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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.2 São Paulo Apr./June 2016

 

RESENHAS

 

Cartas de Freud a sua filha: correspondência de viagem (1895-1923)

 

 

Sylvia T. P. Pupo Netto

Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 

Organizador: Christfried Togel
Tradutora: Claudia Abeling
Editora: Amarilys, Barueri/SP, 2015, 432 p.
Resenhado por: Sylvia T. P. Pupo Netto

 

 

A leitura das correspondências de viagem de Freud se torna fascinante por ser uma oportunidade inédita de ver o mundo através de seu olhar. Descobrimos nelas um outro lado do fundador da psicanálise: um amante do prazer, cuja capacidade de experimentação parecia inesgotável. Os relatos, feitos de maneira espontânea e despreocupada, nos permitem beber diretamente das suas fontes e participar de seu cotidiano. Revelam um Freud livre das amarras de Viena, sua amada prisão - "um lugar onde a dignidade humana não era prezada" (p. 23).

A esta atitude ambivalente era atribuída a sua fobia de viajar, cuja cura foi relacionada a dois fatores: ao fato de seu irmão Alexander ter sido nomeado engenheiro-chefe das ferrovias do Império Austro-Húngaro e à sua autoanálise, iniciada em 1897, um ano após a morte de seu pai.

Sua "compulsão" a viajar chegou a ser objeto de análise por colegas numa reunião sobre A psicanálise do viajar, em 6 de março de 1912, na Associação Vienense de Psicanálise, e interpretada como desejo de afastar-se do pai ou da morte, própria ou de outrem , ou mesmo do incesto. Também foi especulada uma "pulsão de migração", como nas aves, de modo a ampliar as possibilidades de fertilização e propagação da espécie.

O tom que permeia este diário, entretanto, não é o de quem fugiu para longe, mas o de quem foi ao encontro de algo inegociável e se deixou guiar pelo fio condutor daquilo que insiste, repete e nos põe em movimento. Desde o ginásio, Freud já era "dominado por um desejo de viajar e ver o mundo" (p. 16), o mesmo interesse e entusiasmo que persistiu até a sua morte.

Cento e oitenta e nove imagens em preto e branco foram integradas ao corpo do texto para ilustrar as correspondências. Compreendem paisagens, monumentos, obras de arte; em sua maioria, são fotos e postais comprados por Freud durante as viagens. Escritas a pena e tinta, que às vezes era escassa em outras terras, num tom formal e ao mesmo tempo afetuoso, temos acesso a cinquenta e seis cartas que foram destinadas a sua família no período entre 1895 e 1923.

As correspondências foram enviadas durante as férias de verão que Freud gozava após passar parte deste com a família - Martha e os seis filhos - nos Alpes. Aos quase 40 anos, ele já dispunha de reservas de seu trabalho e das publicações para não precisar trabalhar durante os três meses de verão. Naquela época, era possível financiar duas semanas pela Itália com o ganho de um dia de trabalho em Viena.

Cada conjunto de cartas é prefaciado por Togel, com uma breve introdução sobre o significado do período no contexto mundial, psicanalítico e historiográfico de Freud. Encontramos também os itinerários e mapas das rotas percorridas por ele e seus companheiros. Ao final do livro, há uma lista com os destinatários das correspondências, datas e locais de postagem, cronologia dos deslocamentos, créditos das imagens, bibliografia e um índice de pessoas e lugares (infelizmente, não consta nele a Piazza Colonna).

Podemos notar os rápidos deslocamentos de Freud e perceber sua energia, o que revela um viajante incansável e difícil de acompanhar. "O ideal para Sig era dormir uma noite em cada cama", escrevia Minna, sua cunhada (p. 111), comentário que dá margem a especulações, pela suspeita de ambos terem tido um romance.1

No original alemão, o título do volume é Unser Herz zeigt nach dem Süden (traduzido livremente por Nosso coração aponta para o Sul) e se refere à justificativa de Freud a Martha para deixar este "lugar belo e tranquilo" no Tirol e seguir viagem (p. 130). A frase condensaria toda a sua atração e fascínio pela Europa meridional, especialmente por Roma, cidade que visitou sete vezes, também pela Toscana, Pompeia, Nápoles, Sicília e Grécia.

As cartas revelam que, em sua maioria, as viagens ao Mediterrâneo foram impulsionadas pela busca de autenticidade cultural e estética: "tudo aqui é autêntico: montanhas, olivais, ciprestes, céu azul profundo..." (p. 145). O Sul, terra prometida dos poetas, pintores e intelectuais do século XIX, glorificado na obra de Goethe, autor citado por Freud: "Conheces a terra onde floresce o limoeiro?" (p. 161), ou ainda: "Veja Nápoles e morra!" (p. 154).

