dessa relação que se trata, e que podemos tomar como ponto de partida para falar de transferência, relação, objeto, sombra.

O tema da sombra nos coloca a questão: que espaço o paciente que nos procura habita? Que lugares somos convidados a visitar, diante de cada primeira entrevista e de cada processo analítico que acompanhamos? Espaços de trevas? De luz? De sombras? Inabitados? Compartilhados com objetos bizarros? São inúmeros esses espaços, como quadros e afrescos de várias épocas - uns mais harmônicos e acolhedores; outros nem tanto.

E o conceito de objeto? Dentro da psicanálise, o termo deslizou para vários sentidos, a partir da obra de Freud; com Melanie Klein e os pós-kleinianos, o conceito de objeto se complexifica. Mesmo porque, de certa forma, falar em objeto, do ponto de vista psicanalítico, é como falar de relação objetal: falamos de um objeto investido, ou catexizado. É como se o objeto não fosse um fato, mas sempre uma versão. Neste texto, o foco será o objeto do ponto de vista de certos pacientes, marcados por uma atmosfera melancólica.

Apenas para introduzir mais algumas questões que o conceito de objeto levanta, recorro a Bollas (1987/1992), que recoloca perguntas que Paula Heimann considerava fundamentais para pensar a prática psicanalítica: quem está falando? Com quem está falando? Sobre o que está falando? E por que agora? Essas mesmas questões também podem ser negativadas - por exemplo: quem não está falando? Sobre o que não fala? A quem não fala? Para cada paciente, e para o mesmo paciente, em diferentes momentos, podemos fazer uso dessa estratégia. E seria interessante incluir, como sujeito da frase, o analista.

Para ilustrar essas questões, recorro a algumas experiências clínicas recentes.

Deixei... | Deixei ... | Deixei um recado... | Deixei um recado em sua caixa postal. Você pode retornar? Gostaria de conversar com você...

Exatamente este foi o meu último e entrecortado contato com a paciente que atendi durante quase três anos - e que abandonou a análise sem comunicação, sem aviso prévio e com uma dívida acumulada de três meses. É inevitável ficarmos insensíveis a impasses desse tipo.

O intertítulo corresponde às três tentativas de mensagens de texto que enviei. Três em razão da minha inabilidade no manejo de um novo celular: eu iniciava o texto e, sem querer, o enviava inconcluso. Após finalizá-lo, ainda me surpreendo e penso em que estado eu me encontrava. O texto revela problemas de comunicação: alguém (eu) falando para ninguém, já que não obtive nenhuma resposta; eco; súplica; quase rendição.

Escrever o presente trabalho não deixa de ser uma forma de elaborar certas sombras, que sempre herdamos dos objetos que nos circundam: quer externos, quer internos. E reflete um momento que justifica a escolha do seu título: a sombra do objeto caiu sobre o analista.

Diante do impasse - e até para não ficarmos estacionados nele -, faço aqui um breve resumo desse atendimento. Meu objetivo é pinçar alguns elementos mais presentes na memória.

A paciente busca análise em uma fase de total apatia. Casada, empregada, cumprindo uma rotina aparentemente normal, surge no consultório como uma espécie de zumbi. Sua demanda é particular: reconhece racionalmente uma depressão, mas não a sente. Identificara o quadro a partir de uma exposição médica, que assistira em seu trabalho, sobre pacientes depressivos e tivera um insight de que a exposição era um retrato dela, sobretudo por sua falta de motivação em todas as esferas da vida.

No momento em que me procura, as atividades prazerosas que a rodeiam resumiam-se em comer - e comer muito (o que a deixa acima do peso); assistir TV até altas horas; e cuidar de seu cachorro.

Desde o início, a angústia ficou comigo, a partir de uma operação osmótica: conto a você algo estranho, você se implica e eu volto para casa. Você é o continente no qual eu transbordo fragmentos. O nome dessa operação pode ser identificação projetiva. A operação transcorre em céu de brigadeiro, com muita calma e delicadeza aparentes.

Nossos encontros acontecem três vezes por semana, interrompidos apenas por férias minhas e dela, em períodos não coincidentes. As férias dela dão-se invariavelmente na Disney - quando retorna, faz relatos completos de brinquedos, brincadeiras, diversões (outra fonte de prazer).

