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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.4 São Paulo set./dez. 2016

 

EM PAUTA

 

Espera, esperança e sonho: deixar a terra descansar

 

Expectation, hope, and dream: on lying fallow

 

Espera, esperanza y sueño: dejar a la tierra descansar

 

 

Decio Gurfinkel

Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e professor, nesse Instituto, dos cursos: “Psicanálise”, “Psicossomática psicanalítica” e “Drogas, dependência e autonomia”. Doutor pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo IPUSP, com pós-doutorado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP

Correspondência

 

 


RESUMO

A importância da arte de esperar é uma das contribuições mais significativas de Winnicott para a clínica psicanalítica. Em trabalho anterior, propus que a capacidade de esperar implica a crença de que o objeto será encontrado; assim, a espera só é possível quando há esperança. Ora, a espera-esperança é também condição essencial para a capacidade de sonhar. O ato antissocial é um grito de socorro, e ele é, portanto, um sinal de esperança; em alguns casos, porém, quando a esperança se quebra, caímos no campo do “colapso do sonhar”. Em “On lying fallow”, M. Khan abordou com precisão e sensibilidade o lugar primordial do esperar e do silêncio na clínica psicanalítica e na vida em geral. Esse é o tema que retomarei aqui.

Palavras-chave: espera; esperança; repouso; sonhar; silêncio.


ABSTRACT

The art of expecting is one of Winnicott's most significant contributions to psychoanalytic practice. In a previous work, I proposed that the ability to expect implies to believe that the object will be found. Hence, expectation is only possible when there is hope. Well, the expectation-hope is also an essential condition for the ability to dream. The antisocial act is a cry for help and therefore a sign of hope. Nevertheless, when hope is broken we find ourselves in the field of the “dream breakdown (or collapse)”. In the work “On lying fallow”, M. Khan showed a sensitive and precise approach to the primary (or primordial) place of expectation and silence in the psychoanalytic practice and life in general. I hereby return to this theme.

Keywords: expectation; hope; rest; to dream; silence.


RESUMEN

La importancia del arte de esperar es una de las contribuciones más significativas de Winnicott a la clínica psicoanalítica. En un trabajo anterior, propuse que la capacidad de esperar implica la creencia de que el objeto será encontrado; así, la espera sólo es posible cuando hay esperanza. Ahora, la espera-esperanza es también esencial para la capacidad de soñar. El acto antisocial es un grito de ayuda, y es, por tanto, un signo de esperanza; en algunos casos, sin embargo, cuando la esperanza se rompe, se cae en el “colapso del soñar”. En “On lying fallow”, M. Khan trató con precisión y sensibilidad del rol fundamental del esperar y del silencio en la práctica psicoanalítica y en la vida en general. Este es el tema que abordaré aquí.

Palabras clave: espera; esperanza; reposo; soñar; silencio.


 

 

A arte de esperar e um tema da maior relevância, tanto para a clínica psicanalítica como para o viver em geral. Aqui, percorreremos algumas dimensões do tema, que nos conduzirão à ideia do deixar a terra descansar.

 

Espera e esperança

Antes de tudo, devemos ressaltar que a espera implica a sustentação da esperança no tempo.1 Winnicott nos brindou com uma reflexão significativa nesse campo, e justamente por ter trabalhado muito com casos em que a construção psíquica da esperança estava despedaçada. A psicanálise esteve pouco ocupada do tema, penso, por ter nascido de uma clínica em que tal problemática não se colocava de maneira aguda. A experiência do colapso psíquico de certos pacientes fronteiriços ou a conduta de roubo e agressão na tendência antissocial expressam, segundo Winnicott, um momento em que a esperança ressurge. No primeiro caso, o colapso só ocorre quando há uma situação especial em que se faz possível o descongelamento de situações arcaicas de fracasso ambiental, que originaram um processo de defesa dissociativo - de natureza psicótica - no tempo mesmo de constituição do eu; o colapso e o momento em que surge a esperança da entrada em cena do verdadeiro self dissociado, oculto, atrofiado e alijado do viver do indivíduo. Para tanto, e necessário um outro ser humano disposto a sustentar, com esse si-mesmo oculto, a não integração, a ausência de forma e a loucura (Winnicott, 1963/1989). A tendência antissocial, herdeira de uma quebra abrupta do viver criativo em um ponto em que já havia um eu capaz de registrar tal experiência - a chamada privação (deprivation) -, só emerge enquanto sintomatologia após um certo período morno de mortificação do self, marcado pela desesperança, uma especie de latência na continuidade do ser. Quando, finalmente, se reorganiza um ambiente capaz de sustentar a experiência psíquica do indivíduo, sobrevêm o roubo e a agressão, sinais de esperança (Winnicott, 1967/1990b).