Freud não gostava de viajar só, precisava de constante interlocução. Era patente sua necessidade de compartilhar e talvez de processar toda a intensidade à qual era submetido. A escrita parecia dar escoamento a essas impressões. Quando a falta de companhia era inevitável, enchia suas cartas com lamúrias, sendo o mais infeliz dos homens, escrevendo aos filhos como um pai órfão.

Foram seus companheiros de viagem o irmão Alexander, Max Eitingon, Ferenczi, Jung, Minna, seus dois filhos mais velhos, e por uma vez sua esposa Martha. Era frequente Freud dirigir-se a ela como frágil, sugerindo que não aguentaria o ritmo das viagens, sendo assim prudente que continuasse os tratamentos nas estâncias de águas e permanecesse com as crianças.

A única viagem que fez com a filha Anna - a Roma, em 1923 (foto que ilustra a capa do livro) - foi também a sua última, pois já se encontrava acometido por um câncer na boca e sofria uma queda na sua disposição geral.

Freud era um turista extremamente ilustrado. Ele havia estudado arte antiga e história, e reuniu uma biblioteca significativa a este respeito. Preparava-se para as viagens de maneira meticulosa, às vezes com anos de antecedência. Estudava os locais e traçava um roteiro preciso, de modo a desfrutar o máximo possível. Tinha um interesse especial por cartografias, chegando a decorar as de Roma e Pompeia, muito antes de visitá-las.

A Itália foi o destino mais planejado, mas não o primeiro. Viajou também para a Suíça, Tirol, Norte da Itália, Holanda, Inglaterra e Estados Unidos - viagem de vapor durante a qual escreveu um formidável diário de bordo.

A Grécia se destacava dentre as culturas que mais o interessavam. Ele a considerava uma civilização culturalmente superior e, desde a escola, mantinha um diário escrito em grego antigo, já revelando a epistemofilia como uma de suas características mais marcantes.

Dirigidas em sua maioria a Martha, a sua velha, Freud passa a incluir a família como destinatária apenas em 1907. Era frequente que começasse a escrever em um cartão e finalizasse em outros, enviando um a cada filho, de modo a serem lidos em conjunto. À sua filha Anna enviou apenas três correspondências, a primeira em 1905, o que talvez não justifique o título dado ao volume em português: Cartas de Freud a sua filha - lembrando que ela nasceu em 1895, ano da primeira viagem de Freud.

As correspondências são um campo para citações literárias, históricas e artísticas. "Não é possível falar do lugar sem ser poeta ou citar um" (p. 208). Repletas de referências a Dante, Virgílio, Goethe, entre outros, e à mitologia, elas ainda revelam a familiaridade de Freud com os idiomas: além do alemão, língua "universal" na época, comunicou-se em francês e italiano. O inglês foi aperfeiçoado em sua famosa visita à América em 1909, a convite da Clark University.

As cartas também acabam servindo como um retrato da vida e dos costumes da Europa do fin de siècle,2 nos quais acompanhamos a cultura fervilhante da Belle Époque3 e de suas criações artísticas, descobertas científicas e tecnológicas, juntamente com a invenção da revolucionária psicanálise.

A Europa parecia contar neste momento com uma extensa malha ferroviária e um eficiente sistema de envio de informações e mercadorias (chegou a mandar de Veneza uma penteadeira a Martha). Os correios abrigavam as correspondências para Freud, que as respondia e remetia diariamente, várias vezes se necessário. Informava Martha sobre seu próximo paradeiro, estabelecendo assim um fluxo contínuo de informações. O recém-inventado telégrafo sem fio Marconi possibilitava o envio quase imediato de mensagens, embora fosse custoso. Desta forma, Freud pré-franqueva4 as respostas para seus telegramas de modo a assegurar seu retorno. "É irritante só ter um cartão a cada dois dias!" (p. 150).

Sua fértil rede de correspondentes incluía também amigos, parentes, pacientes, futuros pacientes e colegas, mantendo-se no centro deste intercâmbio.

Os deslocamentos demandavam algum tempo devido às grandes distâncias, e as estadias tinham que recuperar todos os esforços da viagem. Assim, Freud diz a Martha que ou fica um mês, ou não vai. Os longos percursos requeriam pernoites intermediários nos grandes centros, ocasiões em que se aproveitava para encontrar parentes e amigos e desfrutar da vida cultural local. A impressão é de que toda a Europa vivia "em trânsito" no final do século XIX!

Seus relatos deixam entrever o homem comum, que fala do calor, da água potável - de valor inestimável em função das epidemias de cólera -, da importância de um bom café - avaliado em cada localidade - e dos charutos, que tanto apreciava. Um tema frequente era a delicadeza de seu estômago e a interferência que o clima exercia sobre seus humores e apetites. Era fascinado pela lua cheia, atribuindo-lhe poderosas qualidades. Gostava dos figos frescos e dos pêssegos, adorava o mar. Fala dos sobretudos pesados nos dias escaldantes do verão, da roupa suja a ser lavada, do terno de seda e das antiguidades que foi colecionando ao longo das viagens: "vou me tornar um especialista" (p. 121); "não fique brava se não trouxer nada além de uns cacos velhos" (p. 149).

