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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.1 São Paulo ene./abr. 2014

 

INTERFACE

 

Escutas em análise I Escutas poéticas1

 

Analytic listening / Poetic listening

 

Escuchas en análisis / Escuchas poéticas

 

 

Luís Claudio Figueiredo

Psicanalista, docente da Universidade de São Paulo (USP) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

Correspondência

 

 


RESUMO

O texto está dividido em duas partes: (I) a diversidade das estratégias de escuta em psicanálise a partir de Freud, e (II) as correlações entre o que fazemos como psicanalistas e o que fazem nossos colegas que exercem sua hermenêutica sobre textos literários, em especial, poesias. Tentaremos ir além da resposta clichê: "Escuta-se em atenção flutuante". Como posição ética, a atenção flutuante se mantém ao longo de toda a nossa história; em termos técnicos, os procedimentos vão se diferenciando, sucedendo e articulando em função dos avanços metapsicológicos e psicopatológicos na psicanálise. Hoje prevalece o que convém chamar de escuta polifônica.

Palavras-chave: atenção flutuante; ética da escuta; procedimentos de escuta; escuta poética.


ABSTRACT

The paper is divided into two parts: the first one deals with the diversity of strategies for listening in psychoanalysis taking Freud as a starting point; in the second part, correlations are established between what we do as psychoanalysts and what is done by our colleagues who exercise hermeneutics on literary texts and, in particular, poetry. We try to go beyond the standard answer: "Listening with evenly hovering attention". As an ethical standpoint, floating attention persists throughout our entire history, but in technical terms the procedures differ, succeed each other and articulate themselves around metapsychological and psychopathological advances in psychoanalysis. Today, what prevails is that which we can call "polyphonic listening".

Keywords: evenly hovering attention; ethics of listening; listening procedures; poetic listening.


RESUMEN

El trabajo se divide en dos partes: una historia del psicoanálisis como historia de los procedimientos de atención (escucha), mientras la ética de la atención flotante se mantiene, y un estudio de las correspondencias entre la atención en análisis y las formas de lectura e interpretación de obras literarias.

Palabras clave: atención flotante; ética de la escucha; procedimientos en la escucha; escucha poética.


 

 

O texto está dividido em duas partes: a primeira trata da diversidade das estratégias de escuta em psicanálise; na segunda, vamos propor algumas correlações entre o que fazemos como psicanalistas e o que fazem nossos colegas que exercem sua hermenêutica sobre textos literários.

 

1. Escutas em análise

Afirmar que o analista escuta em "atenção flutuante", repetindo o que aprendemos com Freud em seus artigos técnicos de cem anos atrás (Freud, 1912/1992), é tão certo e necessário quanto insuficiente. É sempre importante retornar a esta disposição de mente, mas as estratégias de escuta foram se multiplicando e ficando mais complexas, sem que por isso o procedimento inventado por Freud tenha se tornado obsoleto. É necessário diferenciar os aspectos éticos dos técnicos na proposta freudiana de uma "escuta livremente flutuante": a ética será em parte conservada e em parte transformada nas modalidades de escuta criadas por autores pós-freudianos até os dias de hoje. O caminho das práticas analíticas foi na direção de uma concepção cada vez mais complexa de escuta, em prol da expansão das capacidades do atendimento analítico de variadas formas de sofrimento psíquico.

Tentaremos recontar a história da psicanálise pelo viés das estratégias de escuta, desde Freud e a escuta do inconsciente recalcado (reprimido) nos padecimentos neuróticos até a escuta de outras dimensões inconscientes do psiquismo, decisivas no atendimento aos pade-cimentos psicóticos e narcísico-identitários. Nossa história irá destacar cinco momentos, e mais um sexto, o dos dias atuais.

Que a psicanálise possa ser concebida como uma terapia pela fala deixa-nos preparados para vê-la apresentada, de forma mais essencial, como uma terapia pela escuta. Esta proposta, que encontramos no livro de Salman Akhtar (2012), define nosso principal trabalho: escutar. Sem isso, nada feito; mas feito isso, quase nada mais, em muitos casos, restará a fazer. Sem a escuta analítica, não se instala uma situação analisante. Quando esta estiver bem instalada, poderemos contar com sua dinâmica própria para a produção dos mais eficazes processos de transformação a que podemos almejar.

No livro de Akhtar, encontramos também um pleno reconhecimento da complexidade da tarefa e da diversidade das estratégias psicanalíticas de escuta em nossas práticas atuais. Percebemos como caminhamos de uma noção restrita a uma noção ampliada e diversificada de escuta em análise. Como veremos, a questão da diversidade das estratégias da escuta em análise está articulada a questões psicopatológicas e metapsicológicas: novas compreensões de casos clínicos nos atendimentos psicanalíticos tanto geram novas expansões e refinamentos teóricos quanto requerem novos procedimentos de escuta.

Para compor esta "história da psicanálise" na forma de uma história das escutas psi-canalíticas, precisaremos de uma definição básica. Nas escutas em análise, a ideia é dar atenção às dimensões inconscientes do psiquismo a partir do que se "manifesta". Trata-se de uma escuta clínica voltada para os sofrimentos do sujeito, mas de uma escuta particularmente endereçada às diversas dimensões inconscientes destes sofrimentos.

 

O momento freudiano2 da criação: a "atenção livremente flutuante"

Quando o método psicanalítico foi criado (o momento freudiano; cf. Bollas, 2007), "atenção flutuante" implicava tanto um procedimento como uma disposição de mente. Sustentaremos a necessidade de diferenciar a dimensão ética da dimensão técnica, bem como considerar seu entrelaçamento no método psicanalítico.

