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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.1 São Paulo jan./abr. 2014

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: MUTAÇÕES E PERPLEXIDADE

 

Sem centro, no meio

 

With no center, in the middle

 

Sin centro, en el medio

 

 

Sonia KleimanI; Tradução Denise Mota

IMembro associado da Associação Psicanalítica de Buenos Aires (APdeBA). Diretora da especialidade de pós-graduação Psicologia Vincular de Famílias com Crianças e Adolescentes - Instituto Universitário do Hospital Italiano. Coordenadora da Equipe de Família Saúde Mental Pediátrica - Hospital Italiano

Correspondência

 

 


RESUMO

O trabalho propõe uma diferença entre pensar nos vínculos e a partir dos vínculos. Nessa segunda opção, é necessário incluir a lógica da multiplicidade, um pensamento rizomático, ou seja, que não coloque o centro nem no sujeito, nem na história, nem no inconsciente, mas sim que transite pelo Entre, a partir do meio. Entre como produção vincular. Essas ideias são trabalhadas a partir do relato de uma consulta familiar.

Palavras-chave: vincularidade; Entre; produção; multiplicidade.


ABSTRACT

The paper proposes that there is a difference between thinking of the links and thinking with the links as a starting point. In the latter, it is necessary to include the logic of multiplicity, a rhizomatic thought; in other words, one which doesn't place the center in the subject, in the story, nor in the unconscious, but instead which travels through the Between, from the middle. Between being link production. These ideas are developed from the report of a session of family therapy.

Keywords: link; between; production; multiplicity.


RESUMEN

El trabajo propone una diferencia entre pensar en los vínculos y a partir de los vínculos. En esta segunda opción es necesario incluir la lógica de la multiplicidad, un pensamiento rizomático, es decir, que no coloque el centro ni en el sujeto, ni en la historia, ni en el inconsciente, sino que transite por el Entre, desde el medio. Entre como producción vincular. Se trabajan estas ideas a partir del relato de una consulta familiar.

Palabras clave: vincularidad; Entre; producción; multiplicidad.


 

 

Acontecem todos os desenlaces; cada um é o ponto de partida de outras bifurcações ... infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos1
(Jorge Luis Borges, 2006, p. 110).

Em um diálogo entre Claire Parnet e Deleuze (1980), ela fala da emoção que sente com as leituras de Nietzsche. Deleuze dá a entender que o que comove Parnet não é necessariamente apenas o conteúdo do texto, mas o impulso contagioso que a leva a desejar escrever. Isidoro Berenstein contagiou a muitos de nós, e aqui estamos, a partir da nossa escrita, transmitindo tanto suas ideias como outros pensamentos que foram sendo produzidos.

Derrida se pergunta se a psicanálise poderia ser pensada pela psicanálise como acontecimento.

A perspectiva vincular, a meu ver, acontece na psicanálise no sentido de lhe permitir uma descontinuidade, ou seja, pensar a partir da psicanálise, não como repetição linear ou pelo puro deslocamento dos seus conceitos em direção a outros campos, mas como desconstrução, reformulação, criação.

É difícil questionar o que está instituído sem um pouco de impertinência. Se Freud não tivesse sido irreverente ou, como diz Agamben, profanador do sagrado, talvez não houvesse criado tudo o que sua curiosidade, percorrendo diferentes disciplinas, lhe permitiu criar.

Convenhamos também que é no mínimo difícil, e até impossível, abarcar o que acontece em nossa própria época, porque está sendo vivido, enunciado, gestado, em um tempo em que somos testemunhas e protagonistas simultaneamente. No entanto, os efeitos, as marcas de época, as descobertas, agora muito mais difundidas, quase no mesmo momento em que se produzem, sua disseminação pelos diversos espaços científicos do mundo permitem a possibilidade de reformular conceitos enunciados em outras condições de existência, bem como conhecimentos sobre os quais, no momento de enunciação daqueles, havia um consenso.

