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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.1 São Paulo jan./abr. 2014

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: MUTAÇÕES E PERPLEXIDADE

 

A transmissão institucionalizada da psicanálise no início do século XXI: ensaio a partir da experiência

 

The institutionalized transmission of psychoanalysis in the beginning of the 21st century: essay based on experience

 

La transmisión institucionalizada del psicoanálisis en los comienzos del siglo XXI: ensayo a partir de la experiencia

 

 

Javier GarcíaI; Tradução Fernanda Sofio

IPsicanalista, médico e psiquiatra. Membro titular da Associação Psicanalítica do Uruguai (APU)

Correspondência

 

 


RESUMO

Como preservar o fundamental da transmissão da psicanálise das resistências institucionais e culturais contemporâneas e como adequar-se aos novos formatos das demandas de formação sem perder o essencial que recebemos das primeiras gerações de analistas? Neste ensaio, o autor busca formular algumas respostas a esta questão a partir da sua experiência. A razão da pergunta que dá lugar ao ensaio gira em torno do desafio dos institutos de psicanálise e da formação de analistas na atualidade.

Palavras-chave: formação analítica; análise didática; pluralismo; modelos de formação; plano de estudo.


ABSTRACT

How to preserve the essential of the transmission of psychoanalysis from current institutional and cultural forms of resistance and how to adapt to the new formats of demands in education without losing the essence of what we received from the first generations of analysts? In this essay, the author seeks to offer some answers to this question from his experience. The reason for the question from which the essay stems revolves around the challenge of psychoanalytic institutes and around the current education of analysts.

Keywords: Analytic education; didactical analysis; pluralism; educational models; study plan.


RESUMEN

¿Cómo preservar lo fundamental de la transmisión del psicoanálisis de las resistencias institucionales y culturales contemporáneas y cómo adecuarse a los nuevos formatos de las demandas de formación sin perder lo esencial que hemos recibido de las primeras generaciones de analistas? En este ensayo, el autor intenta dar algunas respuestas a esta cuestión a partir de sus experiencias. La razón de la pregunta que da lugar a este ensayo gira en torno al desafío de los institutos de psicoanálisis y de la formación de analistas en estos tiempos.

Palabras clave: formación analítica; análisis didáctico; pluralismo; modelos de formación; plan de estudio.


 

 

Como preservar o fundamental da transmissão da psicanálise das resistências institucionais e culturais contemporâneas e como adequar-se aos novos formatos das demandas de formação sem perder o essencial que recebemos das primeiras gerações de analistas? Neste ensaio, procurarei responder à questão a partir de minha experiência prática, que me levou tanto a intercambiar ideias com outros como a alterar as minhas próprias1 A razão da pergunta que dá lugar a este ensaio gira em torno do desafio dos institutos de psicanálise e da formação de analistas nos tempos atuais.

 

Modelos de formação?

Diante da falta de um consenso sobre a teoria psicanalítica e sobre o objeto da psicanálise que desse unidade a nossa associação internacional, a diversidade existente fez com que se exigissem certos padrões formativos. O formato oficial foi tradicionalmente o chamado modelo Eitingon, e uma vez aceitas certas alterações já existentes em alguns institutos, a questão da unidade agora reside na aceitação dos chamados modelos francês e uruguaio. Certamente, ainda considerando variantes sobre as quais se desenvolveram discussões amplas -nem sempre inteiramente produtivas -, os três "modelos" reúnem a característica de articular, de diferentes maneiras e com diferentes durações e cronogramas, a análise pessoal, a formação teórica e a formação prática supervisionada. O modelo uruguaio também apresentou, desde seus primórdios nos anos de 1970 (Viñar, Fulco, Casas & Uriarte, 2005), uma alteração na estrutura do instituto e das funções didáticas. Esta alteração implicou um descentramento do poder do "didata" e uma maior democratização institucional, com a criação das funções e dos grupos didáticos. As discussões sobre a frequência semanal da chamada análise "didática"2 - que levaram à aceitação desses três modelos de formação na ipa - suscitaram temas interessantes, e muitas vezes essenciais, do "fazer-se analista", temas que nunca estiveram atrelados ao número de sessões, visto que a constituição e o trabalho em transferência pode dar-se com uma ou outra frequência, muitas vezes indistintamente. Em diferentes lugares temos experiência disto, com dificuldades, é certo, e com êxitos razoáveis também. Não obstante, há algo de fundamental, de indubitável: a experiência analítica é uma experiência inconsciente em transferência, e ela só pode dar-se em situações de intensidade analítica, o que implica uma alta frequência, embora não possamos dizer exatamente quantas sessões semanais isto requer, de que maneira distribuí-las, qual a duração de cada uma ou com que estabilidade o processo seria mantido. Estas questões também são suscitadas no que se refere às análises concentradas (shuttle analysis) e às análises por Skype (remote analysis). A demanda de análise em lugares onde não há analistas tornou necessários os recursos de concentrar sessões presenciais e de dar continuidade a análises mediante sistemas de comunicação por Internet, como o Skype. Ambas as modalidades se complementam para diminuir suas limitações e permitem realizar a análise onde ainda não há instituições nem analistas.