O procedimento era o acompanhamento paciente e meticuloso (mas não obsessivo) das trilhas associativas da fala em associação livre, o que devia ser feito com o mínimo de interferências, interrupções e/ou induções, e com uma sensibilidade aguda às irregularidades, aos detalhes, às lacunas e aos fragmentos.

A posição do analista (sua ética) para propiciar tal procedimento implicava o chamado "encontro entre inconscientes": manter-se em reserva e deixar-se entregue ao próprio trabalho inconsciente para sustentar esta sensibilidade especial aos efeitos do inconsciente recalcado na fala do paciente em associação livre.

Cabe ressaltar o indispensável entrelaçamento entre posição e procedimento: a posição ética é condição do procedimento, e este é a realização da ética.

Cabe-nos ainda chamar a atenção para a correspondência perfeita entre, de um lado, a dimensão técnica da atenção flutuante, e sua sustentação ética, e de outro, a teoria topográfica da mente: trata-se, nesta primeira proposta freudiana para a escuta, de escutar o inconsciente recalcado segundo o modelo do sonho. Há que se considerar a transferência, antes de tudo, como processo intrapsíquico: a transferência das fantasias de desejo infantis recalcadas ao material pré-consciente. Esta é a transferência com t minúsculo, considerada por Bollas (2007) como fundamental no tratamento psicanalítico. Dela decorre a importância das trilhas associativas e do seu acompanhamento, o que, segundo Bollas, perdeu-se de vista em boa parte da psicanálise posterior a Freud. De fato, considerar apenas a transferência como processo intersubjetivo (a transferência com T maiúsculo, de acordo com Bollas) tende a colocar a escuta analítica em outra via. Parece-nos evidente que a relação entre as duas dimensões da transferência é básica na escuta freudiana - ao menos, antes de 1914.

 

A unidade se rompe: o segundo momento freudiano e a escuta gestáltica

Eis que a unidade teoria/técnica/ética se rompe para Freud em 1914, o que se reitera em 1925, inaugurando um "segundo momento freudiano".

Isso fica mais evidente quando a noção de inconsciente, a partir de 1923, precisa ser reconsiderada na teoria estrutural da mente. Nesse momento, Freud nos fala da necessidade de levar em consideração outras dimensões inconscientes do psiquismo além do inconsciente recalcado:

A investigação patológica orientou demasiadamente nossa atenção na direção do recalcado (reprimido). Gostaríamos de averiguar mais acerca do eu, já que sabemos que ele pode ser inconsciente no sentido genuíno deste termo ... Acabamos de ver quantos sentidos variados este caráter [de ser inconsciente] pode apresentar (Freud, 1923/1992, p. 21)3.

O que se havia antecipado em 1914 fora a questão das resistências. Freud reconstitui ali a história do método analítico e afirma: "Estabelece-se então uma nova divisão de trabalho. O médico revela ao doente resistências que este desconhece e, uma vez que elas sejam vencidas, o sujeito relata sem esforço algum as situações e relações esquecidas" (Freud, 1914/1992, p. 149).

O que se reitera e aprofunda em 1925 é a diferença entre análises que podem ser conduzidas apenas com as indicações metodológicas anteriores - o acompanhamento das trilhas associativas, muitas vezes precedido pela identificação das resistências - e aquelas que devem enfrentar resistências maiores, mais recalcitrantes, em que uma laboriosa análise das resistências é precondição para a emergência do material recalcado, se é que isso chega a ocorrer. Estas resistências mais poderosas estão ligadas ao que Freud, em 1923, chamou de reação terapêutica negativa, e envolvem, principalmente, o conluio entre as resistências do isso e as resistências superegoicas, somando-se às muitas resistências do eu (cf. Freud, 1923/1992, 1926/1992). Em alguns casos, a análise ficaria inviabilizada.

Mas como fica a escuta analítica nestas condições, as das análises difíceis? A proposta técnica de Anna Freud em 1936, baseada na teoria estrutural e em resposta a esta questão, nos oferece um programa de escuta complexa: é preciso escutar o isso, o eu e o supereu em seus aspectos inconscientes. Mas ainda resta a questão do procedimento: como?

Outros analistas trataram desta questão sem teorizá-la. São os trabalhos no campo das resistências narcisistas e da chamada "análise do caráter", como os de Abraham, Fenichel, Balint e Reich, que nos colocam na pista de uma eventual solução. O que eles realizam é uma escuta gestáltica dos sistemas resistenciais: forma, estilos, modo de funcionamento, atmosferas relacionais tornam-se os objetos de suas considerações, caracterizando o que pode ser denominado de "escuta estética" ou empática. Em vez de fragmentos, lacunas e sequências, capta-se uma totalidade, um estilo, um modo de funcionar, um sistema resistencial em que se manifestam. Sobre isso, Freud jamais teorizou, mas o que Abraham fez, por exemplo, era a decorrência natural do que Freud antecipara em 1914 e explicitará em termos metapsicológicos em 1923. Por isso, embora não venha com a assinatura de Freud, é de um segundo momento freudiano que se trata.