A proposta da perspectiva vincular, tal como a compreendo, requer que pensemos a partir dos vínculos, e não sobre os vínculos; implica uma mudança, a partir da lógica do Um, um como mesmidade, como centro identitário, o que Badiou chamou o Dois, e Deleuze, de forma diferente, multiplicidade.

Entendo que Isidoro Berenstein (2007) expressava isso assim:

Uma mãe dá à luz e nasce uma criança. No entanto, a mãe não é mãe senão quando nasce a criança, que é quem faz com que ela se torne "mamãe" ou que o pai se torne "papai". A mãe coloca a criança no peito e esta toma o peito em sua boca, com os seus lábios. Estão em relação. É essa relação que dá fundamento - que os funda como sujeitos - a esses sujeitos. Não há centro, nem o peito nem a boca, nem a mãe nem o bebê; há universo emocional e relacional em expansão.

Ele propõe que os sujeitos não antecedem a relação, mas sim que é a relação que os institui.

Pensar a partir dos vínculos, diferentemente de pensar sobre os vínculos, implica começar no meio, ou seja, abandonar a ideia de núcleo, de centro ao redor do qual tudo ficaria coagulado. Requer deixar de pensar em cada sujeito como centro, ou pensar o vincular como igual à relação, um e outro. O vincular é produção.

Pensar a partir dos vínculos é pensar a partir do Entre. É transitar pelas beiras, pelos interstícios. Nesse sentido, o chamado vínculo precoce não seria exclusivo da mãe e da criança, mas sim o nome de uma multiplicidade. Múltiplas maneiras de ser formado. O que, por sua vez, dá espaço para conexões múltiplas.

A ideia de multiplicidade poderia ser descrita assim:

Não são nem os elementos nem os conjuntos que definem a multiplicidade. O que a define é o E, como alguma coisa que ocorre entre os elementos ou entre os conjuntos. E ainda que haja apenas dois termos, há um E entre os dois, que não é nem um nem o outro (Deleuze & Parnet, 1980, p. 41).

A noção de sujeito deixou profundas marcas em nosso pensamento. Transformou-se no centro, como uma lógica solidária do pensamento binário.

É longa a trajetória da atribuição de importância ao centro.

Vou recordar algumas frases coloquiais em que isso transparece: afirmamos o quão importante é ser o centro das atenções; damos valor ao fato de uma pessoa ser centrada; há países considerados centrais por conta de seu poder, especialmente econômico, que lhes permite colonizar e controlar; dizemos que, em um texto, é necessário procurar os conceitos centrais; há terapias que buscam um foco como centro dos problemas a serem resolvidos; a pista de dança maior é chamada de central; concentrar-se é uma atitude desejada a tal ponto que, se alguém não consegue fazê-lo, é medicado com psicofármacos. Evidentemente é uma busca daquilo que organiza, estrutura, ordena, e não é que isso seja necessariamente negativo, mas a questão é que o central inaugura simultaneamente outra categoria: a periferia. Não há dúvida de que centro e periferia não são da mesma categoria. Viver no centro não é a mesma coisa que viver no subúrbio. Ou seja, como todo pensamento binário, é também hierárquico.

A centralidade é acompanhada por toda uma lógica. A lógica das oposições binárias, a lógica das diferenças, mas a partir da identidade. Ou seja, "a diferença como o não idêntico: assim, B é não A. A diferença só pode ser pensada como negativo do idêntico. Funciona aqui o embasamento epistêmico para pensar e produzir as diferenças desigualadas" (Fernández, 2009, p. 26, itálicos da autora, negrito nosso).

Falar sobre diferenças desigualadas supõe pensar que os discursos sobre a construção de uma diferença são possíveis em função de certos dispositivos de poder, de gênero, de classe, de raça.

Os conceitos centrais de uma teoria são enunciados como verdades universais.

Nossa maneira de falar, organizada sintaticamente em sujeito e predicado, dá ao sujeito lugar de centro também. Por isso, entre outras coisas, é muito difícil falar em termos de relações, porque para falar é necessário colocar o sujeito no centro. Ele, ela, o filho, a mãe, o pai, e depois as ações.