A esperança e tambem irmã próxima da crença ou da construção da crença em..., segundo expressão de Winnicott. Tomemos como exemplo a história mítica de Penelope e Ulisses, tal qual nos e trazida por Homero na Odisseia. Penelope precisa, para seguir esperando, acreditar em um Ulisses vivo, para assim conservar em aberto o lugar de amante - o trono do rei; precisa poder sustentar uma vacância, um objeto ausente-presente, as reticências da crença em... Ora, Winnicott já nos mostrou como, no início, o bebê adquire a capacidade de esperar na ausência da mãe, mantendo viva a sua imagem interna, por curtos intervalos de tempo. Com o processo de desenvolvimento, esse intervalo possível vai se ampliando no tempo e no espaço, e o que era uma questão de minutos torna-se uma questão de horas, dias, meses... ate, talvez, de vinte anos, como no caso de Penelope e Ulisses! Se há um sucessivo aumento de círculos no espaço e no tempo nos quais a psique humana é capaz de habitar, sem sofrer abalos em sua própria estrutura - à maneira de automutilações ou de um processo dissociativo -, há também um momento crítico do desenvolvimento emocional primitivo em que as bases da capacidade de crer e de esperar são construídas, abrindo as possibilidades para um vir-a-ser. No início,

o bebê e a criança pequena são, em geral, cuidados de modo confiável, e esse ser suficientemente bem cuidado faz surgir no bebê a crença na confiabilidade; sobrepondo-se a essa confiabilidade, poderá agregar-se a percepção da mãe, do pai, da avó ou da babá. Em uma criança que iniciou a vida dessa maneira, a ideia de bondade, de pais próprios e confiáveis, ou de Deus pode se seguir naturalmente. (Winnicott, 1963/1990c, p. 97)

Enquanto espera pelo retorno de Ulisses, Penélope tece um manto todas as noites. Esse manto é um ótimo exemplo de objeto transicional, que, como sabemos, continua a estar presente ao longo de toda a vida - enquanto o fio da vida não for rompido, já que a esperança é a última que morre, ou melhor, é quando morre a esperança que se morre, pelo menos no sentido psíquico. O gesto de tecer e desmanchar nos recorda o neto de Freud e seu carretel, exemplo mais bem-acabado da função transicional de um objeto. É o objeto que surge entre o bebê e a mãe, simbolizando-a em sua ausência e representando as oscilações pulsionais de amor e ódio da relação de objeto. Mas essencialmente é o que permite a manutenção da presença da mãe na sua ausência, e nesse sentido separa - e possibilita a separação - na mesma operação em que une, sustentando a espera na ausência. Aqui se inicia a jornada da ampliação gradativa dos círculos do viver no tempo e no espaço: viver com, viver sem. O paradoxo união-separação é a essência da função transicional, conforme está presente no fazer-desfazer de Penélope. Ora, a figuração do fio e do tecido, creio, não é nada casual, já que ressoa em uma cadeia rica de significações: o símbolo de ligação, o fio da vida, o fio do amor, ou, de outro lado, a impossibilidade de se desprender, a fixação e o fetichismo. Esse outro lado da moeda - ou o objeto transicional patológico - é brilhantemente trazido por Winnicott (1960/1990d) no caso do menino do cordão, aliás novamente um fio...2 Na relação com o objeto-fetiche, a esperança está por um fio...