Durante três anos, surge a novela familiar: uma mãe rigorosa, que controlou muito sua vida durante a adolescência e a fez terminar com o namorado de quem muito gostava, ao descobrir que eles tinham vida sexual; uma irmã que morreu jovem, de um câncer fulminante (cujo quarto não foi desmanchado até hoje), que a família celebra mensalmente, fazendo visitas ao crematório e à árvore onde suas cinzas foram esparzidas; um pai bonzinho, compreensivo, que quase não aparece; um marido idem.

Aos poucos, ocorre um colapso na vida externa da paciente: perda do emprego de mais de dez anos, doenças familiares, mais apatia e tédio. A análise - uma espécie de suporte para sua vida tão vazia - continua.

As buscas por um novo emprego se iniciam. Acompanhamos muitos fracassos, muitas ofertas indecentes (de remuneração e tipo de trabalho). Durante esse percurso, passa a surgir certa preocupação com sua vaidade, e o corpo entra em cena. A paciente esforça-se para frequentar uma academia, comer de forma mais natural, caminhar diariamente. Também há uma preocupação em se atualizar, em reciclar os idiomas que aprendeu e que estavam adormecidos. Investimentos se dão: análise, cursos de francês e espanhol, personal trainer.

Após inúmeras tentativas, finalmente surge um trabalho, que exige um processo de seleção rigoroso, feito a partir de outro país. A paciente enfrenta as etapas da seleção e finalmente é a escolhida para a vaga. Bingo!

Como analista, até esse momento, eu estava gratificada. Considerava que nós duas formávamos uma dupla, e que de certa forma ela conseguira sair de um ambiente quase morto para um espaço vivo. Sua aprovação no trabalho era um aval para essa conclusão. Até que, duas semanas após sua admissão no novo trabalho, quando estávamos em busca de novos horários diante de sua nova rotina, ela me demitiu: fui ejetada.

Faltas constantes, que no início preferi aguardar; nenhuma comunicação. Considerava que ela estava em análise, ela não: parou, sumiu. Nenhuma ligação foi atendida, e o recado em quatro ondas, deixado por mim em seu celular, foi para o espaço.

Bem, como podemos pensar essa situação? Chegamos ao limite? O que se rompeu?

O que temos de concreto: uma ruptura brusca e um ataque. Forças, diríamos, que foram agenciadas por alguém tão vítima dos corpos sedutores de mulheres bonitas, que não o seu; de mães cruéis; de mortes precoces. E houve uma reversão: quem sempre foi demitida e excluída, demite e exclui. Quem sempre pagou direitinho, envergonhada e humilhada, agora deve.

Tendo em vista a estrutura melancólica que se apresentava, estamos diante da crueldade e do ataque voltado ao objeto externo, diante da possibilidade do confronto - agora sim - entre dois objetos. Se na sala de análise, durante quase três anos, conviveram um vivo e um quase vivo quase morto, não seria temeroso dois vivos? A sala conteria dois objetos?

Tal experiência provoca um abalo na certeza sensível que pairava sobre minhas conclusões. O próprio sentido da melancolia, associado inicialmente à paciente, assim que a recebo, sofre uma transformação: a pergunta de quem se tratava, quem era a paciente (?) é recolocada - de que se trata agora? Sou quase testemunha de algo que não existe mais, e só se conserva na memória daquilo que foi.

Relendo o texto de Freud, Luto e melancolia (1917/2011), depois que a paciente sai de cena e abandona o tratamento, detenho-me nos trechos em que é dado destaque ao fato de os pacientes melancólicos não se envergonharem de se queixar e de se satisfazerem ao se desnudar. O corpo grotesco, as roupas bizarras - que a paciente usava e ostentava com certo despudor - chamavam a minha atenção. Ao contrário de certas histéricas, que seduzem ao mostrar uma beleza ainda que vazia e insustentável, minha paciente gostava de ostentar certa bizarrice e descuido, uma queixa estampada no corpo sobre maus-tratos sofridos.

A breve menção aos espaços hierarquizados, típicos da arte medieval, alude a objetos idealizados e sagrados, marcados por altas doses de ambivalência. Associo esse momento com o momento de chegada da paciente: estado de terror e apatia. O descongelamento, a ligação, Eros, assustam; propõem um embate diante de objetos mais próximos de nós, que foram investidos e atacados sem nos darmos conta.

