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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.49 no.3 São Paulo July/Sept. 2015

 

EM PAUTA

 

A fratura da função fraterna

 

The fracture of the fraternal function

 

La fractura de la función fraternal

 

 

Eliana da Silveira Cruz Caligiuri

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

A autora narra a análise de três irmãs, no crepúsculo de suas vidas, desafio que empreendeu, transitando numa configuração singular, inspirada por um artigo de Joel Birman, "Insuficientes, um esforço a mais para sermos irmãos" (2000).

Palavras-chave: inspiração; fraternidade; função fraterna; complexo fraterno; luto.


ABSTRACT

The author describes the psychoanalysis of three sisters in the sunset of their lives. The author undertook this challenge, going through a singular configuration, inspired by Joel Birman's article, "Being insufficient, our extra effort to be brothers" (2000).

Keywords: inspiration; fraternity/brotherhood; fraternal function/brotherly function; fraternal complex/ brother complex; mourning.


RESUMEN

La autora narra el análisis conjunto de tres hermanas, en el crepúsculo de sus vidas, desafío que emprendió, transitando por una configuración singular, inspirada por un artículo de Joel Birman, "Insuficientes, un esfuerzo más para que seamos hermanos" (2000).

Palabras clave: inspiración; fraternidad; función fraternal; complejo fraterno; luto.


 

 

Inspiração

Desde 1900, na passagem do século XIX para o século XX, quando a psicanálise foi lançada ao "mar da humanidade" através de um dos textos de seu criador Sigmund Freud, o fundamental A interpretação dos sonhos, que os psicanalistas são fertilizados por produções escritas de generosos colegas, dedicados à transmissão e difusão dos conceitos elaborados durante mais de cem anos e, também, à reformulação de tais conceitos diante das transformações sociais, culturais e tecnológicas.

De tempos em tempos, somos impactados por livros e artigos para além da novidade. São escritos que provocam uma reviravolta na escuta e na compreensão das narrativas de nossos analisandos, e despertam emoções profundas em nossas almas.

Isso foi o que a mim ocorreu durante a leitura do livro Função fraterna, organizado por Maria Rita Kehl, lançado no ano 2000, data mítica da virada do século XX, cem anos após o lançamento da pedra fundamental dessa área do conhecimento da psique humana. Uma publicação fundada no desejo compartilhado de um grupo de autores com o objetivo de problematizar a função fraterna na atualidade, trazendo à luz a discussão teórica sobre a função dos semelhantes em sua primeira encarnação na vida psíquica - o irmão -, tanto na constituição de cada sujeito quanto na formação do laço social.

No interior do livro encontrei o belíssimo artigo "Insuficientes, um esforço a mais para sermos irmãos", de Joel Birman, que adquiriu, para mim, a qualidade de leitura inesquecível e emocionante, o lugar de uma inspiração.

 

A escolha

A escolha de um recorte da profunda elaboração que Birman empreende em seu texto foi necessária. Tentarei demonstrar o sentido da articulação com o caso clínico que compartilharei com o leitor.

O autor constrói parte da narrativa sobre a fraternidade, palavra que "indica, diretamente, o seu sentido etimológico originário, isto é, o frater, o irmão" (Birman, 2000, p. 176), através da análise de três filmes: Uma história verdadeira, do diretor David Lynch, Tudo sobre minha mãe, de Pedro Almodóvar, e Mifune, de Spren Jacobsen. São obras que ressaltam os temas da velhice e o laço fraternal, do feminino e o cuidado e da loucura, respectivamente.

O autor compõe o restante do texto com o aprofundamento de suas ideias, inspiradas por essas produções culturais. Para ele, fraternidade ultrapassa os laços da família e os laços de sangue.

Ao relatar a história de um homem que decide iniciar uma viagem em um trator, atravessando vários estados norte-americanos, para o reencontro com seu irmão mais velho, gravemente doente, e de quem se afastara por dez anos em virtude de um desentendimento, Birman entrelaça o laço amoroso que os unia, os traços na memória de uma vida compartilhada e ainda acrescenta um valor positivo para a culpa, caso esta fosse uma interpretação para compreender tal atitude:

ser alguém ainda empurrado por ações amorosas e altruístas pela culpa é um signo alentador de que algo da ordem do possível pode ainda nos acontecer. Vale dizer, ser ainda um sujeito capaz de reparação das faltas para com as figuras amadas é um signo crucial de que o mundo na atualidade ainda é eticamente habitável, tendo em vista que traz de volta para a existência a problemática da responsabilidade. (p. 177)

Durante o percurso, o personagem vivencia diversas situações em que a função fraterna opera: alguns encontros fortuitos em que compartilha seus parcos recursos, e outros nos quais conta com o auxílio, o acolhimento e o amparo de pessoas desconhecidas.