Para todos esses itens, temos regras, embora elas não estejam necessariamente articuladas às boas experiências. Há experiências variadas desde o princípio da psicanálise, em Freud e em muitos autores posteriores a ele. Assim, pareceria que o único que se poderia chamar de "modelo" formativo é a articulação - de um modo ou de outro - da análise pessoal, das supervisões e da formação teórica. De que forma se dá essa articulação - se é simultânea ou não, ou parcialmente simultânea, se é presencial ou à distância, se ocorre de maneira episódica ou contínua, e com que variantes específicas - seriam variações do modelo que, desde o ponto de vista formal, não parecem ser substancialmente determinantes no processo da formação em si. A articulação não é formal; ela é singular e se dá em cada analista em formação de um modo particular, por meio de cristalizações, às vezes com tempos de articulação que respondem mais ao a posteriori do que à simultaneidade temporal real.

Os institutos oferecem certo marco e percursos possíveis para que cada um monte sua trajetória singular e diferente dentro de regras homogêneas. Por vezes, como supervisores e docentes de seminários, acreditamos que "formamos" analistas, e ignoramos essa condição tão humana do sujeito que se ergue ou se constrói sob certas circunstâncias que tornam isso possível, mas que dependem do incomensurável da experiência de cada um. De fato, é uma ideia bastante na contramão das tendências culturais da atualidade, que evitam o sujeito, tanto psíquico como social, mas quiçá por isso mesmo seja exigido de nós certa força para resistir a estas ondas de pragmatismo que golpeiam a condição humana. Também é certo que a coisa humana, e muito especialmente a experiência inconsciente em transferência, pode ficar acachapada por uma tendência excessivamente regulamentadora que busque ligar as condições da análise a números, alternâncias, períodos, durações, categorias de analistas ou categorias de analistas habilitados. Todos sabemos que sempre se encontram explicações muito bem sustentadas teoricamente para qualquer regra que se queira defender. Parece-me importante, portanto, em meio a tantas forças que tornam difícil a produção de um sujeito, fazer o possível para sustentar esse delicado lugar de gestação de cada analista, na singularidade de cada experiência. Querer regulamentar os cruzamentos e as conexões das experiências e campos de cada um é querer controlar e universalizar a singularidade. Pelo contrário, esta singularidade da formação de cada aspirante e candidato é uma pequena e delicada joia a se cuidar, a se preservar, cultivando-a para que produza a diversidade. Neste aspecto, artesanal e singular, localizo alguns dos traços essenciais da formação dos analistas.

A partir do que foi dito, e de outros problemas de transmissão, é possível saber e sustentar que muitas formalizações da formação funcionam mais como obstáculo na transmissão da psicanálise, mais como resistências a adentrar novos caminhos necessários, do que como necessidade para uma formação cabal. Em minha experiência, em países onde não existem institutos, apesar de todas as dificuldades que se encontram no trabalho inaugural, encontra-se também a riqueza de trabalhar com poucas formalidades (García, 2011). O Board do instituto deve se ocupar de muitas situações singulares, tanto das análises e das supervisões como dos seminários, uma vez que as pessoas chegam com formações e experiências tão diversas que é necessário capitalizá-las, não rejeitá-las. O desafio, portanto, é incluir as diferenças. Tais países apresentam ainda possibilidades muito diversas para a análise pessoal, que igualmente acarretam consideráveis sacrifícios pessoais. Creio que aprendi muito contagiando e me deixando contagiar com o desejo da formação nesses contextos, sempre apesar de grandes dificuldades. Cairia muito bem recuperar tal espírito inovador, criativo e efervescente em todos os lugares onde trabalhamos.