 

O momento kleiniano

Bem antes da proposta de Anna Freud (1936/1983), Melanie Klein já vinha praticando uma psicanálise que comportava uma efetiva ampliação e diversificação da escuta. Sua técnica do brincar na análise de crianças pequenas incluía o modelo da associação livre dos adultos - o brincar seria o equivalente da fala em associação livre -, mas considerava outras dimensões inconscientes: mecanismos de defesa, ansiedades e relações de objeto, tudo abarcado por seu conceito de "fantasias inconscientes". Desta modalidade de escuta ampliada decorre a noção de posição, proposta em 1935. Tal noção implica uma estratégia de escuta complexa. A variedade dos aspectos e dimensões a serem "escutados" fica patente em uma lista apresentada por sua seguidora S. Isaacs (1939), em que se assinala a multidimensionalidade do nosso material de trabalho: escutamos desejos, sonhos, associações livres, atitudes, comportamentos, posturas etc. Tudo é necessário para a escuta das posições.

Apesar das inovações técnicas, acreditamos que a autora ainda está dando pleno desenvolvimento aos "momentos freudianos", baseados na primeira e na segunda tópica de Freud. Esta ampliação e complexificação da escuta analítica, contudo, já inaugura o que estamos denominando de momento kleiniano.

Melanie Klein estabelece o que marca de forma ainda mais decisiva o momento kleiniano de nossa arte ao propor o conceito de identificação projetiva, em 1946. A questão da escuta volta a se colocar, exigindo soluções novas. Como escutar - ou identificar - identificações projetivas, vale dizer, a projeção fantasiosa e inconsciente das partes não assimiladas do psiquismo sobre alguns objetos do eu? Como a identificação projetiva é uma "fantasia com efeitos reais" (Klein, 1946/1984), sua escuta só pode se dar pela mediação destes efeitos, ou seja, pela mediação dos efeitos que exerce sobre o analista, um objeto privilegiado para recebê-la, isto é, para sofrê-la. Thomas Ogden (1992) deixa claro: é na contratransferência que sofremos o impacto das identificações projetivas, sempre que sentimos nossa mente sendo invadida e controlada, a rigor, "colonizada" e "agida", por uma espécie de corpo estranho.

A contratransferência não é nunca redutível aos afetos e ideias, desejos e angústias, que sentimos diante do paciente, mas algo inconsciente que se manifesta em tais produtos. No caso das contratransferências geradas pelas identificações projetivas, igualmente, do que podemos ter consciência é de uma perda de liberdade, um ataque à nossa condição básica de neutralidade, à nossa capacidade de sustentar a disposição de mente analítica. Tudo o mais há de ser interpretado, elaborado, perlaborado, transformado no trabalho que o analista deve fazer consigo mesmo, isto é, com suas resistências.

Acreditamos que o momento kleiniano da escuta exigirá, por isso, um passo adiante, caracterizando o momento bioniano na história da escuta em análise. Os trabalhos de orientação kleiniana que focalizam as questões contratransferenciais no plano da técnica (como os de Paula Heimann e H. Racker), embora muito interessantes, conduzem a impasses que requerem um novo pensamento clínico, uma nova escuta. A estes impasses faremos referência adiante.

 

O momento bioniano

De um lado, encontramos em Bion a estratégia da escuta imaginativa no sonho/rêverie, algo que se dá para além da contratransferência, vale dizer, para além do campo das meras reações contratransferenciais do analista às transferências do paciente. Liberto das identificações projetivas invasivas e controladoras, o analista pode fazer do material que lhe foi delegado - frequentemente tóxico e corrosivo - matéria para suas rêveries. A rêverie converte-se, assim, em uma espécie de dispositivo de escuta. Escuta-se sonhando e interpretando os próprios "sonhos condicionados" - uma expressão antiga de Robert Fliess (1942).

No entanto, para que a libertação ocorra - isto é, para que a capacidade de rêverie ultrapasse o aprisionamento no campo transferencial-contratransferencial - e, mais ainda, para que se torne possível interpretar as próprias rêveries em termos de "sonho condicionado" pelo material psíquico do paciente (implantado no analista pela via da identificação projetiva), é preciso levar em conta a retomada bioniana da problemática ética de Freud. O lema "sem memória, sem desejo e sem compreensão prévia" nos parece uma explicitação da atenção flutuante em sua dimensão ética, tornada mais difícil, complexa, arriscada e necessária diante das identificações projetivas e da clínica com pacientes psicóticos, em que a escuta kleiniana corria o risco da saturação. Embora a identificação projetiva seja um mecanismo normal e saudável no começo da vida, sua permanência e sua exacerbação, seu uso maciço, em crianças maiores, em adolescentes e adultos, indicam a intensidade de núcleos psicóticos nestes psiquismos adoecidos. É com estes pacientes que se torna mais imperiosa a renovação da problemática ética, de forma a dar sustentação às modalidades de escuta que então precisam ser exercitadas.

Mas Bion ainda nos oferece outro elemento relevante no plano da técnica. Vimos como, a partir de Freud, e mais ainda de Melanie Klein, o analista tem diante de si duas modalidades de escuta: uma que privilegia o fragmentar - no acompanhamento das trilhas associativas -, e outra que privilegia as totalidades, a escuta gestáltica na captação dos estilos, das resistências transformadas em sistemas, das ansiedades climáticas, das atmosferas emocionais etc. Acreditamos, concordando com J. Grotstein (2009), que o conceito de fato selecionado articula a escuta molecular com a escuta molar. O fato selecionado é um elemento, um fragmento, com potencial configurador; é algo a ser captado em um plano que se projeta sobre outros, algo que se mostra em um tempo, e se articula retrospectivamente com o passado e prospectivamente com o futuro de uma sessão, ou mesmo de um processo, que se mede em dias, semanas, meses e anos.