O que estimulava insistentemente o espírito do homem, para tal árdua empreitada, eram a memória das conversas antigas, sempre animadas, e o desejo de resgatar tudo o que se perdera no "turbilhão de duas vidas desencontradas" (p. 174).

O epílogo é o encontro emocionado do ancião, extenuado, com seu irmão mais velho, abatido pela doença, mas alegre e reconhecido com o generoso gesto.

Se a narrativa de Lynch é a respeito de dois irmãos, no filme Tudo sobre minha mãe serão as mulheres, não reunidas por laços de sangue, as heroínas da fraternidade: uma enfermeira e mãe, uma prostituta e até um simulacro de mulher como o travesti Agrado, "altruísta nos menores detalhes de sua existência" (p. 179).

Será construída em torno da enfermeira, após a trágica perda de seu filho, uma rede de mulheres que compartilham os desencantos com a vida e ajudam-se mutuamente, promovendo um conforto recíproco "e uma certa tolerância com o mal-estar da existência, que se transforma até mesmo numa experiência de alegria" (p. 180).

Para o autor, esse filme narra também a condição masculina na atualidade: a dificuldade de reconhecer a mulher em sua singularidade, gerando um desencanto e até uma impossibilidade de identificação por parte do travesti, que deseja ser mulher para cuidar do outro.

Para Birman, "o feminino é um dos polos possíveis da atualidade para algo que seja da ordem da fraternidade propriamente dita, na medida mesma em que a feminilidade implica cuidado com o outro" (p. 181).

A leitura do livro citado, especialmente do artigo que destaquei até aqui, me acompanhou em estado latente em alguns momentos e, em outros, iluminando análises em que a função fraterna saltava aos olhos de forma manifesta.

Mas nada próximo ao que ocorreu em 2009 - portanto, nove anos após a leitura.

É o que apresentarei a seguir.

 

O rompimento

Julho de 2009.

O silêncio se instaurara entre L. e suas únicas irmãs, N. e A., quatro e oito anos mais novas.

Dois anos antes de me procurar, ela rompera o contato com as irmãs em virtude de mais um desentendimento, e necessitava de ajuda para reencontrá-las e retomar a conversa.

Uma amiga em comum as aconselhara a procurar um psicanalista com disponibilidade suficiente para a circunstância apresentada, pois havia dois obstáculos a enfrentar: o ritmo dos encontros e as distâncias geográficas - as três moravam em diferentes estados do Brasil.

O texto de Birman emergiu de maneira imediata em minha mente, e a psicanálise -seu corpo teórico, técnico e seu método-me convocou à coragem de acolher uma configuração incomum.

Se a iniciativa de retomar o contato foi da mais velha das três, como no filme de Lynch seriam as mais novas que cruzariam o território brasileiro.

A primeira sessão aconteceu uma semana após o telefonema, o que indicava um desejo compartilhado de resgatar o diálogo.

 

A trajetória

Por um ano e meio nos encontramos aos domingos, segundas e quartas-feiras, três sessões seguidas de um intervalo de trinta dias entre elas.

Duas questões se apresentavam: como mantê-las ligadas ao processo? Como promover o fluxo da narrativa com interrupções de trinta em trinta dias?

Desde o início, eu não podia ocupar outra posição que não fosse ativa. A cada material surgido, eu propunha que escrevessem sobre lembranças e fatos que desejavam me comunicar e sobre as associações e reflexões surgidas a partir das sessões realizadas. Os textos eram enviados pelo correio e me mantinham em contato com três mulheres inteligentes, sensíveis e empenhadas. Eu os lia durante o mês e, nos encontros seguintes, apontava dados, palavras e comentários que haviam chamado minha atenção - tanto pela diferença na abordagem e compreensão de situações vivenciadas por elas quanto por experiências e visões tão próximas que configuravam laços profundos.

