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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.3 São Paulo jul./set. 2016

 

RESENHAS

 

O trágico: Schopenhauer e Freud

 

 

Carlos Vogt

Poeta, linguista, professor emérito da Unicamp e presidente da Univesp

Correspondência

 

 

Autora: Jassanan Amoroso Dias Pastore
Editora: Primavera Editorial, São Paulo, 2015, 370 p.
Resenhado por: Carlos Vogt

 

 

No dia 29 de outubro de 2015, participei de uma mesa-redonda sobre o tema "Representação do trágico na psicanálise e na literatura", realizada dentro do conjunto de atividades do extenso e intenso programa do XXV Congresso Brasileiro de Psicanálise, em São Paulo. A motivação da mesa e do tema foi, como não podia deixar de ser, o livro de Jassanan, O trágico: Schopenhauer e Freud, então recém-lançado, que, desse modo, pautou as nossas apresentações.

A autora fez uma reflexão sobre o livro, e eu, a pretexto do tema e de suas variações, nele tão bem exploradas e tratadas, acompanhei, com entusiasmo apaixonado, a viagem intelectual que a obra oferece para quem quiser ir da tragédia ática, no século V a.C., passando pelo trágico na filosofia moderna, em particular na de Schopenhauer, até atingir a psicanálise de Freud.

Foi sob a ótica do sentimento trágico da vida, segundo a expressão consagrada de Unamuno, que procurei traduzir as impressões de leitura do livro de Jassanan, explorando textos que já havia escrito e publicado como prefácios de três romances de três diferentes autores que, de um modo ou de outro, ressoam características e traços distintivos da presença do trágico em suas obras.

Assim, em Servidão humana, de Somerset Maugham, publicado originalmente em 1915, pode-se sentir a profunda inquietação do homem que buscou incessantemente, pela diversidade da experiência de vida, num cenário de grandes transformações da Europa e do mundo, a resposta para a pergunta que gerações arrastaram pelos desertos de abandono produzidos na entres-safra de horrores das duas grandes guerras: "Qual o sentido da vida, se é que a vida tem algum sentido?" (Vogt, 2005b, p. 9).

Embora o físico Niels Bohr tenha anotado que "o sentido da vida consiste em que não tem nenhum sentido dizer que a vida não tem sentido" (Buchsbaum, 2004, p. 247), o fato é que para a literatura do século XX, de uma forma geral, essa questão permaneceu como um enigma em busca e à espera de sua decifração e encontrou respostas como a que, de maneira dolorosamente simples, lhe dá o narrador do romance de Somerset Maughan: "A vida não tem nenhum sentido" (1915/2005, p. 583).

No caso, a solução do enigma é a resignação agnóstica de quem também anotara no livro Confissões: "Permaneço um agnóstico, e a consequência prática do agnosticismo é que você age como se Deus não existisse" (Maugham, 1938/2006, p. 236).1

Na tragédia clássica Édipo Rei, de Sófocles, o herói, ao decifrar o enigma da Esfinge, na entrada da cidade de Tebas, torna-se, ele próprio, como bem anota Vernant (2002), enigma também, que ele não pode decifrar, e assim transforma, novamente, a resposta da decifração na pergunta de sua condenação. O que os personagens não sabem constitui a sua perdição; o que eles vêm a saber decreta sua condenação.

Em Somerset Maughan, as amarras da servidão humana, a que se refere o título do livro, são de natureza metafísica e ligam o homem à condição dos limites que o agnosticismo desconfiadamente estabelece para a afirmação de que Deus não existe, com a certeza de que não há como prová-la.

Nesse caso, como também nos romances de Aldous Huxley e Graham Greene, a presença de Schopenhauer é marcante. E tanto mais marcante quando se leva em conta que, nesses autores, reproduz-se, de certa forma, e ao modo pessoal de cada um deles, a observação que faz Jassanan a propósito do filósofo alemão, citando Alexis Philonenko:

Schopenhauer define essa consciência trágica - a árvore do conhecimento não é a árvore da vida -, essa intuição que sustenta seu sistema inspirado nos versos de Lord Byron, em Manfred: "Dor é conhecimento: os que mais sabem/ Devem suportar o duelo mais profundo desta fatal Verdade/ A árvore do Conhecimento não é a árvore da Vida" (ato I, cena I). (p. 176)

Philonenko, segundo Jassanan, considera que "as reflexões que se apoiam nessa intuição são pessimistas, mas se trata de um pessimismo que convém entender como originariamente fundado na consciência trágica", ou melhor, acrescenta a autora, "o trágico filosófico é o alicerce fundante do pessimismo. [...] Ou seja, a consciência do trágico em Schopenhauer o conduz para o pessimismo" (p. 176).