Acreditamos que, no pensamento de Bion, reencontramos aquela coincidência entre a teoria (freudo-kleiniana), as técnicas e a ética (a freudiana renovada), que só se manifestara no primeiro momento freudiano e que, de certa forma, não fora reencontrada nem no segundo momento de Freud nem no momento kleiniano, que haviam sido, não obstante, momentos decisivos e revolucionários neste trajeto.

Mas história não termina aí.

 

O quinto momento: a escuta das tendências e necessidades do eu em Winnicott e Kohut

O novo momento da escuta recoloca em questão a escuta empática. Analistas como Winnicott e Kohut, por vias bem diferentes, focalizaram a problemática dos cuidados básicos essenciais na constituição narcísica e de como falhas em tais cuidados deixam marcas difíceis de serem acessadas, ainda quando produzem algum estrépito, como nas fúrias narcisistas descritas por Kohut. Na verdade, mesmo nos casos dos "narcisistas furiosos", dos grandes exibidos e reivindicadores, e mais ainda no caso dos "adaptados", os pacientes falso-self descritos por Winnicott, o sofrimento mantém-se quase inaudível, totalmente emudecido e mascarado pela superadaptação ou pela dramatização histeriforme.

As necessidades do eu, quando precocemente traumatizadas, ou seja, quando não foram encontradas e reconhecidas sistematicamente pelos objetos primários, tendem a se retrair e permanecer silenciosas, enregeladas, petrificadas e clivadas. Não adianta dedicar-se a interpretar os estados de fúria, as "cenas", as reivindicações e o exibicionismo; tudo isso precisa ser transposto para termos acesso ao que timidamente se protege no silêncio e no deserto gelado. É tentador lidar com estes produtos como se estivéssemos lidando com retornos do recalcado ou com identificações projetivas, mas seria um erro ir por esta via, ignorando a operação de defesas mais arcaicas. É preciso ir ao encontro e reconhecer justamente o que se mantém no silêncio; mas como escutar o inaudível?

Ferenczi, a partir dos casos difíceis, nos fala em "tato", sua compreensão da empatia: o tato psicológico "é a faculdade de sentir com - (Einfühlung)", que nos permite "adivinhar não só os pensamentos retidos do paciente, mas também as tendências que lhe são inconscientes" (Ferenczi, 1927-1928/1992, p. 27). A empatia põe o analista em contato (com tato) com o inconsciente recalcado ("pensamentos retidos") e também com os processos inconscientes ("tendências"). Ferenczi, apesar de tão breve passagem pelo conceito de "empatia", é o autor decisivo na história que nos leva a Winnicott e Kohut.

A estratégia da escuta empática, ou seja, do acesso empático a estados do eu - ou do self -, tornou-se tanto mais importante quanto mais avançava a pesquisa no campo da escuta dos processos inconscientes não decorrentes dos desejos infantis recalcados e das descargas por identificação projetiva. Diversos autores (só em 1959 foram três artigos importantes) dedicaram-se ao tema, considerando-o de relevância para toda a escuta em psicanálise. Mas, certamente, esta importância aumenta ainda mais quando o que há para ser escutado são as falhas na constituição narcísica, que produzem a mudez e o silêncio, e o que parecem ser vazios, deficit.

Winnicott aborda este tema a partir da reconstituição que propõe para a formação do self, processo que ressalta a importância do encontro e reconhecimento das necessidades básicas do eu - a necessidade de uma sustentação que garanta a continuidade de ser. Em Kohut, trata-se das necessidades de aceitação e reconhecimento das fantasias de grandiosidade do self, e de aceitação e suporte da idealização do outro, o que favoreceria a passagem do narcisismo primário e fusional ao estado de relativa separação e autonomia do self amadurecido.

O que Winnicott nos fala sobre a preocupação materna primária, a mutualidade e o início da comunicação intencional do bebê com sua mãe, e de como ela interpreta e responde a estes primeiros signos, lança os fundamentos da escuta empática segundo este autor. A problemática da resposta empática dos objetos esteve também no centro da self psychology desenvolvida por Kohut, que sempre se preocupara com a empatia em todo o campo das práticas psicanalíticas (Kohut, 1959). É a partir de sua nova teoria que ele dá à empatia uma maior ênfase e um maior alcance cognitivo, emocional e formador (Kohut, 1982).

A questão permanece: como ir ao encontro e reconhecer as necessidades narcísicas em estado embrionário de emudecimento, retraimento, congelamento nos pacientes que nos procuram? Em que apoiar uma escuta empática quando os retornos do recalcado ou as identificações projetivas não são o mais importante? O que e como "ouvir" quando os sistemas resistenciais - o caráter, por exemplo - não são o mais importante?

Sabemos que, em uma análise, mesmo que se acredite piamente nas reconstituições sugeridas por Winnicott e Kohut, não se criam as condições para uma regressão perfeita que (re)coloque o analista em estado de preocupação materna primária ou de mutualidade, modelos oferecidos pelo analista inglês para uma empatia tão completa que, a rigor, seria anterior à separação entre mãe e bebê - anterior, portanto, à própria empatia no sentido preciso.

Por outro lado, como saber que aquilo que se faz passar por empatia não é uma identificação projetiva do analista disfarçada, lançada sobre e para dentro de seu paciente?