Outra proposta era de avaliarmos, de tempos em tempos, o sentido do processo para elas e a motivação para continuarmos o trajeto.

E, assim, fomos trabalhando, construindo nossa trajetória.

Inicialmente, atravessamos uma "enxurrada" de queixas de L. em relação às irmãs: invejosas de sua beleza, falharam com ela em momentos críticos; localizava o pior deles no momento de sua desastrosa separação, quando se negaram a ser suas fiadoras, fato que, segundo ela, contribuiu para o problema de relacionamento com duas de suas três filhas.

Tristeza e desânimo eram a tônica para N., a irmã do meio. "Esse assunto é recorrente, muito discutido, e não saímos do lugar", dizia a caçula A.

L. rebatia qualquer argumento com intensa irritação, dizendo não aguentar mais essas "santinhas, perfeitinhas, para quem tudo dá certo, e que vivem bem com sua prole".

Inveja antiga de um lado, inveja atual de outro.

L. relatou que, depois de toda a dificuldade que tinha enfrentado em sua vida, um golpe irreparável ainda havia ocorrido: perdera sua filha mais velha, C., depois de uma sofrida doença. Uma alma irritadiça, dilacerada e em frangalhos pela morte da filha.

Percebi o olhar comovido e compreensivo das irmãs, mas havia também cansaço e censura, por conta de a família estar sempre às voltas com os problemas de L., seus "pitis ", desde a infância.

"Sou um poço de problemas", L. dizia frequentemente, e "a vida não me dá trégua.'"

Se, por muitas vezes, N. e A. foram solidárias, ampararam L., cuidaram das três queridas sobrinhas e estiveram ao lado da irmã em toda a doença de C., elas foram insuficientes em momentos críticos; reconheciam isso, mas rebatiam a ideia fixa de L. de que não a ajudaram porque não queriam. E a inveja coloria as interpretações da mais velha.

Um pedido da mãe a N. e a A. surge na conversa: "Aconteça o que acontecer, nunca internem sua irmã, fiquem sempre ao lado dela". Esse pedido reverberava há quarenta anos - uma promessa que procuravam cumprir, relevando muitas crises de L. em relação a elas.

Enfatizei, para as três, o empenho em cumprir essa promessa, mas a impossibilidade de atender a todas as necessidades de L. Aquilo que elas poderiam chamar de pitis, uma palavra que indicava algo da ordem de uma baixa tolerância à frustração, eu escutava como mais do que isso: não era só uma personalidade voluntariosa em ação. Além da atual dor da perda de C., parecia ter se desenrolado uma vida de desafios críticos que não se resolveram de uma forma menos sofrida.

A tristeza apareceu com força. L. relembrou a proximidade das irmãs durante a doença e a morte de C., e acrescentou não ter mais lágrimas para chorar.

Impossível não se emocionar. Olhei com profundo respeito pela sua vida e sua dor e pelo fato de ainda estar, aos 68 anos, lutando para cuidar dos seus conflitos.

Foi N. quem escreveu "quero mudar o disco, mas sem medo" e discorreu sobre ter feito muita psicoterapia para curar suas doenças psicossomáticas, que a acompanhavam desde a infância, e curar-se também da culpa que carregava de ter estragado a vida da irmã.

Nos textos de L. também surgiu a ruína de seu mundo infantil quando N. nasceu: o pai, a mãe e ela viviam no Rio de Janeiro, cercados por uma rede fraterna de vizinhos generosos. Quando a mãe engravidou, o pai foi transferido para trabalhar em São Paulo. A adaptação da família foi difícil, e a mãe tornou-se uma mulher irritável e impaciente.

O nascimento de N. assemelhou-se, para L., ao que Freud (1905, citado por Kaës, 2011, p. 25) sublinhou sobre a queda narcísica e o impacto que a vinda ao mundo de um irmãozinho ou irmãzinha pode trazer e o ódio a esse intruso. Mas seria só essa configuração psíquica a assolar a relação entre as duas?

N. reagiu ao relato de L. sobre o fato de ela ter privilégios, cuidados e mimos, e rebateu raivosamente: "Eu não trouxe a desgraça para sua vida".