Entre o mar de Ulisses e a terra de Penélope há um espaço que não é completamente vazio: um espaço de esperança. Tão diferente do abismo do fronteiriço! A matéria desse espaço é a ilusão, que ganha forma em estranhos fenômenos e objetos... transicionais. Fios e mantos, cordões e carretéis, fazer e desfazer, ligar e desligar. Objetos, por sua vez, tão diferentes do objeto-fetiche - ao qual o desamparado se agarra como tábua de salvação ou de consolação, ao qual se agarra com desespero e desesperança, e o qual não se pode largar; não liga nada a ninguém, é o vazio expresso na forma de um objeto alucinatoriamente hiperinvestido. A máxima shakespeariana entre o céu e a terra cai como uma luva nas mãos de seu conterrâneo, que no artigo matriz da teoria dos objetos transicionais esclareceu: “introduzi os termos objetos transicionais e fenômenos transicionais para designar a área intermediária de experiência, entre o polegar e o ursinho, entre o erotismo oral e a verdadeira relação de objeto” (Winnicott, 1971/1996, p. 2). Parece, pois, haver muitos mistérios entre o céu do autoerotismo e a terra das relações de amor, tão conturbadas pelos caprichos humanos e divinos.

 

Esperança e sonho

Partindo do modelo da transicionalidade, podemos considerar ainda que o tecimento de Penélope é equivalente ao trabalho do sonho. Essa ideia não é totalmente nova, já que Freud, ao tratar da condensação na elaboração onírica, lança mão dos famosos versos de Goethe, sugerindo que o trabalho do sonho se dá em uma “fábrica de pensamento, qual máquina de tecimento”. Penélope, em sua espera - e ao tecer seu manto na alternância dia/noite -, é capaz de seguir sonhando.

Aqui, porém, um novo elemento deve ser colocado em destaque. Estamos bastante habituados à relação intrínseca entre o sonho e o tempo passado, na forma do infantil recalcado. Ora, a clínica dos pacientes fronteiriços nos faz ver a relação fundamental entre o sonhar e o tempo futuro, já que o sonhar é essencialmente a colocação em cena de um projeto esperado. Aliás, realizamos aqui um importante deslocamento de atenção do sonho - e sua interpretação - para a função do sonhar em si mesma. Se não há esperança - se a arte de esperar está rompida -, não há como sonhar. O sonho é a realização de um desejo; mas e se a capacidade de desejar não foi suficientemente construída ou, ainda, foi desmantelada? Proponho que nomeemos essas situações pela expressão colapso do sonhar (Gurfinkel, 2001).

O sonhar é, pois, essencialmente, a sustentação de um projeto no tempo futuro. Nesse sentido, e de um certo ponto de vista, o sonho - a realização alucinatória do desejo - é uma espécie de “visão” no presente sobre a potencialidade do que virá, projetada na tela dos olhos fechados; é sempre um fenômeno premonitório, como o do cego Tirésias e de todos os oráculos gregos. Cabe-nos, assim, a tarefa de considerar os processos de deslocamento e condensação também na dimensão temporal, já que a função onírica reorganiza continuamente a relação do sujeito psíquico com sua história, com sua experiência cotidiana - os “vestígios do dia” - e com um projeto de vir-a-ser: passado, presente e futuro. Esse fio do tempo foi tratado por Winnicott como a experiência da continuidade do ser, ou como a própria essência da experiência de um si-mesmo (self).

 

A arte de esperar em análise e o “suposto sonhar” do analista

A arte de esperar é essencial no trabalho do psicanalista e está estreitamente relacionada à sua própria capacidade de sonhar.

A sabedoria popular costuma nos lembrar que, certas feridas, só o tempo cura. Não creio que o tempo sempre cure por si mesmo; um processo mais ou menos silencioso de elaboração deve necessariamente ocorrer concomitantemente à cura, o que nem sempre é o caso. É preciso reconhecer que, em certas situações, as feridas permanecem virtualmente incuráveis - constatação, aliás, que levou Freud a nos falar de uma compulsão à repetição. Mas o sentido de processo é um dos ensinamentos mais importantes para o clínico, e Winnicott foi mestre em nos alertar sobre isso. A sua teoria sobre a transicionalidade é, afinal, uma teoria sobre a processualidade do humano: aquilo que se dá entre um ponto de partida e um ponto de chegada. Ele foi descobrindo, em sua prática, quão inúteis e nocivas as interpretações podem ser quando não brotam paulatinamente de um trabalho de criação do próprio paciente - é preciso esperar!