Cremos que aqui não conseguiremos avançar sem considerar a problemática dos enactments e dos contraenactments, comunicações que se dão no limiar da linguagem, na escala inferior das fantasias, antes mesmo que elas ingressem no campo do sentido, quando se manifestam nos corpos e suas expressões mais rudimentares, quando seu endereçamento ao outro mal está se esboçando. Mas é claro que este é um terreno extremamente nebuloso, enigmático, incerto, em que precisamos caminhar tateando; um terreno em que nossa capacidade de reserva é extremamente exigida, e em que esta mesma capacidade é muito prejudicada pela exigência de responder - responder prontamente e com tato.

Uma clínica inspirada em Winnicott ou Kohut é particularmente propensa a confundir empatia com projeções do analista, especialmente as projeções de seus pressupostos teóricos. O risco simétrico é o de, sob a capa de empatia, o analista simplesmente atuar as identificações a que é submetido na relação transferencial, um caso de contraidentificação. A clínica pode converter-se em "teoria aplicada", em pura ideologia ou em conluio. Talvez esta nova modalidade de escuta ainda não haja encontrado "o seu Bion", isto é, um pensador que reponha a problemática ética da atenção livremente flutuante em correlação com os procedimentos empáticos. Bion, em seu "retorno a Freud", nos ajudara a enfrentar a saturação da escuta em que a clínica kleiniana poderia resultar. Como repor a questão ética no contexto do que se apresenta como "empatia" com estados rudimentares e silenciosos do self? O "sexto momento" pode nos ajudar nesta questão.

 

A complexidade da escuta na psicanálise contemporânea: o sexto momento

Pensamos que a complexidade das escutas se impõe nas práticas da psicanálise contemporánea porque hoje podemos reconhecer tanto as virtudes quanto os limites de todas as estratégias, enfatizando-se, em contrapartida, a vigência do primeiro momento freudiano e, em grande medida, a do momento bioniano. Estes momentos, como nos abrem para o inesperado, pois comportam um manter-se à espera do não esperado - sem memória, sem desejo e sem compreensão prévia -, serão sempre o melhor dos antídotos contra a saturação do campo da escuta analítica, a melhor bússola na viagem meio às cegas que uma análise realiza, e que só se realiza bem meio às cegas.

Mas é tempo de passarmos ao tema da escuta poética, até porque algumas ideias sobre escuta em análise ficarão mais claras quando formos tentando algumas correspondências entre os dois campos.

 

2. A escuta poética

Recomecemos por onde começou Davi Arrigucci Jr. (2013): a escuta poética do poeta. A esta questão somam-se as considerações de Murilo Marcondes de Moura (2013) sobre as imagens poéticas. Como e o que escuta o poeta no mundo, em sua experiência, para a produção da poesia? E como a poesia age sobre nossa escuta?

Memórias em sentimento (a expressão foi tomada de Melanie Klein - memories in feelings) e sua evocação pelos súbitos encontros com as coisas do mundo (a expressão é de Paulinho da Viola [1976] - "Coisas do mundo, minha nega").

Escutando o mundo e suas coisas (Zé Fuleiro, doente e azarado, seu Bento estirado bêbado na calçada, o cadáver de um homem assassinado cercado de velas), suas evocações e ressonâncias, o poeta escuta também as ressonâncias linguageiras, as transferências do afeto sobre a palavra, a partir de sua rede associativa. Deixa então que se forme uma "totalidade orgânica" - isso dá samba -, figuras feitas de palavras que nos restituem um mundo ressoante e profundamente afetado: imagens e afetos e sons e palavras em estranhas e belas correlações.

Daí a noção do poeta como abstrator: desde um súbito e inesperado encontro, vem uma súbita descoberta - encontro e desvelamento do insólito, do encantatório - e, em consequência, o desentranhar da poesia, entendida como um fazer, como um expressar e um dar a ver, por meio de imagens, analogias ou metáforas, ou por meio de uma fulminante "mostração" (como o "dar a ver" de Giuseppe Ungaretti, analisado por Murilo Marcondes de Moura), ou da revelação da coisa que a torna ao mesmo tempo muito estranha e ainda mais reconhecível do que à visão convencional (como em textos de Francis Ponge4). Mas ainda quando prevalece a nomeação pura ou metonímica, como nas "Águas de março" de Tom Jobim (1972) - "É pau, é pedra, é o fim do caminho/ É um resto de toco, é um pouco sozinho/ É um caco de vidro, é a vida, é o sol/ É a noite, é a morte, é o laço, é o anzol" -, há sempre alguma transformação, transporte, transferência, uma metáfora em ação.

No fazer que expressa e "dá a ver" da poesia, neste misterioso "deixar ser", eis-nos remetidos à noção heideggeriana da verdade: uma verdade anterior à representação, uma verdade realizada como pura presentação do que é e se mostra como sendo, o desvelamento (do grego aletheia) - um desvelamento que não se encerra no dito, mas que o transcende, sugerindo, evocando, remetendo, irradiando, questionando, pondo em suspenso, atraindo o distante, transformando, transportando, metaforizando.

Embora não façamos poesia, mesmo que nossos pacientes não sejam sempre poetas - mas alguns são, e o inconsciente de toda forma sempre é -, não é difícil encontrarmos algumas correspondências entre a escuta do mundo pelo poeta e a escuta de um analista, muitas vezes, mas nem sempre, desembocando em alguma interpretação. É de se desejar que esta interpretação não encerre o processo metaforizante, que não desfaça os enigmas, ambiguidades e insólitos, mas faça-os trabalhar.