Observador agudo e espirituoso dos costumes e das relações humanas, Freud nos brinda com descrições vivazes e cheias de atualidade, como a de uma noite de verão na Piazza Colonna, em Roma, em 1902. Descreve todo o clima sensorial e emocional durante uma projeção ao ar livre, referindo-se intuitivamente a uma tensão de massa, à qual se sentiu submetido; observava o público, que aplaudia automaticamente sem nem mesmo ouvir (p. 229). É de um senso de humor mordaz ao descrever as americanas, que "se comportam sem acanhamento [...] parecem leoas de sorvete de creme que fazem a toilette quatro vezes ao dia" (p. 279).

O modo como relata os fatos mais comuns nos convida a conhecer um Freud hedonista, que se refere constantemente ao prazer do impacto sensorial das texturas, temperaturas, cores, formas e sabores sobre ele. "Não consigo te dizer o que vi e cheirei de belezas hoje" (p. 353). Discorre quase em êxtase sobre o impacto da experiência estética e seu efeito na sua renovada disposição quando viajava: "você mal nos reconheceria: nada cansados, nada sérios", escreve a Martha sobre Alex e ele (p. 47). Ótima razão para continuar a se reabastecer periodicamente nestas fontes sensoriais.

"As muitas coisas belas que se vê ainda darão frutos, ainda não sabemos quais", escreve, quase que se justificando (p. 121). Ele tinha razão. Muitos elementos da sua teoria parecem derivar do profundo impacto destas experiências no Sul. Expressos através de seus sonhos (Acrópole, Roma), atos falhos (Signorelli) (p. 111), pela sua observação das artes (Leonardo, Moisés), da mitologia (Édipo, Narciso), a concepção arqueológica estratificada do aparelho psíquico, esses elementos se tornaram fundamentos importantes da teoria psicanalítica. Percebemos então que as três paixões conhecidas de Freud - a psicanálise, a arqueologia e as viagens - são, em verdade, indissociáveis.

Freud discorre sobre as belezas e delícias das rotinas incansáveis das novas/velhas terras, "o maravilhoso sol celestial e o mar divino: Apolo e Posseidon, inimigos de qualquer trabalho" (p. 208), e jocoso diz: "fazemos grandes avanços na vida vegetativa" (p. 332). E ainda: "escreverei diariamente, mas muito pouco. O deleite me prende à preguiça" (p. 372).

Embora não tenhamos acesso às suas cartas, percebemos Martha bastante atarefada com os afazeres da casa e a educação dos filhos, mudando-se de residência na ausência do marido. Por vezes, reclamava dos recursos financeiros que se acabavam. Apesar da distância, Freud continuava a administrar e opinar decisivamente sobre todas as questões familiares.

Uma vez chega a queixar-se do "teor de convocação" de Martha e diz que nada poderá fazer para acelerar o curso da sua volta: "eu não quero voltar até ser necessário" (p. 272). Mas escreve em seguida:

sinto muitíssimo não conseguir proporcionar isto a vocês. Para isto, eu não poderia ser psiquiatra, nem o fundador de uma nova orientação na psicologia, mas um fabricante de algo útil, como papel higiênico, palitos de fósforo ou botões de sapato. Para mudar de área já é tarde demais e assim, continuo a aproveitar de maneira egoísta, sozinho, mas por princípio, com pesar [...] Haverá uma compensação em Viena, já que desfrutei tanto daqui. (pp. 359 e 337)

Talvez este aparente traço de culpa impusesse a Freud o dever de ser o observador mais fiel, minucioso e completo, esforçando-se por transmitir tudo o que via e vivia com todos os seus sentidos e nuances, de modo a transportar os leitores para dentro das cenas, como para não se sentirem excluídos. E, neste sentido, ele foi muito bem-sucedido.

 

Notas

1 Em 2006, foi encontrado o livro de registros de um hotel em Maloja, na Suíça, no qual Freud se hospedara com Minna como Sr. e Sra. Freud em 1898 (Kauffman & Mack, 2013).

2 "Fim do século (XIX)".

3 Período que vai do fim do século XIX (1871) até a Primeira Guerra Mundial (1914). A expressão designa o clima intelectual e artístico da época, marcado por profundas transformações culturais e estéticas, refletidas em novos modos de pensar e viver o cotidiano. Foi representado por uma cultura urbana de divertimento, incentivada através do desenvolvimento dos meios de comunicação e transporte, o que aproximou as principais cidades do mundo.

4 Pré-pago.

 

Referências

Kauffman, J. & Mack, K. (2013). A amante de Freud (D. P. B. Dias, Trad.). São Paulo: Casa da Palavra.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Sylvia T. P. Pupo Netto
Rua Oliveira Dias, 330/22, Jardim Paulista
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