 

Ceder o controle institucional das análises

Um dos elementos de controle na formação tem sido a análise "didática". É já muito difícil continuar sustentando que há um tipo especial de análise para aspirantes e candidatos e um tipo especial de analista para esses aspirantes e candidatos. Em boa parte dos institutos, isto já não é exatamente assim: mudou-se o nome3 e ampliou-se o grupo de analistas habilitados, embora ainda se mantenham alguns requisitos sobre as análises. A verdade é que não encontro uma forma de assegurar ou de cuidar para que as análises se realizem dentro de um perfil que seja melhor que outro. Podemos dizer que a frequência intensa é necessária, permitindo a experiência da transferência inconsciente, a partir da qual se possa trabalhar o inconsciente. Mas isso não se relaciona a um número determinado de sessões, nem à extensão de cada sessão, à continuidade do trabalho, a ritmos fixos, e nem sequer a um tipo de analista. A ritualização das análises por meio de seus enquadres transformou-se também em um forte mecanismo resistencial (do analista e da instituição), que frequentemente acarreta impasses. Outra questão é que toda intervenção da instituição nas análises por meio de regulamentações, exigências, enquadres e determinação do tipo de analista não faz senão distorcer a necessária liberdade e privacidade que a análise exige, o que nunca é sem custos analíticos para o analisando e para a análise em questão. Inevitavelmente, através das "análises didáticas", a instituição controla e introduz ideologia de como deve ser uma análise e um analista - por exemplo, com critérios de "normalidade" e ideias de quando terminar uma análise e como. Refiro-me a listagens mais ou menos regulamentadas de como devem ser as coisas em uma análise e como se chega bem, ou não, a um fim analítico. Algumas delas são exaustivas e até bem-fundamentadas, mas não se ajustam ao caráter singular de cada análise. Sei o que significa para uma instituição séria deixar liberadas as análises sem requisitos, mas reconheço também que até hoje os requisitos não significaram qualquer segurança ou certeza de uma boa análise, se é que isso pode existir. Creio que deveríamos, cada vez mais, liberar as análises de aspirantes e candidatos e deixá-las totalmente fora de toda regulamentação institucional. O que cabe a um instituto é considerar, em linhas muito gerais, se alguém está em condições de conduzir uma análise, a partir de sua prática supervisionada e de suas apresentações clínicas. Penso que esta objeção teria que estender-se também aos critérios das comissões de admissão que trabalham por meio de "entrevistas psicanalíticas", avaliando a qualificação para o acesso aos institutos. O uso de critérios psicanalíticos fora de contexto analítico não deveria efetuar-se com tanta naturalidade. E o fato de que um órgão institucional tenha acesso a material privado da vida de um aspirante com a finalidade de avaliá-lo (quando as entrevistas são desse tipo) não deveria ser tomado com tanta leviandade. De um lado, não há elementos que abonem ou comprovem haver critérios ou métodos corretos; de outro, não poderíamos dizer que estão isentos de efeitos institucionais indesejados.

 

Pluralismo ou pluralidade na formação analítica?4

Em diversos institutos tem predominado a tendência a transmitir e/ou ensinar diferentes linhas de desenvolvimento teórico dentro da psicanálise e, inclusive, a tendência a fazer coexistir diferentes formas de compreensão de um material clínico, de pensamento metapsicológico e de modos de trabalhar em transferência e a transferência, além de como intervir nela. Essa coexistência das diferenças adquiriu certo viés ideológico, tornando-se uma meta para a formação de analistas e para as discussões científicas. Trata-se do "pluralismo teórico" e mais ainda do "pluralismo" em geral, o que nos trouxe não poucas dificuldades, tanto pela idealização da meta pluralista quanto por não promover a produção de diferenças, uma vez que não existem confrontos em que estas precisem ser sustentadas ou defendidas. É forte o risco do "vale tudo" ou de que tudo seja mais ou menos igual, o que, ao esmagar as diferenças, abre caminho para uma babel light, sem confrontação científica.

O "pluralismo" consiste em uma ou várias correntes ou doutrinas filosóficas pré-socráticas - Anaxágoras, Empédocles, Demócrito - que respondem aos problemas postulados por Heráclito e Parmênides com respeito a que tudo se move, reunindo ideias sobre a realidade e a sua existência cambiante, não unívoca, isto é, sobre mais de uma realidade.

Pluralismos posteriores na filosofia moderna e na contemporânea reagiram aos monismos do idealismo alemão e do materialismo do século XIX. "A mais conhecida das doutrinas filosóficas pluralistas contemporâneas é a de William James, que se baseou na ideia de liberdade interna" (Ferrater Mora, 1979, p. 2605). Os pluralismos são, portanto, sistemas de ideias, doutrinas, ideologias filosóficas que, em muitos casos, reuniam ideais, ideias no lugar de metas, o que, segundo a psicanálise, seria correlato à báscula supereu/ideal do eu, em alternância com o eu ideal. Não haveria um, mas vários "pluralismos", como sistemas de ideias, e cada um implicaria certa concepção do mundo e uma forma de pensá-lo.