Não é difícil aproximarmos a ideia de abstrator da velha noção freudiana do trabalho de análise agindo per via de levare, tirando e não pondo, garimpando os grãos de verdade do que lhe vem ao encontro de forma impura e caótica - o material de uma sessão, por exemplo. Ainda que hoje nosso fazer não se reduza a esta operação abstrativa - incluindo muitos elementos que agem por via de porre -, nem por isso a via de levare perdeu sua vigência e relevância, distinguindo o trabalho analítico do trabalho de outras psicoterapias pela fala, mais diretivas e sugestivas.

A ideia de garimpagem, aliás, aplica-se tanto ao poeta escutando o mundo para transformá-lo em linguagem quanto ao ouvinte ou leitor de poesia, com a notável diferença de que, no segundo caso, tudo o que, à primeira vista, pode parecer areia e ruído e obscuridade vai se mostrando, à medida que a escuta faz seu trabalho, pedras preciosas, já organizadas em joia.

Na voz do poeta lírico e em seus Ditos, reúnem-se desde o mais singular de uma experiência até o mais universal das experiências possíveis, reúnem-se o sujeito ao mundo e seus objetos, o dentro e o fora, conforme nos foi apresentado por Viviana Bosi (2013). Reconhecemos aí as antigas noções freudianas para descrever os trabalhos do sonho (Freud, 1900/1992): deslocamentos, condensações e figurações operam no fazer poético e atuam sobre as redes associativas de quem ouve ou lê o poema. Igualmente, estão em jogo os trabalhos do chiste, que incluem os do sonho, mas acrescentam uma remissão ao outro (ao que ri da piada): esta remissão faz da forma da piada algo absolutamente incomparável e, no limite, intraduzível (Freud, 1905/1992). O poema "Manhã", de Giuseppe Ungaretti (1998), recriado por Haroldo de Campos - "Deslumbro-me/ de imenso" -, mostra em sua concisão o valor insubstituível e inapreciável da forma, como, aliás, nos bons aforismos.

A escuta poética do leitor de poesia clássica e moderna exige uma atenção muito especial, para a qual a noção de atenção igualmente flutuante vem a calhar - uma escuta que se deixa atrair pelos detalhes, elipses e fragmentos, com a íntima convicção de que, remetendo-se uns aos outros de forma inesperada e des-veladora, acabarão por proporcionar uma sucessão de figuras fulgurantes. Deslumbramo-nos de imenso não só compartilhando a experiência da manhã em Ungaretti, mas escutando poesia e também escutando os inconscientes em sessão.

Esta maneira de tratar o material poético, principalmente quando a complexidade e o enigmático predominam, nos é induzida por outra forma de apreensão: captamos os climas, coloridos e atmosferas que incidem poderosamente em nossa disposição de espírito e criam as penumbras associativas dentro das quais as figuras se destacam pouco a pouco sem jamais se fixarem rigidamente. É aí "dentro", nos espaços para que somos atraídos no "interior" da experiência de linguagem, que podemos escutar as ressonâncias, as melodias, as harmonias e os ritmos. Vale dizer: estamos simultaneamente atentos aos menores indícios fragmentares e aos grandes horizontes afetivos e cognitivos que o texto nos abre, e mais que tudo, ficamos atentos às idas e vindas, às passagens e repercussões, de um plano sobre os outros. São os mesmos movimentos que reconheço na escuta psicanalítica.

No entanto, esta escuta extremamente complexa requer um ponto de partida - ou alguns, pois eles podem se multiplicar e deslocar à medida que a escuta faz seu trabalho. Aqui podemos valer-nos de um conceito oferecido por Erich Auerbach ao expor seu método de escuta, ou análise, de textos.

Este método foi perfeitamente descrito em seu ensaio "Filologia da literatura mundial" (Auerbach, 1952/2007). O que ele expõe é a importância de um ponto de partida que pode ser encontrado em quase qualquer aspecto do objeto em exame - não há como prever o que irá emergir como Ansatzpunkt para dar início ao trabalho interpretativo, "não há" - como nos informa Samuel Titan Jr. - "como determinar de antemão a classe de fenômenos ... que deve interessar o leitor" (2007, p. 8): pode ser uma palavra isolada, uma repetição, uma sonoridade, um modo de dirigir-se ao objeto ou ao leitor etc.

Ora, esta indeterminação nos leva de volta ao conceito de "atenção flutuante", exercida desde uma identificação prévia com a obra. O ponto de partida em Auerbach, longe de simplesmente desligar e desconstruir, é um fator de síntese, pois "a interpretação destes fenômenos deve ter força de irradiação suficiente para ordenar e interpretar um conjunto de fenômenos muito mais amplo que o original" (1952/2007, p. 369). O que ocorre é que uma totalidade é desconstruída pela atenção ao detalhe, mas a atenção dada a este detalhe gera uma nova forma, capaz de esclarecer - mesmo que parcialmente - as forças e sentidos em jogo naquele campo de tensões.

A relação com o conceito de fato selecionado, emprestado por Bion a Poincaré para descrever um procedimento decisivo da escuta analítica, é evidente. Fato selecionado e ponto de irradiação dizem a mesma coisa.