A palavra desgraça reverberou e interroguen por que a vinda de N. teria sido tão danosa à irmã?

L. tomou a palavra e narrou que N. nasceu com baixo peso e saúde frágil, e que sua mãe "enlouqueceu", sendo internada em um hospital psiquiátrico.

Fui surpreendida por essa informação.

Uma história congelada foi-se derretendo durante a sessão, conforme os relatos compartilhados entre as três iam se sucedendo.

Havia um leitmotiv, um tema constante na família: a mãe "enlouquecera" com uma ideia desesperadora e obsessiva de que N. morreria.

O pai, ocupando cargo novo, sem condições de cuidar dela, pediu ajuda a um dos irmãos da mãe, que era psiquiatra. Diante do diagnóstico de uma psicose pós-parto, tomaram a decisão de interná-la. A mãe concordou impondo uma única condição: levar as filhas com ela. As três foram conduzidas a uma área isolada da instituição.

Sem outro adulto que se ocupasse dela, sem brinquedos, lápis ou papel, L. se distraía olhando, através das janelas com grades, o pátio e os movimentos dos outros habitantes do hospital.

Essa dramática experiência operou uma fratura indelével na função fraterna. Talvez irreparável?

Houvera uma ruptura longitudinal na vida familiar. A mãe, que sempre cuidou dos irmãos, não contou com o amparo fraterno e, para L., a vinda da irmã trouxera a perda do lar, de um funcionamento psíquico mais estável da mãe. Então, a possível curiosidade a respeito do bebê deslocou-se para um ambiente esquisito habitado por uma população estranha.

 

Complexo fraterno

Inspirada que fui pelo artigo de Birman, continuei pesquisando outras publicações sobre a importância das relações entre os irmãos e encontrei o livro Complexo fraterno (2011), de René Kaës, dedicado ao tema.

Segundo suas ideias, as relações entre irmãos constituem um verdadeiro complexo, entendendo este como um "dos organizadores psíquicos inconscientes [...] de todo laço: de família, de casal, de grupo" (p. 46).

Para este autor, as relações entre irmãos não se limitam à questão do intruso nem se caracterizam só por ódio, ambição e inveja.

Ele considera que o complexo fraterno "é constituído por diversos tipos de materiais: ele é sustentado pelos fantasmas do desejo, investimentos pulsionais e de relação de objeto, identificações e imagos, mecanismos de defesa, etc." (p. 42).

Às dimensões anteriores se articulam o amor, a ambivalência, e sua estrutura é "organizada conjuntamente pela rivalidade e pela curiosidade, pela atração e pela rejeição que um sujeito experimenta diante de um outro semelhante, que, em seu mundo interno, ocupa o lugar de um irmão ou irmã" (p. 11).

A tônica das primeiras sessões das irmãs fora a rivalidade, a inveja - de um lado, L. invejada na infância; de outro, ela ressentida e invejando a vida atual das irmãs.

No entanto, outros aspectos do complexo fraterno, desenvolvido segundo Kaës, como o amor, a curiosidade, a atração e as identificações, necessitavam ser investigados.

 

Retomando o trajeto

Compartilhamos um percurso, partindo de uma relação pulsante e viva, carregada de hostilidade e ressentimento, e atingimos aquilo que parecia ser a primeira fratura na função do cuidado com o outro: o tratamento escolhido pelo tio materno e pelo pai.

No momento até aqui relatado, podíamos compreender o alcance do pedido da mãe de que as irmãs nunca internassem L.

Uma interrogação marcava presença: será que entre o nascimento de L. e N. a mãe perdera algum bebê?

Diante da negação de qualquer acontecimento desse tipo, insisti que a intensidade do desespero da mãe e a fantasia singular, morte de um bebê, pareciam indicar que ela vivenciara algo assim, em algum momento de sua vida.

Então, as três irmãs compartilharam a seguinte narrativa: a mãe nasceu no Centro-Oeste do Brasil, numa família numerosa, treze filhos. Era a terceira e desde cedo ajudou a cuidar dos irmãos menores. Algumas crianças morreram, todas mais novas que a mãe, com idades e de causas diferentes.

Dirigi-me a L. e disse: "Sua mãe não foi assustada por N., e sim pelas experiências dolorosas e os fantasmas do passado".