Por outro lado - e o contrasto assim para diferenciá-lo do pluralismo como ideologia filosófica, religiosa, política, isto é, como concepção do mundo -, temos um fenômeno que ocorre com as ideias em nossa época. Todos os grandes sistemas de ideias, assim como os ideais implicados neles, entraram em crise, deixando múltiplos discursos parciais, coexistentes. Esta crise se deu ao mesmo tempo em que se concentrou o poder do homem, em especial do pater familias - embora também daqueles que representavam esse padrão no nível ideológico, político e filosófico, entre outros. Não se trata de um movimento linear e coincide com a existência de fundamentalismos religiosos e, às vezes, de movimentos nostálgicos.

Embora a psicanálise não seja uma ideologia, como forma de conceber o homem e o mundo, é certo que sobre ela se criaram sistemas de ideias, em geral resistentes à meta de descobrimento do inconsciente. Estas ideologias, tanto de base científica como políticas, e que nem sempre se diferenciam, foram afetadas pela crise dos grandes sistemas de ideias. Fomos perdendo parte da argamassa interna, mas não necessariamente dos tijolos, dos sistemas unitários de ideias. Deste modo, dispomos de uma série de discursos diversos e coexistentes, assim como da mestiçagem de discursos.

Nesse sentido, o "pluralismo" em psicanálise parece responder a um esfacelamento das unidades teóricas representadas por escolas psicanalíticas, assim como ao reconhecimento inevitável da coexistência de discursos teóricos múltiplos. Não se trata de uma nova concepção da psicanálise e do homem o que designamos "pluralismo"; trata-se do reconhecimento de uma realidade plural, diversa e mestiça, desde a qual pensamos e na qual acontecem as nossas experiências psicanalíticas. A ilusão de unidade encontra-se muitas vezes na clínica - por exemplo, quando se diz: "No fundo, quando se trata de um caso clínico, todos pensamos igual"; ou então: "Para além da diversidade das linguagens, a experiência é sempre a mesma". É esta postura a que Willy Baranger chama "ilusão piedosa". Segundo ele, é "como se uma experiência localizada essencialmente no nível da linguagem pudesse ser indiferente à diversidade dos idiomas" (2011, pp. 509-510). É uma afirmação mais que interessante para a psicanálise, pois situa as experiências analíticas sob a influência determinante dos discursos de cada época e cultura. Poderíamos dizer que a psicanálise, e ainda mais o inconsciente, depende dos discursos de cada época e de cada cultura, o que pode vincular-se à ideia de "sujeito" e de "produção de sujeito" em tempos de pluralidades de discursos.

A multiplicidade diversa dos discursos, antes unificada sob certa força absolutista de um padrão, é um reconhecimento que implica uma perda: a perda de um "absoluto". Esta perda nos confronta com os limites do conhecimento, com o desvalimento e com a castração, a partir da diversidade inacabada de discursos.

Não há elementos para pensar que estejamos frente a um novo pluralismo filosófico ou ideológico, que dê conta de um sistema de ideias, de uma forma de ver o mundo e dos pensamentos, e que nos prometa uma imagem mais acabada do homem. Estamos, isto sim, em um momento de reconhecimento da perda de sistemas de pensamento unitários e de reconhecimento de discursos não só inacabados como diversos e mestiços. Como costuma acontecer com a castração, essas construções do absoluto foram se descascando, se ero-dindo, se pulverizando sucessivamente, até caírem, pelo menos em parte, e isto - penso - é o que gerou uma pluralidade (de saberes, de experiências, de ideologias institucionais e de poderes).

Uso intencionalmente o termo pluralidade e não pluralismo, pois este último é um conceito que pode identificar-se com uma teoria, uma filosofia ou uma ideologia. Além disso, o pluralismo pode ser uma definição política inevitável, como um acordo entre partes que pensam de maneira muito diferente para conservar um grupo ou uma instituição. Pode ser um pacto de sobrevivência, um acordo de coexistência.

Por sua vez, entendo que a pluralidade não resulta de uma busca ideológica: resulta do descascado, da pulverização inevitável das teorias e das ideologias. Ou seja, ela é o que resta como segmentos desprendidos, o que resta do tronco depois que esses segmentos se desprendem - são os novos rearranjos. Algumas destas reconstruções-construções-inovações são pessoais e transitórias, dando-se em cada sessão e com cada paciente. Outras correspondem a uma articulação-criação ou inovação teórica, ou são a consequência de dispor-se de diversas teorias incompletas que interagem nas discussões científicas e no interior do pensamento de cada analista. Implicam o reconhecimento de nossa mestiçagem. Acentuo minha preferência por falar em "pluralidade mestiça", e não de um ideal de "pluralismo".