Nossa linguagem, a da identidade, a da necessidade de delimitar com atributos (sexo, cor, país, aquilo que possibilita identificar um sujeito), nos deixa, por conseguinte, presos no ser.

O vincular requer um pensamento que fuja da atração de ficar fechado em um centro que impulsiona a buscar, por exemplo, quem é a vítima, o réu, o responsável, o causador de, o doente. O vincular é um ir sendo, estando.

 

Sem centro ou Como começar pelo meio

O que conta em um caminho nunca é nem o princípio nem o final; é sempre o meio
(Gilles Deleuze, in Deleuze & Parnet, 1980, p. 19).

Recebo um pedido para uma entrevista familiar. Chegam os pais e uma filha. Contam durante um tempo considerável todas as vicissitudes, bastante desagradáveis certamente, da convivência com outro filho. Oscilam entre a preocupação e o intenso mal-estar, incômodo e raiva gerados pelas condutas desse filho. Os três estão de acordo nisso, apesar de a mãe apresentar uma tendência a diminuir a crítica. Tem pena, chora. Ela esclarece que, de acordo com os diagnósticos (que foram vários), lhes disseram que eles não têm nada a ver com o que está acontecendo e que essas condutas - as do filho que não está nessa entrevista - poderiam ter ocorrido em qualquer outra família. Pergunto a eles por que esse filho do qual falam não veio. "Ah", me respondem, "não contamos para ele; ia ser muito difícil poder falar aqui com ele"

Como ler essa diminuta vinheta sem que se torne o centro de nossa leitura um possível filho psiquicamente doente, tal como o apresentam? Ou seja, sem buscar rapidamente explicações, sem que todo o relato fique voltado a um filho supostamente doente, fonte do mal-estar da família?

Pensar uma situação a partir do vincular requer uma operação diferente - não estar à procura de algo que concentre causalidade, o sujeito, a família, o significante, a história, o diagnóstico.

Fomos configurados para buscar uma causa, ou várias - causas que nos dariam a chave para entender o que acontece. Procurar os porquês leva a tentar encontrar um centro, uma precipitação que fecha e que não permite um pensamento rizomático, isto é, um pensamento entre as coisas; o que é rizomático alude a uma maneira de pensar em que não se procura a estrutura ou o eixo (imagem de uma árvore) a partir do qual se organizam as ideias.

Novamente, não é pensar a partir de um centro, corpus teórico, mas um caminhar entre as possíveis múltiplas derivações que podem ser produzidas.

O mais trabalhoso, como pude observar na clínica com relação ao vincular, é esse trabalho de não procurar delimitar os protagonistas, não ficar fechado no pensamento estrutural, envolver-se nesse caminhar um pouco às cegas pelas múltiplas afetações do que está acontecendo.

Como ler essa introdução sem ir ao centro? Filho psicótico, psicopata? Família expulsiva? Vítima, réu? Como pensar esses modos de existência como algo que mobiliza e interroga, e não recorrer rapidamente a um saber explicativo sobre o que supostamente está acontecendo?

Já foram a várias consultas, já há diagnósticos centralizados em um dos membros da família, mas evidentemente continuam na busca.

Apresentam-se com um relato que traz uma configuração que precisa de um centro (filho doente, louco, que maltrata) e em que todos os possíveis sentimentos, como tristeza e ódio, culpa e angústia, fúria e desespero, venham exclusivamente da relação com ele. Por sua vez, é necessário que ele não esteja, que não possa perturbar as representações, que o seu corpo não "vibre" com os outros (Rolnik, 1989).

O filho, como um personagem que ameaça e ao mesmo tempo sustenta a conflitiva vincular familiar, precisa estar ausente e presente em seus efeitos - ausente o suficiente para não perturbar com suas possíveis intervenções; presente o suficiente, em seus efeitos, para ocupar toda a cena.