A associação, construída com elas, entre os dois tempos do passado, promoveu uma pequena aproximação entre L. e N.

Foi necessário explicitar o ponto de contato, o momento de intenso sofrimento partilhado pelas duas, mas as consequências diferentes para cada uma delas: em L., uma perturbação em seu desenvolvimento psíquico, e, em N., um quadro duradouro de problemas de pele e alergias sérias, atenuado com muitos anos de trabalho psicoterapêutico.

E ainda tínhamos que lidar com a devastadora perda de C., a "pá de cal" na vida turbulenta de L.

Relatos comovidos sobre a doença e a morte da filha e sobrinha querida, "garota doce e talentosa, a artista da família", trazem à tona muitas lembranças de momentos de proximidade e solidariedade.

L. recupera duas irmãs, insuficientes, mas que acompanharam o processo, solidárias e ativas, cuidando, cada uma a seu modo, dela e de C.

Surgiu, então, o projeto de publicar um livro com uma história infantil, escrita por L. e ilustrada por C.

N. e A. oferecem ajuda, mas conseguem compreender a falta de coragem e energia de L., e que esta ajuda seria insuficiente diante do sofrimento e do desalento da irmã.

Mulheres heroínas de uma saga feminina: uma mãe que "enlouqueceu" com medo da morte da filha e outra mãe que "enlouqueceu" de dor com a morte real de uma filha.

 

Um luto não elaborado

Foi no livro citado de Kaës que encontrei o capítulo "A morte de um irmão, o luto de um filho".

O autor sublinha que a morte precoce de um filho é uma situação anormal para pais e filhos sobreviventes, e destaca que devemos tomar em consideração as circunstâncias da morte, a diferença de idade entre o vivo e o morto, seus lugares no grupo familiar e que o destino psíquico da morte de um irmão ou irmã está entrelaçado ao trabalho de luto dos pais para seu filho.

Kaës nomeia algumas configurações como pactos intergeracionais de resistência ao luto, quando situações traumáticas, como morte súbita de um bebê, mortes por acidente ou falecimento repentino no hospital, ocorrem e permanecem fora do luto dos pais. Segundo ele:

Nos lutos difíceis ou patológicos no filho, o impacto dos lutos tornados impossíveis para a geração precedente fixa, na repetição do retorno do morto, uma relação com um duplo não enterrado.

[...]

Essas histórias têm a particularidade de referir-se à transmissão psíquica dos efeitos da morte de um dos filhos sobre os irmãos e irmãs e sobre sua descendência e de criar o sentimento de destino trágico, à origem do qual a repetição acaba por animar a psique do irmão ou da irmã sobrevivente. (p. 219)

Durante o atendimento, e com o descongelar da história da mãe de L., N. e A., fui compreendendo e revelando às três que o que ocorrera com ela durante a gravidez e nascimento de N. era apenas a ponta do iceberg de perdas traumáticas, algumas delas exatamente como as assinaladas por Kaës, congeladas com a impossibilidade de serem elaboradas e compartilhadas. Estabeleceu-se "uma aliança de silêncio, e um pacto de desconhecimento (ou de resistência) entre as gerações de tal sorte que ninguém seja confrontado com o trabalho de luto" (p. 219).

 

Memórias

Se os textos delas, sempre muito bem escritos, iluminavam e motivavam o desenrolar das sessões, procurei ampliar o espaço não só para a continuidade da narrativa, mas também para a possibilidade de outro tipo de linguagem. Com a informação dos gostos familiares a respeito de literatura, pintura e música sugeri inicialmente a produção de desenhos de família, acompanhados de histórias. A produção de cada uma foi trazida em um encontro e houve uma transformação no clima das sessões seguintes.

De início, uma curiosidade se instaurou entre elas: queriam ver suas produções, comentavam semelhanças e diferenças e os traços característicos de cada uma. Interpretaram-se umas às outras e se surpreenderam com detalhes na composição das famílias: na de L., todas as pessoas tinham a forma humana e ela, de mãos dadas com o pai, ficava de um lado da folha, enquanto sua mãe e as irmãs, de mãos dadas, do outro lado. A fratura familiar.