Em O ego e o id, há inúmeras considerações sobre a relação entre o ego e o superego:

... o Ego se constitui, em boa parte, de identificações que tomam o lugar de investimentos abandonados pelo Id ... as primeiras dessas identificações agem regularmente como instância especial dentro do Ego, confrontado este como Superego, enquanto mais tarde o Ego fortalecido pode se comportar de modo mais resistente às influências dessas identificações. O Superego deve a sua especial posição no Ego ou ante o Ego a um fator que deverá ser estimado a partir de dois lados: é a primeira identificação, acontecida quando o Ego era ainda fraco, e é o herdeiro do complexo de Édipo, ou seja, introduziu no Ego os mais imponentes objetos ... Embora acessível a todas as influências posteriores, conserva por toda a vida o caráter que lhe foi dado por sua origem no complexo paterno, ou seja, a capacidade de confrontar o Ego e dominá-lo. É o monumento que recorda a anterior fraqueza e dependência do Ego, e que mantém seu predomínio sobre o Ego maduro. Assim como a criança era compelida a obedecer aos pais, o Ego submete-se ao imperativo categórico do Superego1 (Freud, 1923/2011, p. 60).

Freud dá destaque especial à submissão do ego ao superego nos quadros de melancolia: o ego não ousa reclamar, submete-se aos castigos, sem bem saber por que, em nome do amor que espera. Dentro de cada indivíduo trava-se uma batalha por sobrevivência e amor. Em certos casos, o preço cobrado pela instância crítica e moral é enorme - pode ser a própria vida.

A melancolia é marcada pela relação narcísica com um objeto frustrante, que desperta extrema ambivalência. Cabe a pergunta: de que objeto se trata? Do ego? De objetos externos significativos, revestidos de partes do ego, que retornam, sombreiam e apavoram, dificultando qualquer possibilidade de separação ou autonomia? Ou de ambos? Ou estamos falando da identificação precoce do ego com um objeto perdido, nunca conquistado, mais espectro que objeto? E cabe a pergunta que Freud já se fazia: afinal, o que se perdeu?

A melancolia tem por conteúdo algo mais do que o luto normal. Nela, a relação com o objeto não é nada simples e se complica pelo conflito de ambivalência ... Na melancolia se tramam, portanto, em torno do objeto inúmeras batalhas isoladas, nas quais ódio e amor combatem entre si: um para desligar a libido do objeto, outro para defender contra o ataque essa posição da libido (Freud, 1917/2011, p. 81).

Será que essas são questões contemporâneas, ou que começaram a ser postas na mesa quando Freud se deu conta dos fracassos, das repetições constantes, da reação terapêutica negativa, como protesto a conquistas da dupla analítica? E que desembocaram na teorização sobre a pulsão de morte, próxima do superego precoce e assassino, presente no mundo interno.

O livro de Rosenfeld, Impasse e interpretação (1987/1988), oferece inúmeros exemplos clínicos que desembocam em impasses, ameaçando a clínica e a fé nos tratamentos. Nele, são retratados pacientes esquizofrênicos, borderlines, que nos colocam desafios até hoje.

Em O ego e o id, na estrutura psíquica perspectivada por Freud - em especial as fraturas do ego, seu mergulho no inconsciente e o pensamento sobre o superego -, temos mais subsídios para pensar a clínica dos impasses e das repetições.

É interessante acompanharmos o desdobramento dessas ideias em autores que vivemos repetindo.

Em Freud, o superego que representa a instância paterna, com prerrogativas de castração e expiação pelo mero fato de existirmos, que nos convoca ao parricídio, morte do pai simbólica.

Em Melanie Klein, o reconhecimento do caráter precoce dessa instância dirigida para o objeto seio-mãe, a função materna atacada por inveja, que nos convoca ao matricídio. Para Melanie Klein, o seio da mãe forma a base do superego: um objeto, ainda que parcial, que suporta fantasias intensas, precoces, de difícil assimilação. É essa inveja que inibe a capacidade de amar, de estabelecer ligações criativas. Submetidos a ela, alguns pacientes vivem como mortos-vivos, como zumbis.

Nessa linha de pensamento, cabe ainda mencionar Bion (1967/1994), que percorre o caminho das relações objetais agora na direção do analista, discorrendo sobre os ataques ao vínculo, que dificultam o pensar ou simbolizar, revelando camadas psicóticas presentes no paciente e no analista.

Não podemos esquecer que, além do impasse, no dizer de Rosenfeld, há movimento: no sonho, na loucura e nas rupturas. Inclusive o movimento articulado pela pulsão de morte, inexorável.