O gênio e a deusa2 foi publicado em 1955, na Inglaterra, quando Huxley vivia já há algum tempo em Los Angeles, na Califórnia. Narrada pela interposição do relato de um amigo, a história é contada num diálogo de lembranças entre este e o protagonista da trama, John Rivers, no ano de 1951, numa espécie de viagem sentimental em torno de si mesmo e da culpa da recordação.

A ação do romance se passa em 1921 e tem como personagens, além do próprio Rivers, o físico Henry Maartens, consagrado com um prêmio Nobel e reconhecido como gênio, e sua mulher Katy, de nórdica beleza, bem mais nova que o marido e percebida pelo narrador como a deusa em questão. Há ainda a filha mais velha do casal, Ruth, e o garoto Timmy, além da criada negra Beulah, da mãe doente de Katy e da mãe protetora de Rivers, estas mais referidas que atuantes no cenário das lembranças, mas nem por isso sem importância no jogo de oposições em que os caracteres do livro vão se moldando e as partilhas do destino se configurando em predestinações, como observa Rivers a propósito do desastre em que perderam a vida a deusa e a jovem poetisa inquietante e inquieta, pelo amor não correspondido pelo mesmo John Rivers, amante de sua mãe:

Na verdade foram dois tipos de Predestinação. A Predestinação dos acontecimentos, e ao mesmo tempo a Predestinação de dois temperamentos, o de Ruth e o de Katy - o temperamento de uma criança ofendida, que era também uma mulher ciumenta; e o temperamento de uma deusa, encurralada pelas circunstâncias e a dar-se subitamente conta de que, objetivamente, era apenas um ser humano, para quem o temperamento olímpico poderia em realidade constituir um sério entrave. (Huxley, 1955/2005, p. 146)

Se na tragédia clássica é o destino que rege a vida das personagens, o herói do drama romântico perde o destino e ganha destinações nos embates com o meio, com a natureza, com a sociedade, consigo mesmo, multiplicando-se em lutas e estilhaçando-se em angústias.

O pessimismo de Huxley, apontado por muitos críticos e registrado sob diversas formas em diferentes obras e sob vários gêneros literários, teve, desde o início de sua carreira, o seu reconhecimento compartilhado por outros grandes pessimistas criadores, entre eles Jorge Luis Borges, que já em 15 de janeiro de 1937 anotava que "o sentimento básico de Huxley é o pessimismo" (Borges, 1996, p. 243), atribuindo, assim, a atitude intelectual do autor a uma herança familiar biológica.

O gênio e a deusa é, ao mesmo tempo, um romance de tese e um romance familiar.

A tese é a de que não há como escapar à nossa própria humanidade, seja pela beleza - a de Katy, a deusa no caso -, seja pela excepcionalidade e excentricidade da inteligência - a de Henry Maartens, o físico atômico e o gênio em questão.

É também um romance familiar um pouco no sentido técnico que essa expressão tem na psicanálise e que lhe foi determinado por Freud e por Otto Rank.

De fato, John Rivers, que não é nenhuma criança à época dos acontecimentos rememorados por ele com o amigo trinta anos depois de sucedidos, é, contudo, virgem ainda aos 28 anos, quando deixa a casa de sua mãe viúva para ir morar com os Maartens em St. Louis, em busca de sua formação com o mestre que tanto respeita e admira.

Troca, assim, a casa da opressão materna pela fantasia de um lar constituído por um pai genial e uma irmã divina. Édipo logo aparece, tanto na relação de Rivers com Katy quanto no amor desprezado da adolescente Ruth por ele. O desastre é iminente. Perdem-se todos, menos os que, predestinados, como Rivers e Maartens, se salvam refazendo suas vidas pelos padrões médios da segura bem-aventurança da reconstrução do amor familiar.

Publicado originalmente em 1948, O cerne da questão,3 de Graham Greene, conta a história de Scobie, major da polícia colonial inglesa em Serra Leoa, África Ocidental. A ação se passa principalmente na cidade de Freetown, capital cujo nome, dado o clima de clausura, opressão, sufocamento e fofocas em que vivem os personagens, é também uma espécie de ironia literária na composição do ambiente em que se desenrola o cotidiano de suas vidas de funcionários do reino em exílio oficial.

Scobie e Louise, sua esposa, tiveram uma filha que morreu menina quando viviam na Inglaterra e ele se encontrava fora, em viagem, na África. A morte da filha, que ele não presenciou, será, contudo, revivida no episódio em que ele acompanha a agonia de uma garotinha de 6 anos, em Pende, como consequência de um naufrágio, no qual pereceram também os pais dela.

Scobie é um homem, hoje se diria, de meia-idade, com seus 50 anos, e tem um senso agudo de responsabilidade aliado a um fortíssimo sentimento de piedade em relação ao mundo, em relação às pessoas, em relação à sua mulher, em relação à amante, em relação a si mesmo.