Se a proposta é pensar a partir dos vínculos, isso demandaria a experiência de um aventurar-se nos interstícios, em um caminho que percorre as palavras, os corpos de quem está ali, suas expressões, nessa cena cuja singularidade é a maneira como eles se compõem, e convidá-los à possibilidade de suspender certos argumentos para que pensem juntos se é possível alguma outra forma de aproximar-se daquilo que há muito tempo é fonte de sofrimento vincular.

Os centros homogeneízam, tranquilizam, como os diagnósticos, e deixam fechadas e à margem muitas outras possibilidades de pensamento.

Por exemplo, pensando em centros teóricos, a brilhante ideia freudiana do complexo de Édipo se transformou depois no núcleo e na encruzilhada de uma construção que levou à tendência de tornar familiar praticamente qualquer circunstância vital e reduzi-la ao edípico, ao universal explicativo, a um centro de gravidade da existência humana. A potência de um modelo fica, assim, presa nesse núcleo, que finalmente, para tentar explicar tudo, marginaliza, encobre, impede que muitas outras variáveis possíveis se apresentem como pensáveis.

A ideia de pensar de outra maneira o que estão propondo como família nessa consulta não é simples, já que retirar algo da centralidade requer comprometer-se de outra forma, tornar-se parte da cena, envolver-se como protagonistas, suspender os diagnósticos, e isso tem resultantes comoventes.

O relato continua:

- Temos que lhe contar que, quando X era muito pequeno, nosso filho foi acometido por uma doença, que poderia ter sido crônica e da qual só recebeu alta vários anos depois. Foi difícil a criação de um menino doente.

- A mãe ficou, durante todos esses anos, muito ligada a isso, dedicando-se ao nosso filho. Quando a irmã nasceu, depois de oito anos, a família viveu um caos. Os ciúmes eram insuportáveis. Mais tarde, na adolescência, tudo saiu dos eixos. Começaram as brigas, os insultos em nossa direção [dos pais].

Há uma tensão que se manifesta no clima da entrevista, nos corpos que compartilham o espaço. Falam também de todas as preocupações causadas pela questão de como cuidar das crianças, já que os dois trabalhavam o dia inteiro. Transmitem um estado de colapso, que incluía certa dificuldade de mudar as condições em que estavam vivendo, na medida em que haviam desejado construir uma nova situação familiar, à qual, no entanto, era conflituoso chegar.

Contam uma história - doença infantil - que remete a uma origem, história à qual se recorre desesperadamente à procura da "ponta do novelo". Dessa maneira, busca-se localizar nos antecedentes, ou no latente, a determinação da consequência.

Essa viagem em busca da origem em inúmeras ocasiões nos expulsa da cena em que estamos participando, essa que afeta quem está ali e que nos afeta por estarmos implicados. O relato da história muitas vezes é uma tentativa de entender o que aconteceu a fim de encontrar um sentido para o que está acontecendo. Em um trabalho conjunto com Isidoro Berenstein (2006), colocamos assim:

"Entender" a partir da história ... se refere à ideia de que aquilo que está acontecendo agora não tem realidade, não tem vida própria, sendo apenas um desdobramento atualizado dos antecedentes, um tempo em que somente se reproduz aquele tempo anterior.

Outra possibilidade é a ideia de que não há um só tempo, mas que se forma uma situação em que, como dizia Borges na epígrafe, "acontecem todos os desenlaces; cada um é o ponto de partida de outras bifurcações ... infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos" (2006, p. 110).

A ideia é um pensamento tensional, em que a história e a situação se conectem de tal forma que se produza uma descontinuidade produtiva, que sejam propiciadas novas conexões, que possam abrir-se para outras experiências.

A isso chamamos "a situação", algo que nunca foi vivido, é inédito e com certeza novo, se formos capazes de nos colocar ante a situação que lá está como o novo que é. E haverá um antes representacional que tenta encobrir e ocultar esse momento de incerteza e de construção de um tempo vincular nunca antes vivido, e portanto impossível de ser compreendido por uma representação anterior. O passado seria encobridor e é usado para outorgar continuidade àquilo que é descontínuo (Berenstein & Kleiman, 2006).