 

Um instituto aberto

Em primeiro lugar, um instituto que ofereça as melhores condições para que alguém possa formar-se psicanalista. É um lugar ativo de experiências clínicas e teóricas que se apresenta para o formando, permitindo-lhe eleger um caminho com características singulares. Neste é possível escolher seminários tanto por temas como por autores e docentes. O essencial no instituto aberto não é formar analistas, o que não passa de mais uma crença - o essencial está em criar as melhores condições para que se forme um analista, transitando a seu modo pela aventura da análise, da teoria e da clínica supervisionada. E isto especialmente porque não somos uma disciplina em que o central é o conhecimento consciente, mas o trânsito por experiências mistas e singulares de descobrimento do inconsciente. Minha preocupação máxima hoje é não perder esta essência da psicanálise frente à avalanche de exigências estratificadoras de resultados aparentes; é oferecer a centralização do percurso e a sistematização do estudo da teoria freudiana como núcleo fundante do conhecimento e da formação do analista, e como paradigma do caminho de investigação e criação do conhecimento; é oferecer seminários que introduzam o conhecimento e a experiência das grandes linhas pós-freudianas dentro de um âmbito de pluralidade teórica, ou seja, de limites teóricos; é apresentar as articulações teórico-clínicas freudianas, com seus casos clínicos ou os de outros autores destacados; é considerar a problemática das grandes estruturas psicopatológicas como alternativas humanas de transação entre os desejos e as defesas. Toda esta prática teórica, articulada ao trabalho analítico e à análise pessoal, configuraria um crisol para o trânsito pelo instituto, onde se cristalizariam de forma singular essas experiências. Parece-me importante buscar evitar, sempre que possível, o excesso de regulamentação, uniformizações e funcionamento burocrático, que esvazia a riqueza da diversidade e da singularidade. Nossa história, desde Freud e o comitê dos sete anéis5, nos imprime a marca do controle do que se transmite e do que se faz, o que constitui uma grande resistência, um grande obstáculo, para o crescimento e para a transmissão criativa. Desenvolvemos institutos dentro das sociedades psicanalíticas para evitar fraturas e para somar controles. Foram muitas vezes transpostos os funcionamentos das sociedades e dos institutos para os enquadres analíticos e para os seus modos de compreensão. Assim, temos removido dos institutos a abertura para um horizonte novo e renovado a cada geração - de interesses e matizes por desenvolver. A diminuição dos controles em seus diversos formatos e a desideologização "psicanalítica" dos funcionamentos institucionais são necessárias para dispormos de institutos abertos para o futuro e arraigados na sociedade em que estão inseridos. Possivelmente, a independência cada vez maior das "análises didáticas", a não regulamentação do seu enquadre ou do tipo de analista que as possa conduzir, é uma necessidade para conquistar essa diminuição dos controles e das regras burocráticas. Cuidar, antes de mais nada, da privacidade e da singularidade das análises, mas não menos do singular da construção de um candidato a psicanalista é o que propomos.

 

Não ceder ao pragmatismo técnico na psicanálise: os analistas e suas práticas6

Em nossas discussões, não podemos ignorar o contexto multiplamente heterogêneo em que transitamos, se não quisermos ficar presos na metáfora de Freud sobre o urso branco e a baleia - uma discussão impossível. Poderiamos esperar que uma psicanálise que se inseriu e desenvolveu historicamente em um âmbito médico-universitário, inclusive com casos de institutos de formação que pertenceram a universidades, possa ser pensada independentemente dessa influência contextual? Poderíamos acreditar que a psicanálise, que se inseriu fundamentalmente na companhia das ciências humanas, não leve em conta essa herança no momento de pensar a si mesma? Poderíamos deixar de lado os contextos históricos e culturais em que cada grupo nasceu e cresceu? As exigências atuais de cada sociedade quanto à educação e à saúde não exerceriam influência em nosso pensamento, quando são decisivas nos contextos de trabalho e sociais?

A consideração dos diversos contextos não elude necessariamente a discussão psicanalítica, mas relativiza a pureza desse campo científico, pois mostra a inevitável mistura ideológica que o integra. Trata-se de outra de nossas mestiçagens. Este reconhecimento não é pouca coisa, pois o que poderia ser considerado um problema extrínseco à psicanálise, incidindo negativamente sobre o que ela deve ser, resulta ser a mesma trama em que ela pode acontecer. Isto porque, entre outras coisas, qualquer juízo analítico já existente sobre as melhores condições para que a psicanálise ocorra também dependeu de seu contexto. Para além desse contexto humano - e também científico, social e cultural em que ela se desenvolve -, não há psicanálise possível.