Muitas vezes, as situações clínicas nos colocam diante do desafio de uma longa latência e põem à prova nossa capacidade de sustentar um processo no tempo, acreditando e mantendo a esperança viva através de nossa própria capacidade de sonhar. Grande parte do trabalho se dá, então, no campo da contratransferência, em um espaço psíquico que necessita permanecer ao mesmo tempo em repouso e em estado de abertura disponível e receptiva (Gurfinkel, 2012). Nessas situações, mais do que nunca, é preciso deixar a terra descansar.

Masud Khan esteve bastante envolvido com tais questões. Seu livro Hidden selves termina com um notável ensaio denominado “On lying fallow” (1977/1989), que gostaria aqui de recapitular.

A expressão lying fallow significa, aproximadamente, deixar a terra descansar por um período de tempo - em geral, pelo menos um ano - antes de ser semeada. Com essa metáfora, Khan pretendia nos chamar a atenção para a importância crucial de um estado psíquico peculiar que é essencial na vida de todos nós e no nosso trabalho como psicanalistas. Ele assinala, no final do ensaio, que foi Winnicott quem lhe ensinou como ajudar um paciente a desenvolver sua própria capacidade de “deixar a terra descansar”, sem se sentir forçado pelo analista a preencher a sessão com uma sucessão de fatos e falas que nada têm a ver com uma verdadeira associação livre. Os créditos são absolutamente pertinentes, pois a importância atribuída por Winnicott aos estados de não integração como base para a experiência criativa, o papel crucial por ele conferido à área do informe, assim como sua máxima antes de fazer, ser, relacionam-se diretamente ao mesmo campo de questões levantadas por Khan.

A capacidade de lying fallow é uma função saudável do eu a serviço do indivíduo e uma conquista resultante do lento processo de personalização. Ela depende da aceitação da singularidade e independência do self de cada um, da tolerância da não comunicação e da possibilidade de suportar a suspensão do estar continuamente relacionando-se com o ambiente, como que necessariamente “em ligação”. Trata-se de um estado de espírito muito singular e difícil de descrever, mas que é nutriente para o eu e também condição preparatória essencial para a maior parte de nossos esforços criativos; “através de uma animação psíquica suspensa e não integrada, tal estado nos oferece as condições de possibilidade para aquela experiência interior larval que distingue a verdadeira criatividade psíquica de uma produtividade obsessiva” (Khan, 1977/1989, p. 185).

 

Silêncio e regressão: pulsão de morte ou solidão essencial?

As considerações clínicas que aqui apresentamos se apoiam em uma tradição de pensamento que considera a dimensão regressiva como constituinte da situação analítica, formando a base de um campo de experiências fundamental para o processo de tratamento. Foi Ferenczi quem deu início a essa linhagem de pensamento, tanto em seus estudos clínicos inaugurais sobre a regressão em análise quanto no que se refere à construção de uma espécie de “metapsicologia do princípio regressivo”, que atravessa toda a sua obra e que tem seu ponto culminante na grande aventura especulativa de Thalassa (1924/1993). Essa linhagem foi retomada e desenvolvida por Balint, em uma relação de filiação direta com Ferenczi, e reapareceu com toda força na obra de Winnicott, em uma espécie de “herança paradoxal”: uma derivação Ferenczi-Winnicott ao mesmo tempo evidente e não reconhecida. De modo muito mais amplo, podemos dizer que a questão da regressão ocupa um lugar central e atravessa todo o chamado pensamento das relações de objeto.3

Ora, deixar a terra descansar, dispor-se a esperar os desdobramentos dos processos de criação singulares, sustentar a espera no tempo, a esperança e a crença em..., ser capaz de habitar a área do informe e de “escutar o silêncio”4 - são todas atitudes clínicas do analista sintonizado com a dimensão regressiva da situação analítica.