A tensão entre o que é relatado da história e o que está acontecendo produz o heterogêneo, o singular de cada situação.

Há uma tentativa de ordenar, de querer apreender a partir dos dados da história ou do inconsciente - ordenar, já que é comum dizer que na desordem ou no caos não é possível pensar. Acontece que sair do tipo de pensamento que busca um centro nos leva a pensar o caos não só como desordem, mas também como algo que se apresenta e nos deixa expostos à perplexidade daquilo para o qual não conseguimos dar representação com nossos pensamentos ou experiências prévias; nos expõe a pensar um novo, um pensar fazendo, em um movimento simultâneo.

Continuo o relato.

O pai toma a palavra no início da entrevista e se queixa reiteradamente dos episódios difíceis e irritantes vividos com o filho ausente.

A filha diz que, para ela, o irmão já nem sequer é importante - que, para ela, ele "já era", expressão que remete a algo que terminou. Começa a contar dolorosamente episódios em que o irmão batia nela ou lhe tirava coisas, quando era criança. Mostra-se triste e com raiva: - Vocês não acreditavam em mim...

Os pais: - Achávamos que era coisa de irmãos, de crianças.

Observam-se expressões de incredulidade, como estupefatos diante de tanto sofrimento. Quase ao final da entrevista, a mãe diz: - X teria que vir, ele também é da família.

A irmã então se opõe: - Se ele vier, eu não venho. Sem problema, mas que venham vocês!

Pai: - A verdade é que eu gostaria que X decidisse já o que vai fazer com sua vida. O melhor seria talvez que fosse embora de casa, viver em um apartamento.

Mãe: - Tudo o que foi dito é verdade, mas não quero que ele seja expulso.

Que vá embora, que fique, formulações que respondem à lógica dos lugares, muito comum nas desvinculações. Pareceria que há uma ideia de que a operação vincular, de se desvincular, vai passar pelo ato de ir embora ou de ficar em algum espaço. Lugar remete tanto ao geográfico como ao que foi instituído nas relações de parentesco, assim como ao uso metafórico no ato de dar lugar. Tanto no direito como na vincularidade.

Ter lugar, ocupar lugar, fazer lugar, habitar não são as mesmas operações. Haverá um lugar de onde ir-se ou onde ficar? As desvinculações requerem a demarcação de um território vincular e a determinação de novos territórios. Essa é a tarefa mais árdua.

Nessa família, a queixa é reiterada, enunciada como denúncia do mal-estar promovido pelo filho supostamente doente, do caos promovido por todas as condutas dele. Isso foi produzindo uma impossibilidade de pensar a partir do que acontece entre eles, entre todos eles, e como o pertencimento a essa vincularidade produziu lugares fixos, modos de se compor. Essa proposta de dissolver argumentos, preconceitos, modos de fazer se mostra bastante oposta ao tão bem-aceito diagnóstico segundo o qual eles "não têm nada a ver".

 

Vinheta

- Outro dia foi o aniversário de X e quisemos festejar como sempre, indo jantar todos juntos. Ele não quis. Depois propusemos que fizesse algo com os amigos. Ele não quis. Ele só queria que fosse um dia como todos os outros, ou fazer o que lhe conviesse. Ficamos bravos. No final, veio comer conosco.

O movimento das diferenças nas configurações familiares é complexo.

O outro se manifesta perturbando muitas vezes as crenças, os valores, o que é consensual. "Como sempre" é um enunciado que não dá muita margem para o inédito.

A vincularidade costuma se associar com a figura do outro. É necessário rever essa noção, porque, se o outro remete a outro sujeito, retornamos à ideia de sujeito que supõe a possibilidade de transformação do que é heterogêneo, a fim de poder compreendê-lo e representá-lo, e isto só é possível se o outro é trazido inteiramente para si. O si mesmo fica imune frente ao outro, àquilo que ameaça fissurar ou deixar à mostra as fissuras da mesmidade. Talvez seja mais consistente pensar no outro, nessa alteridade, que se produz na vincularidade.