As correlações entre as escutas poéticas e as escutas em análise nos parecem mais do que sugestivas: o que dissemos das duas escutas freudianas, da escuta kleiniana e da escuta bioniana encontra ressonâncias quase perfeitas com o que aprendemos sobre as escutas poéticas, e mesmo as escutas musicais tratadas por Lorenzo Mammi (2013). No entanto, a escuta das necessidades mudas, dos sofrimentos em que a palavra falta, parece nos obrigar a outros passos, a outros caminhos. Tentaremos, tateando, dar estes passos considerando algo que nos foi ensinado por Viviana Bosi acerca da poesia contemporânea e, em especial, considerando um poeta que ela introduziu ao final de sua fala, sem submetê-lo a uma escuta muito detida: Paul Celan. Neste momento, precisaremos também recorrer às lições de Lorenzo Mammi para falar das dissonâncias internas, dos esfacelamentos da experiência, da perda da unidade da voz. Isso também nos ajudará a ler Celan.

 

A escuta poética da poesia contemporânea: indo além do reprimido na leitura do poema Confiança de Paul Celan

O sujeito lírico contemporâneo é identificado por Viviana Bosi como um sujeito pedra, um sujeito "quase-não-mais-sujeito", carente de mundo e de transcendência5; em Lorenzo Mammi encontramos a ideia do sujeito rachado, incapaz de organizar de forma unificada o campo de suas experiências, de modo a reuni-las sob o domínio de uma voz no sistema tonal criado no início da Idade Moderna. É como se hoje precisássemos retomar, de um novo jeito, a tradição modal da Idade Média e a tradição polifônica renascentista. Cada sujeito comunica-se consigo, com o mundo e com os outros em diferentes modos e com diferentes vozes, ora alternadas, ora sobrepostas, ora contrapostas. Mas, porque épedra, em todos estes modos e vozes, faltam-lhe palavras, faltam os veículos da transcendência, do transporte e da metaforização - mas, porque épedra, falta-lhe contato.

Estamos, naturalmente, no campo das situações traumáticas, as que esfacelam e emudecem. Adorno, em 1949, chegou a afirmar: "Escrever poesia após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossível escrever poemas" (1998, p. 26). Enfim, há como fazer poesia depois de Auschwitz? Cabe também perguntar: como escutar a poesia que ainda se faz como se ainda houvesse ouvintes e leitores de poesia?

Paul Celan, judeu romeno, escrevia em alemão; adotou a França como residência, e o francês como língua prosaica - inclusive na criação anagramática do sobrenome, que de Antschel (Ancel) virou Celan. Pais presos e a mãe assassinada pelos nazistas, diversas experiências de perseguição, confinamento, exílio etc. Consagrado como um dos maiores poetas do século XX em língua alemã, suicidou-se perto dos 50 anos jogando-se no Sena.

Celan é frequentemente apresentado como poeta hermético, quase inacessível. No entanto, em suas próprias palavras: "Somente mãos verdadeiras escrevem poemas verdadeiros. Não vejo diferença de princípio entre um aperto de mãos e um poema" (Celan, citado por Lévinas, 1976, p. 49).

Com estas palavras, escritas por Celan ao amigo Hans Bender, Lévinas inicia seu ensaio sobre Celan, "De l'être à l'autre", colocando o poeta entre Heidegger - o pensador do Ser - e ele mesmo, o filósofo da outridade, passando também por Buber, o pensador do diálogo. Eis Celan situado entre a ontologia e a ética, indo de uma à outra; certamente, um aperto de mãos verdadeiras cabe bem mais nos termos de Buber ou Lévinas do que nos heideggerianos. O que há de mais simples e direto que um aperto de mãos?

Não é sem ironia que Lévinas escuta a voz de Celan como a "entrada do mendigo na morada do ser" (1976, p. 50, itálico do autor), grifando este termo pelo qual Heidegger definia o campo da linguagem. Um aperto de mãos, uma mão que se oferece, signo que nada desvela, um Dizer sem Dito que não instala um mundo, apenas procura a mão estendida que complete seu gesto e faça contato.

Não temos tempo e espaço para investigar a fundo esta noção de verdade - "mãos verdadeiras" -, que já não se coloca no campo de uma teoria do conhecimento nem no campo de uma ontologia fundamental, mas no campo da ética: em que outro sentido um aperto de "mãos verdadeiras" poderia ser tratado? Ao ouvirmos falar do mendigo pedindo entrada no campo da linguagem - a morada do ser -, ocorre-nos o movimento de um recém-nascido esgueirando-se para dentro do mundo do sentido, e é o próprio Lévinas que nos diz: "Comunicação elementar, infância balbuciante do discurso, inserção bem desajeitada na famosa língua que fala, na famosa die Sprache spricht" (p. 49), outra alusão irônica ao filósofo alemão, e filo-nazista.

Em seu pequeno ensaio, Lévinas baseia-se também no discurso proferido por Celan ao receber o prêmio Georg Büchner, em 1960, publicado como "O meridiano". Neste texto, fica evidente que "o poema quer o outro, precisa de um parceiro. Ele o procura, adéqua-se a ele. Cada coisa, cada pessoa é um poema que se dirige ao Outro, figura desse Outro". Mas nesta procura, nesta tentativa de diálogo, "muitas vezes um diálogo desesperado", ele mostra "uma forte e inegável tendência ao emudecimento". "O poema se afirma à beira de si mesmo..." (1960/2009, p. 178) - o outro na beira do poema, eventualmente uma mão estendida, eventualmente uma queda vertiginosa no abismo.