Por outro lado, é importante compreendermos que o trabalho com a regressão na clínica não deve ser tomado como uma forma de empirismo ingênuo; muito ao contrário, ele vem sempre acompanhado de uma fundamentação metapsicológica que lhe dá sustento. Assim, se recorremos novamente a Winnicott, compreendemos que a reviravolta que ele propôs do conceito de pulsão de morte no plano metapsicológico guarda uma significativa correspondência com a questão do silêncio e do repouso no âmbito da experiência analítica. Winnicott construiu sua própria versão do princípio regressivo, dialogando com os postulados freudianos - e, indireta e paradoxalmente, com as construções ferenczianas. Como se sabe, ele refutou com grande veemência o conceito de pulsão de morte - fazendo-o de maneira cuidada e fundamentada - e propôs um caminho alternativo bastante convincente. Segundo sua interpretação do princípio regressivo, na origem encontrase a “solidão essencial”.

Como de hábito, Winnicott apresenta sua visão através de um paradoxo:

um observador pode perceber que cada ser humano individual emerge como matéria orgânica que brota da matéria inorgânica, e no devido tempo retorna ao estado inorgânico [...]; ao mesmo tempo, do ponto de vista do indivíduo e de sua própria experiência, ele emerge não do inorgânico, mas da solidão. (1988, p. 133)

Todo ser humano teria experimentado, antes mesmo da dependência absoluta e de qualquer experiência pulsional, tal estado anterior de solidão. Winnicott argumenta: “o que poderia ser mais natural, para explicar essa incognoscível morte que vem depois da vida, do que recorrer a esse estado que já foi experienciado?” (p. 133).

Assim, um princípio regressivo faz com que todos busquem, no fundo de si mesmos, retornar a esse “estar só”; tal movimento é, no entanto, refreado por diversas angústias e é parcialmente realizado pela “capacidade da pessoa saudável de estar a sós e se fazer cuidar por uma parte do self especialmente destacada para tomar conta de tudo” (p. 132). Encontramos essa mesma ideia em Freud e Ferenczi: enquanto não é possível percorrer o caminho de volta até as últimas consequências, somos coagidos a seguir em frente... Há ainda mais um paradoxo: para Winnicott, a solidão primária somente pode existir em condições de dependência máxima, ou seja, pressupõe um ambiente circundante - fundamental mas desconhecido - como pano de fundo. Assim, vemos que o ponto de origem visado implica uma relação potencial com um ambiente; mas esse ambiente, que ulteriormente será a matriz de onde se recortará a forma de um “objeto”, se faz presente, nesse “estágio pré-primitivo”, em uma condição paradoxal de existente-inexistente.

Essa solução elaborada por Winnicott contém, a meu ver, uma formulação inquietante e genial, pois nos permite recolocar toda a problemática em uma visão eminentemente relacional; dessa maneira, ele constrói a sua própria “metapsicologia do princípio regressivo”, singular e original. Com ela, ele dialoga diretamente com Freud e apresenta um modelo que pode também ser cotejado com aquele de Thalassa. São três caminhos igualmente ambiciosos e especulativos. Mas podemos vislumbrar uma proximidade maior entre Ferenczi e Winnicott, uma vez que ambos veem no “estado anterior” almejado um estado que não é tanto de morte, e sim um estado caracterizado por uma placidez e um silêncio ontogeneticamente experimentados. Tratar-se-ia de um “estado de sono” inicial, a partir do qual “a experiência do primeiro despertar dá ao indivíduo a ideia de que existe um estado de não-estar-vivo cheio de paz, que poderia ser pacificamente alcançado através de uma regressão extrema” (Winnicott, 1988, p. 154). Não-estar-vivo não é, definitivamente, o mesmo que estar morto; algo bastante diferente disso é considerar que se trata, muito mais, de um estado de não comunicação, habitado pelo silêncio.

Vejo que o que não posso aceitar é que a vida tenha a morte como seu oposto [...]. No desenvolvimento do bebê, o viver emerge e se estabelece a partir do não viver, e o ser surge como um evento, em substituição ao não ser - assim como a comunicação emerge do silêncio. (Winnicott, 1963/1990a, p. 191)

A partir dessa premissa, o silêncio ganha, de modo definitivo, uma positividade que transforma de modo contundente uma série de concepções em negativo a respeito do tema do silêncio, mais frequentes na história das ideias em psicanálise. Refiro-me ao silêncio entendido como sinal de resistência, como ruptura da regra fundamental, como ataque covarde da transferência negativa ou como desafio amoroso da transferência erótica, ou como efeito do vazio de investimento do fronteiriço. Mas, seguindo as proposições de Winnicott, vemos que o silêncio é essencialmente fonte vital, ponto de partida e ambientação subjetiva para a potencialidade criativa do sujeito.