As diferenças de diferenças - ou seja, não só o diferente, mas o que é descontinuidade - requerem a produção de um deslocamento. Como dizem Deleuze e Guattari, uma desterritorialização que requer sair do lugar "é o movimento através do qual o território é abandonado. É a operação da linha de fuga" (2002, p. 517).

A irrupção daquilo que perturba a mesmidade - chame-se ajenidad2, alteridade, inesperado, imprevisível -, mais do que requerer a abertura de um espaço para isso, requer sair do que já estava demarcado e aprovado como o que deve ser, como o normal, como o esperado.

Nessa família implicaria sair do "como sempre" daquilo que demarcou a fronteira entre sãos e doentes, organizados e desorganizados, aceitáveis e marginais, e pensar o que está acontecendo com eles, a partir de um novo território emocional vincular; implicaria não querer levar ao seu território quem supostamente está fora dele, perturbando-os (querer comemorar o aniversário de outra maneira), mas criar outro território que os envolva em uma nova zona de diferença.

O ir estando entre outros requer esse movimento em que, simultaneamente, sem deixar de ter um lugar, se possa sair dele para ir habitando novos territórios.

Essa família nos propõe desafios múltiplos. Um deles é a possibilidade de não ficarmos presos à ideia de que nessa consulta sim serão encontrados o diagnóstico e a estratégia que irá resolver o problema que apresentam, já que outros (vários terapeutas) não conseguiram resolvê-lo. Acho que o desafio mais complexo é o de descentralizar a figura que concentra o conflito familiar e envolver-se na possibilidade da produção de um encontro entre eles, entre eles e o analista, pensando encontro como contrário de re-conhecer-se. Ou seja, isso nos levaria a deixar-nos atravessar por uma zona de incerteza, a permitir-nos intervir a partir desse espaço, que é difícil de transitar, incluindo o fato de que a família chega com uma situação de intenso sofrimento - sobretudo, com a ideia de que tem um obstáculo a ser removido e que se chama filho doente.

Outra possibilidade é pensar em um obstáculo não como algo a ser removido, mas como algo que motivou outra consulta, a busca de novos modos de fazer entre eles.

Essa consulta nos convida a criar algum dispositivo, um errar, ou seja, percorrer sem certezas, acompanhados pelo desejo e pela curiosidade de gerar uma nova experiência vincular que tenha a potência de nos afetar.

 

Referências

Berenstein, I. (2007). Consideraciones psicoanalíticas sobre Familia. Texto não publicado. (Trabalho apresentado no Simpósio da Federação Psicanalítica da América Latina, em Buenos Aires).         [ Links ]

Berenstein, I. & Kleiman, S. (2006). Historia, situación y práctica psicoanalítica. Texto não publicado. (Trabalho apresentado em workshop no Congresso da Federação Psicanalítica da América Latina).         [ Links ]

Borges, J. L. (2006). Ficciones. Buenos Aires: Emecé         [ Links ].

Deleuze, G. & Guattari, F. (2002). Mil mesetas (J. Vázquez, trad.). Valencia: Pre-textos.         [ Links ]

Deleuze, G. & Parnet, C. (1980). Diálogos (J. Vázquez, trad.). Valencia: Pre-Textos.         [ Links ]

Fernández, A. M. (2009). Las diferencias desigualadas: multiplicidades, invenciones políticas y transdisciplina. Revista Nómadas: pluralismo y crítica en las ciencias sociales, 30,22-33.         [ Links ]

Rolnik, S. (1989). Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Sonia Kleiman
Avenida Santa Fe 3942 6 D (1425) caba
Buenos Aires, Argentina
soniakleiman@gmail.com

Recebido em 6.3.2014
Aceito em 21.3.2014

 

 

1 Trad. José Colaço Barreiros.
2 Nota do editor: na teoria vincular desenvolvida por Isidoro Berenstein, o conceito de ajenidad diz respeito àquilo que é, em última instância, inacessível no outro, nunca alcançável e, por isso, perturbador.

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