É o poema no "um para o outro", feito de palavras canhestras e insuficientes e de muitos silêncios emudecidos - o mendigo pedindo entrada na morada do ser -, solicitando o outro de si; é o recém-nascido em busca de resposta a seus signos que ainda nada significam; e é também o sujeito estilhaçado e empedrado - congelado -, recém-saído de uma situação traumática ou ainda nela, pois, destituído de toda transitividade, para este sujeito pedra, o trauma não passa.

Quando se trata de escutar o inaudível, o emudecido, a palavra assassinada, o discurso em ruínas, o mendigo pedindo entrada na morada do ser, estamos próximos do que pode ser concebido em termos do nosso quinto momento na escuta analítica. O encontro verdadeiro é aqui o encontro que se dá na verdade da resposta a um apelo em que as palavras faltam.

Entende-se que o leitor de Celan - e um psicanalista em certos casos - pode ser convocado para funcionar como um canhestro parceiro de um squiggle game mais do que como um intérprete; uma interpretação torna-se "meramente" uma resposta atenta - "a atenção é a oração natural da alma", afirma Celan citando Malebranche em "O Meridiano" (1960/2009, p. 179). Passemos à consideração do poema "Zuversicht" / "Confiança", mencionado por Viviana Bosi com o título "Esperança"6.

Seguindo uma ou outra tradução (prefiro "Confiança"), cabe de início reconhecer que se trata de um problema, não de uma afirmação. Talvez, seja O problema celaniano por excelência: é o problema de todos os sujeitos traumatizados, traídos, feridos em sua boa fé. No caso de Celan, traído pela língua: o alemão que lhe fora ensinado pela mãe era o mesmo alemão dos que a assassinaram, e também a língua dos grandes poetas que ele amava e, ainda, a língua em que escreveu poesia. O poema diz:

Confiança

Será ainda um olho,
um olho desconhecido, junto ao
nosso: mudo
sob uma pálpebra de pedra.

Venham, furem as vossas galerias!

Será um cílio,
virado para dentro na rocha,
acerado pelo que não foi chorado,
o mais fino dos fusos.

Perante vós, ele faz a sua obra
como se houvesse, porque é pedra, ainda irmãos
(Celan, 2013).

O tempo não nos concede a atenção devida a todos e a cada verso. Fiquemos ao menos com o último na forma de uma questão e de um apelo: saberemos nós ("ainda irmãos"), diante de quem o poema "faz a sua obra", como se houvesse - mas talvez não haja; de certo não há ("porque é pedra") - saberemos nós, recomeço, oferecer alguma resposta, encontrar, com a nossa, a mão estendida em nossa direção, para nesse encontro de mãos verdadeiras fazer contato? Eis a questão: uma questão ética e também uma questão estética e literária.

Diz-nos Celan: "o poema concede ao outro uma parte de sua verdade" (1960/2009, p. 179). É a parte que nos cabe, como leitor e, em muitos casos, como analista, acrescentar, per via de porre - a nossa mão estendida, a nossa "interpretação", a nossa resposta.

Precisamos nos despedir provisoriamente de Paul Celan, deixando à nossa espera as lágrimas não choradas que perfuram o cilio, o mais fino dos fusos e muitas outras imagens estendidas em nossa direção.

 

3. A escuta em psicanálise: para concluir

Reafirmemos: a escuta do desejo e seus desenhos apenas esboçados, a escuta das resistências e suas formas e sistemas, a escuta das angústias e suas criações/projeções, e a escuta das necessidades não encontradas nem reconhecidas (e por isso, petrificadas e emudecidas) requerem diferentes procedimentos, sempre articulados com a ética da atenção igualmente flutuante.

Nos dias de hoje, a noção de "atenção igualmente flutuante" deve incluir uma dimensão ainda não prevista por Freud: a flutuação entre diferentes canais de comunicação, entre as diferentes vozes - incluindo as caladas, ou entrecortadas, ou contrapontisticas, como a de Celan. Cria-se uma escuta, ampliada, diversificada, paradoxal - uma escuta verdadeiramente polifónica.

O alcance do termo vai muito além do que Freud pretendia quando cunhou o conceito. Cremos que é um "além de Freud" que nada mais faz do que continuar desbravando o campo que ele descortinou, instalou e nos legou.

Na eterna manhã da psicanálise, ainda hoje, retornamos a Freud e deslumbramo-nos nas escutas dos inconscientes. De imenso.

 

Referências

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Correspondência:
Luís Claudio Figueiredo
Rua Alcides Pertiga, 65
05413-100 São Paulo, SP
Tel.: (11) 3086-4016
lclaudio@netpoint.com.br

Recebido em 31.1.2014
Aceito em 25.2.2014

 

 

1 Este texto serviu de base para a palestra apresentada na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), no ciclo Escutas poéticas, organizado pela Diretoria de Cultura e Comunidade.
2 Título de um livro de C. Bollas dedicado à criação da psicanálise (Bollas, 2007).
3 Tradução nossa, assim como nas demais citações de obras consultadas em língua estrangeira.
4 Em Le parti pris des choses (1942), algo como um pão nos é revelado de uma proximidade tal que é como se os dedos ganhassem olhos e estes olhos ganhassem o dom da palavra e da imaginação; é o pão, mas em sua surpreendente estranheza e, no entanto, perfeitamente reconhecível e consumível.
5 Heidegger, no § 42 de Os conceitos fundamentais da metafísica (1929-1930/1992), afirma: "a pedra é sem mundo, o animal é pobre de mundo e o homem é configurador de mundo".
6 Vale assinalar que a interpretação da profª Bosi é, aparentemente, bem mais otimista e esperançosa do que a nossa.

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