O abandono da posição narcísica tem como consequência inevitável o aparecimento em cena de impulsos destrutivos, dirigidos às relações eróticas, por reforçarem a ideia intolerável da dependência do objeto. O narcisismo destrutivo ou de morte, como postula Green (1988), tem como meta manter a idealização e o poder destrutivo do self, alimentado por um superego implacável. Estamos diante de uma das expressões da pulsão de morte: território da transferência negativa e do boicote a esforços de separação ego/objeto, que associo à interrupção brusca da análise, aqui relatada.

Podemos pensar em relações objetais da infância, encenadas, que se atualizam na transferência. Relações objetais narcísicas: ora o paciente está dentro do analista, ora o analista está dentro do paciente; muita confusão. Parte integrante dessas relações são as identificações projetivas intensas: partes boas ou más são projetadas em objetos externos, com os quais o paciente se identifica.

A identificação projetiva é um modus operandi: é assim que todos funcionamos. Dentro de um processo analítico, pode ter a função de comunicação: dá notícias do que se passa no mundo interno do paciente, inacessível a ele; em excesso, pode funcionar como transbordamento, uma via direta para descarga ou evacuação, que encontra alojamento no outro e promove alívio das angústias primitivas.

Trata-se de um mecanismo básico: a projeção do que não suportamos, do que nos causa mal-estar. Com a continência do analista, e com a interferência de um tempo, um segundo tempo experimentado na cena analítica, a aposta é que esses elementos ejetados possam ser pensados e transformados em experiências psíquicas, que expandirão o espaço mental. Quando o processo analítico permite, nossa função é a de traduzir experiências em palavras. Quando não vai tão bem, o paciente passa a nos ver como o mal radical: ficamos contaminados pelas substâncias bizarras e incômodas das quais fomos revestidos. Continente confunde-se com conteúdo.

Palavras e conteúdos podem ser vivenciados pelo paciente como objetos concretos e não simbólicos, o que Bion denominou de elementos beta, espécies refratárias a investimentos e transformações. Perturba-se e confunde-se a diferenciação self /objeto, que se transformam em um amálgama do mal. A identificação projetiva que, aquém da comunicação, se encarrega de evacuar e negar a realidade, quase que uma recusa à vida, ao mundo.

Estamos diante da armadilha do excesso de identificações projetivas, que enreda analista e paciente; diante também da vida dentro do objeto delirante, que enganosamente nos liberta de sofrimento e dor, mas nos escraviza. Troca-se dor mental por paralisia e alienação; morte em vida. Fortes sombras são lançadas sobre a vida (vida?) do paciente. O analista transforma-se no superego frio e implacável. Em consequência, o paciente teme ficar preso dentro do analista, que passa a representar o mal. Operação de risco, que pode resultar em um impasse.

Diversos relatos clínicos trazem a figura da repetição, até que, quem sabe, o ego possa se fortalecer - para isso, terá que enfrentar o movimento da separação, da dor.

Na clínica, estamos diante de sentimentos e percepções inacessíveis ao paciente, refratários à palavra e à interpretação.

A continência, o acolhimento e a compreensão do analista fatalmente o colocam dentro da paralisia reinante no mundo interno do paciente. Será que, como em uma vacina, experimentamos pequenas doses do mal para nos fortalecermos? Talvez sim, mas certa confusão nos habita, uma atmosfera primitiva, hipnótica, caótica.

Tais situações convocam nossas camadas psicóticas, confusas e inacessíveis, dotadas de destrutividade e que recusam ligações. Segundo Bion:

... os processos de cisão se estendem aos elos de ligação no interior dos próprios processos de pensamento. Todos esses elos são agora atacados, até que finalmente fica impraticável juntar dois objetos, de modo que, não obstante conservarem, intactas, as respectivas qualidades intrínsecas, cada um possa, ainda assim, gerar um novo objeto mental, através de sua conjugação com o outro. Consequentemente, a formação de símbolo, cujo efeito terapêutico depende de unir dois objetos para que fique patente sua semelhança, e no entanto se conserve a diferença entre eles, agora se torna difícil (Bion, 1967/1994, p. 63).

 

Quase um impasse

Outra paciente, acometida por um tédio excessivo, desmotivada diante de questões vitais, cumprindo apenas obrigações sem prazer, pode ilustrar o tema. Estamos no terceiro retorno à análise. Na primeira tentativa, ela ficara um ano a expor apenas uma vida sem sentido, burocrática, funcional, sem emoções. A única emoção eram as surras que ela aplicava em sua filha menor, aparentemente sem motivo, que revelavam uma violência que a assaltava e cuja origem era um enigma.