É a paixão da piedade, a piedade transformada (melhor seria dizer transtornada) em vício, que leva Scobie à armadilha da obrigação moral irreconciliável, com os homens, com o mundo, com Deus e consigo mesmo. O adultério e o suicídio de Scobie são consequências (saídas? clausuras?) do mistério da piedade - no sentido teológico e religioso em que se fala do mistério de Cristo -, mistério que a impõe ao homem na ambivalência da virtude e do vício.

O cerne da questão é um romance de provação. Scobie é encerrado no circuito fechado de sua provação e o que o perde definitivamente é a danação da bondade:

Desesperança é o preço que se paga por se estabelecer um objetivo impossível. É, como se diz, o imperdoável pecado, mas é um pecado que o homem corrupto ou mau não comete. Ele sempre tem esperança. Ele nunca atinge o ponto de conhecer o fracasso absoluto. Só o homem de boa vontade leva para sempre em seu coração essa capacidade de danação. (Greene, 1948/2007, p. 50)

A saga do major Scobie até o suicídio compõe a via-sacra da paixão da responsabilidade e desenha o roteiro da provação do mistério da piedade do homem abandonado ao cumprimento de seu destino, melhor dizendo, de sua destinação, pois que se trata do drama trágico do homem moderno e da expiação de seus pecados no mundo.

Desse modo, como se vê, o trágico fundado pela tragédia grega, os ecos da consciência trágica, do sentimento trágico do mundo, e do pessimismo que daí derivou, e que o livro de Jassanan nos ajuda tão bem a compreender, estão presentes em boa parte da literatura do final do século XIX e, praticamente, de todo o século passado, lembrando que Otto Maria Carpeaux, em sua História da literatura ocidental (1964), anotou, sempre com a pertinência que lhe é própria, que Somerset Maugham "é o pessimista mais sistemático da literatura do século XX" (p. 2811). Os outros autores de que tratamos, nos romances aqui referidos, não lhe ficam atrás.

Como anota Jassanan Pastore, voltando a Schopenhauer, este "adverte que a vida governada pelo desejo não admite felicidade duradoura e é, por isso, essencialmente sofrimento - um estado de infelicidade radical" (p. 172).

Como no poema "Do amor enigma" que foi por mim escrito, em parte motivado pela leitura do livro de Jassanan e pelas leituras que nele ela faz de tantos autores capazes de multiplicar as motivações em torno do tema:

DO AMOR ENIGMA

No meio do caminho de nossa vida,
Cruzam-se presença e ausência
A traçar o trajeto de quem lida
Com o sucesso e o fracasso da existência.

No ponto de encontro, una e dividida,
À sombra do acaso, sobra a aparência
De que a revelação se dá por escondida
Máscara do real, ilusão da consciência.

Tenta-se não perder o encantamento
De juntos ser felizes só por tê-lo,
O amor, ora projeto e sentimento,

Às vezes, sendo excesso e também zelo,
Esbarra no destino, mesmo lento,
De sempre se enganar com o próprio erro.

 

Notas

1 Também escrevi o prefácio para essa edição de Confissões.

2 Cf. o prefácio "Um romance familiar" (Vogt, 2005a).

3 Cf. o prefácio "Nó górdio" (Vogt, 2007).

 

Referências

Buchsbaum, P. (2004). Frases geniais que você gostaria de ter dito. Rio de Janeiro: Ediouro.         [ Links ]

Borges, J. L. (1996). Obras completas (Vol. 4). Buenos Aires: Emecé         [ Links ].

Carpeaux, O. M. (1964). História da literatura ocidental (Vol. 6). Rio de Janeiro: O Cruzeiro.         [ Links ]

Greene, G. (2007). O cerne da questão (O. Nunes, Trad.). São Paulo: Globo. (Trabalho original publicado em 1948)        [ Links ]

Huxley, A. (2005). O gênio e a deusa (J. G. Linke, Trad.). São Paulo: Globo. (Trabalho original publicado em 1955)        [ Links ]

Maugham, W. S. (2005). Servidão humana (A. Barata, Trad.). São Paulo: Globo. (Trabalho original publicado em 1915)        [ Links ]

Maugham, W. S. (2006). Confissões (M. Quintana, Trad.). São Paulo: Globo. (Trabalho original publicado em 1938)        [ Links ]

Vernant, J. P. (2002). Entre mito e política (2a ed., C. Murachco, Trad.). São Paulo: Edusp.         [ Links ]

Vogt, C. (2005a). Um romance familiar. In A. Huxley, O gênio e a deusa (pp. 9-14). São Paulo: Globo.         [ Links ]

Vogt, C. (2005b). O sentido do sem sentido da vida. In W. S. Maugham, Servidão humana (pp. 7-13). São Paulo: Globo.         [ Links ]

Vogt, C. (2007). Nó górdio. In G. Greene, O cerne da questão (pp. 7-21). São Paulo: Globo.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Carlos Vogt
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