As descrições do silêncio “em negativo” nos conduzem, em geral, à ideia do silêncio da pulsão e à ideia do silêncio de morte - ideias que, em última instância, fazem eco ao silêncio próprio da pulsão de morte, conforme Freud o postulou. Mas não poderiamos conceber a problemática do silêncio, aqui, para além dessas formulações, segundo um verdadeiro trabalho do negativo - conforme expressão de Green -, através do qual se entende que, na experiência clinica, testemunhamos a dialética entre ser e não ser, ou entre a comunicação e o silêncio?

 

A arte de esperar na contemporaneidade

Por fim, é fundamental ressaltar que a arte de esperar não é importante apenas no âmbito do trabalho clinico; ela é também fundamental no viver criativo, de modo mais amplo. Khan nos advertiu, já em 1977, de que a civilização moderna, excessivamente pragmática e individualista - ainda que tenha proporcionado aos seus membros conquistas inegáveis na forma de um bem-estar social -, negligenciou os aspectos mais sutis das experiências psíquicas de privacidade e de silêncio, tendo falhado seriamente em reconhecer seu valor para a existência humana. Tanto o trabalho e a ocupação compulsiva quanto a indústria do entretenimento, com o seu imperativo social que gera um vicio pelo lazer, são francamente contrários ao lying fallow.

Como podemos atualizar essas proposições de Khan para os dias de hoje? Seria cabível dizer que a hiperconectividade que caracteriza o mundo contemporâneo - um mundo agitado e veloz, no qual há pouco lugar para as pausas, os silêncios e o espaço de segredo - corresponde a uma espécie de modalidade maníaca de ser e estar? Pois, se é a defesa dissociativa do fantasiar que impossibilita o sonhar, podemos supor que é a defesa maníaca que impede o repouso necessário para a experiência criativa.

Creio que a necessidade de um “espaço de repouso” e de silêncio está estreitamente relacionada à importância de um “espaço de segredo” e ao valor da não comunicação.

Pode-se argumentar - com certa razão -que aqui incorremos no erro metodológico de transpor indevidamente os conceitos e os modelos, ignorando que o modo de vida contemporâneo se dá segundo outros parâmetros subjetivos, que não podem ser abarcados pelas categorias que conhecemos. Ainda assim, somos tomados por alguma inquietação: será que não estamos cada vez mais distantes da experiência do lying fallow, perdendo de vista o valor da não comunicação? A hipercomunicação que vivemos não implica uma hipersocialização, que nos deixa carentes de uma tendência antissocial necessária? Será que há ainda lugar, nos dias de hoje, para a brincadeira de esconde-esconde, como sugeriu Winnicott em seu trabalho sobre a comunicação e a não comunicação?

Como um pequeno exemplo, consideremos as observações de Marcelo Coelho (2014) sobre o que se perdeu com a substituição da comunicação epistolar através de cartas pela troca de e-mails: “o e-mail não prevê um grande intervalo entre a mensagem e a resposta, nem a ociosidade da espera e nem o acúmulo de nadas que compõem as melhores cartas” (p. 5). O mundo não pode esperar, o destinatário da comunicação não pode esperar...

Desassossegados por tais interrogações, devemos humildemente reconhecer que estamos vivendo novas experiências em termos de comunicação e não comunicação, e que só o tempo nos dirá para onde nos conduzirão as transformações na subjetividade que hoje experimentamos. De qualquer forma, também aqui é preciso deixar a terra descansar...

 

Notas

1 Desenvolví mais extensamente esse argumento em Sonhar, dormir e psicanalisar: viagens ao informe (Gurfinkel, 2008).

2 Ver meu trabalho “O carretel e o cordão”, em Do sonho ao trauma: psicossoma e adicções (Gurfinkel, 2001).

3 Cf. Gurfinkel, Relações de objeto (no prelo).

4 “The sound of silence”, conforme canção de Simon & Garfunkel (Simon, 1964).

 

Referências

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Correspondência:
Decio Gurfinkel
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deciogur@usp.br

Recebido em 7.11.2016
Aceito em 21.11.2016

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