Para que esta afirmação seja declarada com responsabilidade, faz-se necessário que nos detenhamos ao menos em um problema: a psicanálise define-se por uma técnica? Todos sabemos que este é um ponto de importantes diferenças entre psicanalistas, e por tudo que disse antes, não é minha ideia que elas sejam resolvidas, mas que as trabalhemos e que, a partir das diferenças, as façamos produzir. Sabemos também que a referência a um enquadre comum adquiriu maior ênfase para sustentar a unidade da ipa frente às multiplicidades teóricas. Pois bem, se fôssemos uma disciplina médica, não há dúvidas de que não seria a mesma coisa uma sala cirúrgica asséptica ou séptica. Mas a comparação com a medicina, recurso de que Freud se utilizou muitas vezes, arrisca desconsiderar que a psicanálise tem um objeto e um instrumento subjetivos. Entendo que este é um ponto de muita discussão, mas também é uma forma de pensar à qual, como outras, não renuncio. A função analítica passa pela capacidade de tolerar e poder trabalhar a atualização transferencial dos conflitos inconscientes do analisando, o que implica o analista, seus afetos e pensamentos, seus conflitos, sua história, e o contexto social e cultural em que isso se desdobra. A técnica, em minha opinião, é inseparável da mente do analista, por assim dizer, porque, à diferença de outras disciplinas como a medicina, a química ou a engenheira, não dispomos de um saber impessoal que apliquemos sobre o outro. É claro que isto não quer dizer que não dispomos de teorias, de pautas ou de experiência técnica, mas estes estão incorporados ao funcionamento de cada analista, recriados e postos em jogo em cada análise, cada situação transferencial de uma análise, o que hierarquiza a ideia da singularidade. Está em nosso fazer científico extrair destas singularidades elementos trabalháveis a posteriori, mas sempre considerando o contexto em que surgiram. Não é menos relevante pensar que somente a partir de uma singularidade transferencial é que podemos escutar e pensar um material. As aplicações teóricas que não levam em conta este ponto de partida necessário, limite da nossa escuta, multiplicam ilimitadamente sentidos ineficazes.

Como consequência do que foi dito anteriormente, penso que a formação de um analista não consiste em um treinamento técnico. Se algo fundamental, e não só formal, apresenta algum consenso - quanto a articular análise pessoal, formação teórica e prática analítica supervisionada - é pensar essa articulação em cada formação singular. Os institutos podem brindar essas vertentes, concomitantes ou não, mas o fundamental é que cada analista possa experimentar singularmente a peculiaridade psicanalítica de dispor e dispor-se como instrumento. Nenhuma escola, por mais monoteórica que se pretenda, pode assegurar a formação de um tipo de analista, nem o exercício de uma psicanálise específica. Algo estimulante no pertencimento a uma sociedade internacional é o encontro de trabalho com analistas de formações diferentes: neles podemos reconhecer finas singularidades no trajeto para acessar o nosso objeto comum. Claro que para isso torna-se necessária certa renúncia de nossas paixões racionais e tribais, o que não é fácil.

A partir do exposto, minha concepção da psicanálise e da formação de analistas implica a incorporação de elementos para dispor-se como instrumento de análise, entre os quais se incluem os recursos técnicos necessários.

Estritamente, em uma psicanálise nem tudo é psicanálise. Podemos pensar que há momentos preparatórios de outros mais analíticos, momentos de contenção, companhia, reflexão. O importante é a atitude e a meta analítica em jogo, mesmo com as diferenças com que podemos pensá-las. Por esta razão, em situações com outros enquadres - sejam quais forem as causas destas variantes -, a função analítica sempre está implicada na capacidade de escuta da transferência, na oportunidade, na dosagem e no tipo de intervenção e em suas metas; ou seja, no que em minha opinião é o fundamental para um analista.

A questão do enquadre, por sua vez, não se dissocia da posição de cada analista e com cada paciente. Podemos convir, de algum modo, que a alta frequência de sessões é uma boa condição para se analisar. Mas não podemos desvincular essa ideia de nossa concepção de transferência e do trabalho com ela. Não é o mesmo dispor de referenciais de transferência e contratransferência fundamentalmente kleinianos ou fundamentalmente lacanianos. E se nos referimos a Freud, a multiplicidade de referências se acentua. Mas hoje raramente nos deparamos com linhas teóricas puras, o que constitui nossa particular mestiçagem. Efetivamente, a(s) teoria(s) psicanalítica(s) não tem/têm a função de um texto religioso, e sua função tampouco se iguala à da teoria nas ciências básicas. São "andaimes", dizia Freud no início de "A pulsão e seus destinos", que nos permitem montar redes significativas de palavras com cada paciente e, em outro nível e momento, entre analistas.