N. elaborou uma colagem contendo uma pessoa em perigo e uma série de outras pessoas na beira do lago, no alto de uma árvore, ninguém olhando para ninguém e muito menos para aquela que estava em perigo. Relações fraturadas. Ausência de fraternidade.

A caçula A. desabafou que desenhar tinha aliviado a "gastura" que sentia ao pensar que, "na altura dos 60 anos, ainda remoíam mal-entendidos de forma amargurada".

Encontros fora do consultório passaram a ocorrer e até um almoço na casa de L.

Brincadeiras, piadas a respeito de idiossincrasias de cada uma surgiram nas sessões, acompanhadas de lembranças de momentos de "camaradagem, conversas, filosofias, cumplicidade", no dizer de A.

A repercussão desta experiência me levou a sugerir a escolha de fotos significativas para cada uma delas.

Surpresa geral ocorre com a apresentação das escolhidas:

■ L. segurando N. no colo;

■ as três em uma charrete na fazenda dos avós;

■ elas na Kombi do pai na Fonte dos Amores;

■ elas, a mãe e todos os netos;

■ a formatura de 15 anos de L.

Imagens que despertaram, naquele instante do percurso, uma "enxurrada" de lembranças significativas e esquecidas: a fazenda dos avós, "o melhor lugar do mundo", em que as férias eram sempre alegres para elas.

E nossa atenção dirigiu-se para duas das fotos: a primeira é a que mostra L. olhando com carinho para a bebezinha no seu colo, imagem que trouxe um bem-estar para elas; a segunda, a da formatura de L. - N. conta que a irmã foi uma referência para ela quanto ao jeito de se vestir, se maquiar, arrumar o cabelo, e que aquele dia foi muito especial, "ela parecia uma artista de cinema"; para os 7 anos de A., foi um "maravilhamento", toda a casa às voltas com a preparação da irmã, "parecia estarmos no filme da Cinderela".

Momento marcante, quando surgiu uma agradável oposição à ideia de L. de que as irmãs eram só invejosas, como no conto de fadas.

Pessoas significativas em suas vidas circularam nessas sessões e elas atualizaram informações.

Ao longo do processo, minha presença foi se transformando naquela que testemunha o intenso trabalho de resgate de uma história fraterna, a reparação de danos, algumas vezes involuntários, e a tentativa de atenuar o sofrimento mais intenso de L.

O apelo de N., "quero mudar o disco", despertou o desejo de adentrarmos nesse terreno tão caro a elas. Sugeri que, além das músicas significativas na vida de cada uma, escolhessem também aquelas que lembrassem as irmãs e, se pudessem gravá-las, eu providenciaria uma forma de ouvirmos juntas. N. e A. relataram quão agradável tinha sido a busca e a gravação das músicas em suas casas. L. não pôde gravar e trouxe sua seleção por escrito. E novamente ela vivencia a experiência de ter muita coisa em comum com as irmãs. A maior parte das suas escolhidas puderam ser ouvidas porque estavam nos CDs das irmãs.

Sessões divertidas, embaladas pelos primórdios do rock'nroll, pelos Beatles e pela MBP, e emocionantes, no instante em que escutamos "Gente humilde", de Chico Buarque, "Tempo rei", de Gilberto Gil, e "Tocando em frente", de Almir Sater e Renato Teixeira, da qual reproduzo alguns versos:

Todo mundo ama um dia
Todo mundo chora
Um dia a gente chega
E no outro vai embora
Cada um de nós compõe
a sua história
Cada ser em si carrega
o dom de ser capaz
E ser feliz. (1992)

 

Um final em aberto

O percurso analítico com L., N. e A. foi acompanhado por uma visão ampliada de fraternidade, da operação da função fraterna, pois todo cuidado era pouco para não ser guiada por uma ilusão ingênua e pueril da relação entre irmãos.

Desde remotas eras, sabemos da existência de irmãos que não compartilham qualquer sentimento fraterno, e a vida e a literatura estão aí a nos contar histórias carregadas de ódio entre os semelhantes.