Na segunda tentativa, quase um ano após a interrupção, a demanda partira de seu marido, que também se submetia a sessões de psicanálise e que colocava como último recurso a consulta a um analista, antes de precipitar uma eventual separação do casal.

Essa segunda temporada dura mais um ano. É interrompida por questões de ordem econômica, quando a paciente decreta que, quanto menos depender do marido, melhor. Fazer análise e contar com os recursos dele, já que ela é uma dona de casa, é dar um passo para frente e dois para trás. Nessa temporada, o casal se encontrava praticamente separado, uma vez que ela passara a dormir em outro quarto e se recusava a fazer qualquer programa que envolvesse apenas os dois. Nova interrupção da análise.

Um ano depois, outro retorno: ela chega deprimida, triste, trazendo muito choro. Antes de retornar, consultara um psiquiatra que a medicara e indicara a análise. Pela primeira vez, aceita meus honorários, sem questioná-los, e pede também recibos de reembolso, nos quais há discriminação de seu quadro, com base no CID-10.

Estamos diante de outra análise? De outra paciente? Sim e não. Outros ângulos são revelados. Há muita dor, mais afeto, mais disponibilidade para conversa no sentido de troca. Talvez sejam repetições e repetições: mas a cada repetição, temos chance de tocar em outras camadas. A frase que abre o trabalho - em que se lê que a história se repete: primeiro como tragédia, depois como farsa - nos serve, mas igualmente não nos serve. Nossa história psíquica pode ser uma tragédia, do ponto de vista da psicanálise, pois estamos todos submetidos à pulsão e aos desígnios do inconsciente: somos trágicos. Mas não só. Não acreditamos em destino e, sim, em destinos, o que já nos retira da tragédia no sentido aprisionante.

O superego implacável e primitivo revela um lado trágico, sem saída, uma espécie de destino de Sísifo. No caso dessa paciente, nessa recente retomada da análise, surgem histórias sobre a família de origem que dão uma ideia de seu sofrimento: filha caçula de uma família pobre, mãe esquizofrênica, pai alcoolista - sobreviveu. Mas quase não virou gente. Mais parecia uma escrava da família, destinada a cumprir um destino trágico: casar, procriar, ser honesta e organizada. Mania de limpeza, quase obsessiva.

O rastro bizarro, no primeiro ano de análise, localizava-se nas surras infligidas à filha de cinco anos. Em quem batia? Quem precisava matar? Uma menininha, que acusava que tudo iria recomeçar e teria ela que assistir a mais uma história infeliz. Notícias de uma agressividade imensa, em busca de um objeto frágil para descarregar.

Há pouco tempo, após as férias de janeiro, ela retorna para as sessões e traz dois relatos. Um deles, bastante animado, diz respeito às férias de última hora, que ela resolvera organizar. Planejou uma viagem curta, gostosa, econômica. Foi assim: abriu a internet e passeou por vários destinos - até que um deles se iluminou. Foi um acerto, já que a família toda aproveitou. Depois de mais de vinte anos de casamento, foi a primeira vez que tomou uma decisão que envolvia todo o grupo familiar.

Minha atenção voltou-se para o processo de escolha da viagem: pensei em livre associação, quando nossa cabeça pode voar e sonhar, até encontrar uma ligação que faça sentido e ganhe corpo. Parece muito simples, mas inédito para uma paciente tão presa a esquemas em busca de garantias. A descrição da escolha da viagem evoca em mim um funcionamento mais onírico acessível à paciente. Ao mesmo tempo, me dou conta que ela nunca havia me contado sequer um sonho: não sei se não sonha, ou se não dá lugar a esse tipo de relato. Comento com ela essas minhas divagações e ela admite não se lembrar de sonhos e também não saber se sonha: só que é acordada muitas vezes por pensamentos de terror, ligados à sua morte ou de pessoas conhecidas. Mas não os considera sonhos.

O segundo relato tem a ver com a doença de sua mãe, um quadro degenerativo que a deixa muito sem saída. Diante da piora da mãe, da perda de suas capacidades, ela pensou: puxa, e se ela morresse? Uma confissão: desejo que a minha mãe morra.