Por estas razões, é de minha preferência falar de psicanálise em diferentes enquadres antes que estabelecer uma distinção, sempre difícil, entre psicanálise e psicoterapias psicanalíticas. Prefiro falar dos psicanalistas e de suas diferentes práticas. Não desconheço que muitos desses enquadres se afastam da psicanálise que concebemos, por exemplo, para os que se formam analistas. Com esta expressão, refiro-me às condições que consideramos melhores para os objetivos da investigação do inconsciente e das transformações psíquicas. Para os aspirantes e candidatos, assim como para muitos pacientes, a alta frequência é conveniente, mas não é impositiva a qualquer custo para o bem do método. Da mesma forma que as patologias graves desafiaram-nos, levando a modificações e à plasticidade do manejo de nosso instrumento, o contexto impõe diferentes realidades.

Outro tema, de não menor importância, considera se o que leva a diluir a psicanálise tem a ver principalmente com o enquadre ou com a posição e os objetivos do analista. Certamente não são excludentes. Mas nossas realidades culturais parecem tornar cada vez mais difícil sustentar a tensão transferencial, o descentramento racional e a assimetria funcional que requer a psicanálise. A tendência que impera nas técnicas e nas múltiplas especialidades que incluem a psicanálise rapidamente em modos assistenciais médico-psicológicos tem, em minha opinião, esses riscos. Refiro-me à sua forma de inclusão, mas não acho que devamos manter-nos à margem da demanda assistencial.

 

Formação em psicanálise para outras práticas, profissões e ofícios

Abrir-se implica considerar que a psicanálise não está apenas buscando formar novos analistas dentro dos objetivos formativos das associações. Desde os primórdios, os analistas e as instituições foram transmitindo a psicanálise a outros âmbitos da cultura, a outras disciplinas, sem o objetivo de formar analistas, mas para tornar conhecido o que a psicanálise descobriu em experiências muito singulares que outros não tiveram. Isto fez com que antropólogos, escritores, historiadores, psicólogos, médicos, artistas plásticos, mestres e docentes, pedagogos, neurologistas e psiquiatras dispusessem de conceitos e ideias da psicanálise, que lhes abriram o horizonte teórico e prático de seus fazeres e que, da mesma forma, abriram um caminho de reciprocidades, tanto dos conhecimentos como das experiências, o que também nutriu a psicanálise. Como poderia haver ocorrido tudo isso, por tanto tempo e por vezes de forma tão fecunda, se não se houvesse produzido uma demanda de formação, implicando tanto os analistas, em particular, como as instituições psicanalíticas, em geral? Essas demandas existem sem que nos dediquemos a elas de maneira adequada pelo temor de formarmos analistas selvagens (Freud, 1910/1976). Temos uma demanda muitas vezes intensa da parte de psicólogos e psiquiatras em relação às suas práticas, necessitadas de instrumentos psica-nalíticos. Não me parece que estas demandas estejam sendo contempladas, nem no que se refere à qualidade e à profundidade nem no que diz respeito ao reconhecimento oficial, tal como se faz necessário na atualidade.

Também temos uma demanda vinda das disciplinas ou ciências do sujeito para explorar a teoria ou as teorias psicanalíticas (não a clínica), a que respondemos talvez ainda pior - se é que respondemos.

Nossa subsistência como psicanalistas - e, o que é mais ainda importante, a da própria psicanálise - não dependeu nem depende apenas de que as sociedades psicanalíticas tenham institutos de formação. Também dependeu e depende de que os analistas, cada um, e as instituições tenham trabalhado com a psicanálise em outros campos, transmitindo e formando outros trabalhadores da cultura e das ciências. Reunir-nos para o desenvolvimento interno da ciência e a formação de novos analistas é uma atividade necessária e central, sem dúvida, mas também nos deixou formas enquistadas (religiosas e econômicas de funcionamento) que não foram favoráveis. O espírito dos sete anéis, espírito de seita, de exclusividade, endogâmico, se cultiva em excesso. E uma abertura mais livre das experiências e dos pensamentos fica afogada nessa tentativa de controle e de cuidado da herança.