É em Freud, no vigoroso texto Totem e tabu (1913/1993), que encontramos a narrativa sobre a formação do laço fraterno, laço este fundado a partir da ideia da horda primitiva e do limite imposto ao pai primordial, onipotente e autossuficiente, assassinado por aqueles que reconheceram sua própria condição de precariedade e insuficiência diante de uma figura tão poderosa. No trecho que reproduzo a seguir, Freud desenvolve suas ideias sobre as transformações ocorridas no grupo após o parricídio:

Os sentimentos sociais fraternos, sobre os quais descansa a grande subversão, conservam a partir de então e por muito tempo a influência mais profunda sobre o desenvolvimento da sociedade. Procuram expressão na santidade do sangue em comum, no realce da solidariedade entre todo vivo que pertença ao mesmo clã. Assim os irmãos asseguram a vida uns aos outros, enunciando que nenhum deles pode ser tratado por outro como todos em comum trataram o pai. (p. 147)

A fraternidade, pois, implica essa igualdade dos sujeitos perante o mundo, fundada que foi na precariedade, acompanhada da solidariedade entre eles.

Porém, Birman nos alerta que

a fraternidade não é absolutamente uma substância permanente e consistente, mas sim um estado que pode, contudo, se prolongar ou se dissolver, de acordo com o desejo dos sujeitos que participam nesta rede de laços inter-humanos. Isto porque a qualquer momento alguém ou um grupo de pessoas pode se acreditar superior aos demais, pretendendo sair dessa rede e ocupar uma posição de absoluta soberania. (2000, p. 186)

Podemos compreender melhor o alcance do artigo "Insuficientes, um esforço a mais para sermos irmãos", quando o autor destaca que o Festival de Cannes, de 1999, trouxe à luz uma resposta ao mal-estar que vivenciamos há tempos nessa sombria realidade atual. Tanto assim que até um diretor como David Lynch, cujos filmes se caracterizam por um tom amargo e árido, procurou resgatar, em Uma história verdadeira, o cultivo dos bons sentimentos, como o da fraternidade.

Para Birman, este filme não é a narração de uma fábula, e sim uma verdadeira história. Ele ainda interpreta a obra como uma mensagem do diretor a todos nós: "Como se quisesse nos dizer, em alto e bom som, isso ainda existe no nosso mundo, apesar de todos os pesares" (p. 175).

Procurei narrar a experiência vivida durante o trabalho analítico com L., N. e A., em sua busca de alguma compreensão para desentendimentos e conflitos que se repetiam ao longo de suas vidas, expressões de uma fratura da função fraterna: uma história verdadeira de perdas traumáticas que nos conduziu a um luto impedido de elaboração, transmitido de geração para geração, até a morte de C.

A coragem dessas irmãs para realizar essa trajetória analítica, propiciando que revisitássemos juntas um doloroso passado, ressignificando as experiências traumáticas desse passado e revelando novos sentidos, possibilitou a reconstrução da solidariedade e o resgate do sentimento de fraternidade para elas.

Depois de um ano e meio, encerramos nosso trabalho, mas até hoje ocupo um lugar de encontro e amparo em momentos de conflito pontual ou de uma mudança de rota, necessária, que pode impactar principalmente a mais velha.

A última vez que as vi foi em 2014, durante o lançamento do livro de L., que contou com a fundamental colaboração de sua filha caçula. Momento importante, talvez com o valor da elaboração do luto da morte da mais velha. Ao seu lado, na mesa em que autografava sua obra, estava a foto de C. e, ao redor dela, toda a família e vários amigos, L. parecia serena.

 

Referências

Birman, J. (2000). Insuficientes, um esforço a mais para sermos irmãos. In M.R. Kehl (Org.), Função fraterna (pp. 171-208). Rio de Janeiro: Relume Dumará         [ Links ].

Freud, S. (1993). Tótem y tabú. In S. Freud, Obras completas (J.L. Echeverry, Trad., Vol. 13, pp. 11-191). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1913)        [ Links ]

Kaës, R. (2011). O complexo fraterno (L.M. E. Orth, Trad.). Aparecida, SP: Ideias & Letras.         [ Links ]

Sater, A. & Teixeira, R. (1992). Tocando em frente [gravada por Almir Sater]. In Almir Sater ao vivo [cd]. Sony Music.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Eliana da Silveira Cruz Caligiuri
Rua Guilherme Bannitz, 90, conj. 34
04562-060 São Paulo, SP
Tel: 11 3845-5205
elianacali@terra.com.br

[Recebido 19.08.2015
Aceito em 02.09.2015]

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