Minha reação foi tão tranquila que ela se surpreendeu, mas deu lugar a pensamentos insuportáveis e violentos que desejaria abortar. A conversa foi adiante; seu marido viajou a trabalho e ela foi assaltada por pensamentos mórbidos: avião em queda, ela viúva, morte de marido jovem. Não conseguiu dormir e foi tomada por uma dúvida: se aquela filhinha, em quem ela tanto batera, sabia de seu amor por ela. Ela não poderia morrer sem ter a certeza de que sua filha soubesse desse amor. Imediatamente, escrevera um bilhete (Eu te amo muito, mamãe) e o colocara debaixo da porta do quarto da filha.

Confesso que esse relato da paciente me deixou bastante emocionada, uma vez que me possibilitou acompanhar um movimento inusitado, no qual ela pôde se defrontar com questões do desamparo, da morte, do amor, do narcisismo, de um modo todo seu. Aos poucos, uma pessoa pragmática, fria, incapaz de transmitir afeto, começa a se descongelar e revelar vivências profundas, que traziam à tona a família de origem e a família atual.

Algumas situações clínicas nos aproximam do paradoxo da melancolia: luto sem perda; perda sem objeto; tristeza sem alma; hostilidade à morte e à vida. Manter o estranhamento e a suspensão do tempo veloz que a vida cotidiana nos propõe pode ser uma chave, mas nada garante.

Com o espaço, a partir das narrativas, abre-se o tempo. Viagens no espaço, que a associação livre propõe, são viagens no tempo, na memória, mas que não garantem a chegada. O negativo da vida psíquica, que a melancolia revela - como tão bem Freud mostrou -, opõe extrema resistência à intervenção. O tédio pode se instalar e dominar analista e paciente. Cabe o desafio, como o próprio Freud diz, textualmente, de conversar com esse demônio, já que o invocamos.

Para forjar a marca da cultura, dependemos de um outro, sempre: na infância e na doença do tédio. No trânsito entre o falante e ouvinte, em papéis que se alternam, há uma chance de sairmos do vazio, introduzindo tempo e espaço. Nesse sentido, o papel da análise é trazer para a sala a figura da melancolia no que ela tem de transgressão.

 

Concluindo

Depois de passear pela clínica e por alguns conceitos que considero fundamentais, pensei no modelo do bloco mágico. Ao lado de todas as associações que o dispositivo pode evocar, destaco uma em especial: o sistema de inscrições e de apagamentos, que nunca se apagam totalmente, mas se deslocam para dar espaço a outros, novos, talvez mais criativos. O modelo do bloco mágico pode representar a memória do analista, seu arquivo mental. Certas vezes, experiências traumáticas, impasses, costumam deixar marcas mais profundas, que ocupam muito nosso arquivo. O primeiro caso que descrevi, por exemplo, ocupou muito meus pensamentos. Talvez porque tenha tocado em áreas do narcisismo que acomete os psicanalistas e que pode nos cegar. Para satisfazer nosso superego, não podemos falhar.

Um bloco mágico inoperante não teria o sistema de transposição das memórias e ficaria indisponível para novas inscrições: não ofereceria espaço (liberdade) para novas impressões (Naidin, 2012). Ao transportar para um texto e tentar arejar com pensamentos a experiência na clínica da qual sou testemunha, a tentativa é fazer o bloco funcionar com todas as camadas que ele possui: o arquivo permanente, nosso acervo; o espaço para novas inscrições; e a folha protetora, fronteira entre o acervo e o que virá.

Assim, podemos viver o impasse, reconhecê-lo, mas não ficarmos aprisionados nele, como acontece quando predomina um superego totalizante, dono da verdade, cheio de razões.

Retorno ao título do artigo: a sombra do objeto caiu sobre o analista. Sim. Afinal, somos feitos de todos os restos de experiências das quais participamos. Se as sombras encontrarem superfícies abertas, com espaço para novas inscrições, poderão deixar suas marcas e dar lugar a novos objetos e a novas sombras.

 

Referências

Bion, W. R. (1994). Estudos psicanalíticos revisados (W. M. de M. Dantas, trad., 3ª ed.) Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1967. Título original: Second thoughts).         [ Links ]

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Correspondência:
Dora Tognolli
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Recebido em 20.2.2013
Aceito em 5.7.2013

 

 

1 Tomo a liberdade de modificar a tradução de Paulo César de Souza, das Obras completas, da Companhia das Letras: adoto Ego e Superego em substituição a Eu e Super-eu.

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