Outro tema associado é que as demandas vêm com um formato prevalente nas formas atuais do conhecimento e de seu reconhecimento (formações universitárias, pelo formato de especialidades, titulações, mestrados e doutorados, por exemplo). Não é possível abrir mão deste aspecto. Poderíamos separar totalmente a psicanálise do ensino universitário, ou poderíamos pô-la em paralelo à graduação, mas não à pós-graduação. Assim teríamos gente mais jovem e não necessariamente formada antes como psicólogos ou como médicos. Mas atualmente não é assim. Há formas que nos determinam, talvez em um avant coup. É impossível evitar isso: seria como querer evitar a perda de liberdades que sofremos com a aquisição da palavra. Só podemos trabalhar a questão e fazê-la produzir. Os jovens profissionais chamados hoje a trabalhar em um sistema de segurança em saúde não dispõem de formação para o que lhes é solicitado. Necessitam que os que têm mais experiência e conhecimentos vinculados a esta possam transmiti-los para que eles possam conduzir as suas práticas. Não podemos fazer vista grossa, como se isso não existisse, ou ficar comentando quão mal funciona o sistema. Os cursos mais ou menos longos que damos através de atividades de difusão são insuficientes para instrumentalizá-los, assim como são insuficientes no sentido de não dispor do reconhecimento oficial que permitiria a esses jovens mostrar-se instrumentados. Ambos os fatores são decisivos para quem decide realizar uma formação hoje. Trata-se de uma área de formação (de nada adianta negá-lo, porque sempre foi assim) que requer ser reformulada para que responda cabalmente às demandas existentes, ao mesmo tempo em que é claramente diferente da formação de analistas.

Outra área de formação é a de teoria ou teorias psicanalíticas. Uma área teórica apenas para aqueles que necessitem formar-se em psicanálise teórica. Não estaremos formando analistas selvagens, visto que não serão analistas. Serão pessoas com outras práticas que farão aproximações diferentes com a teoria que aprendem, ou que recriam, a partir das suas experiências. Mas, se eles mesmos alcançarem uma articulação pessoal entre teoria analítica, análise pessoal e prática analítica com pacientes, não está em nós a autoridade para desautorizá-la. Podemos oferecer um âmbito formativo que nos pareça melhor e auspicioso a ser percorrido, mas isso não significa que desqualifiquemos outros âmbitos ou modos de gestar um analista.

Claramente, trata-se de romper, talvez mais uma vez, com o círculo dos sete anéis, com o controle do herdado, porque tal controle é falaz e impossível, e ainda que fosse possível, não seria vital para a psicanálise. Agora, como fazer isso? É desde a singularidade de cada instituto, a partir de seu contexto atual e sua história, e junto das novas gerações de candidatos e analistas que poderão construir-se os novos projetos, que sempre terão muito de aventura.

 

Referências

Baranger, W. (2011). Acerca de la situación actual de la apa en relación a la teoría psicoanalítica. Revista de Psicoanálisis, 68(2-3),507-514.         [ Links ]

Ferrater Mora, J. (1979). Diccionario de filosofía. Madrid: Alianza.         [ Links ]

Freud, S. (1976). Sobre el psicoanálisis "silvestre". In S. Freud, Obras completas (J. L. Etcheverry, trad., Vol. 11, pp. 217-227). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1910).         [ Links ]

García, J. (2003). Los psicoanalistas y sus prácticas. Revista de Psicoanálisis, 60(2),287-292.         [ Links ]

García, J. (2011). The training of psychoanalysists in Latin American countries without ipa institutions: antecedents, experiences and problems encountered. The International Journal of Psychoanalysis, 92(3),715-731.         [ Links ]

García, J. (2012). ¿Pluralismo o pluralidade? Texto não publicado. (Trabalho apresentado em Congresso da Federação Psicanalítica da América Latina, em São Paulo).         [ Links ]

Viñar, M., Fulco, C., Casas, M. & Uriarte, C. (2005). Modelo uruguayo - Instituto de Psicoanálisis de la Asociación Psicoanalítica del Uruguay (APU). Texto não publicado.         [ Links ]

 

 

 

Correspondência:
Javier García
Bvd. J. G. Artigas 2.654, 11.600
Montevideo, Uruguay
gp@adinet.com.uy

Recebido em 4.3.2014
Aceito em 20.3.2014

 

 

 

1 O ensaio parte de minha experiência prática como docente, supervisor, analista, diretor de meu instituto (o Instituto Universitário de Pós-graduação em Psicanálise da Associação Psicanalítica do Uruguai), coordenador da Comissão de Plano de Estudos que criou o novo plano de estudos do instituto da apu (modelo uruguaio) em 1990, como integrante do comitê de educação da Associação Psicanalítica Internacional (IPA), e como um dos fundadores e primeiro diretor do Instituto Latino-americano de Psicanálise (ILAP).
2 "Didática" remete a "ensino", "instrução", e cada vez mais há opiniões de que a psicanálise dos aspirantes e candidatos não consiste no ensino da psicanálise nem em sua prática clínica. Enfatiza-se, também cada vez mais, que se trata de uma psicanálise pessoal nas melhores condições possíveis de enquadre.
3 Análise de formação, análise com analista do instituto, entre outros.
4 García (2012).
5 O comitê secreto dos sete anéis foi formado a partir da ideia de Ferenczi para defender as posições de Freud frente a Jung e aos dissidentes. Jones comunica a Freud esta ideia no verão de 1912.
6 García, 2003.

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