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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2017

 

OUTRAS PALAVRAS

 

Winnicott, Deleuze e o declínio da interpretação1

 

Winnicott, Deleuze, and the decline of interpretation

 

Winnicott, Deleuze y el declive de la interpretación

 

 

Roberto B. Graña

Analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre SBPdePA, doutor em letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS e pós-doutor em história das ideias psicanalíticas e filosóficas por Paris VII

Correspondência

 

 


RESUMO

Seguindo a linha da crítica da interpretação, desenvolvida em seus escritos mais recentes, o autor propõe uma aproximação teórica entre Donald Winnicott e Gilles Deleuze, concedendo especial atenção à perspectiva imanentista que orienta seus pensamentos atendendo necessidades específicas de seus campos de investigação. Aponta ainda a presença, em suas obras, de uma suspeita fundamental no que concerne à conveniência da interpretação de significados inconscientes e à busca da obtenção de insights, comumente tomadas como premissas clínicas raramente questionadas na constituição do pensar clínico do psicanalista.

Palavras-chave: interpretação tradutiva; declínio da interpretação; intervenção minimalista; repetição; diferença; psicanálise contemporânea.


ABSTRACT

The author follows the critique of interpretation he developed in his latest writings, in order to propose a theoretical approach between Donald Winnicott and Gilles Deleuze. The author gives a particular attention to the immanent perspective that guides these authors' thoughts and fulfills the specific needs of their research fields. The author points out that there is a fundamental suspicion, in Winnicott's and Deleuze's works, concerning both the convenience of interpretation of unconscious meanings and the pursuit of insights. And, he continues, both are usually taken as clinical assumptions, rarely questioned in the constitution of the psychoanalyst's thinking.

Keywords: translational interpretation; decline of interpretation; minimal intervention; repetition; difference; contemporary psychoanalysis.


RESUMEN

Siguiendo la línea de la crítica de la interpretación, desarrollada en sus más recientes escritos, el autor propone una aproximación teórica entre Donald Winnicott y Gilles Deleuze, con especial atención a la perspectiva inmanente que guía sus pensamientos sirviendo a las necesidades específicas de sus campos de investigación. El señala también la presencia, en las dos obras, de una sospecha fundamental en cuanto a la conveniencia de la interpretación de los significados inconscientes y la búsqueda de obtención de insights, tomados como supuestos clínicos poco cuestionados en la constitución del pensamiento del psicoanalista.

Palabras clave: interpretación traslacional; declive de la interpretación; intervención minimalista; repetición; diferencia; psicoanálisis contemporáneo.


 

 

Winnicott contava 29 anos, e muito havia já andado sobre a terra, quando o Dasein de Gilles Deleuze abriu-se ao mundo, em 1925. As duas existências compartilharam o aberto por aproximadamente 46 anos. Seu encontro, entretanto, jamais aconteceu. Oportunizá-lo, no plano das ideias, será a tarefa a que nos proporemos neste breve escrito preliminar.

Winnicott, que quase ignorava os filósofos e entediava-se tremendamente ao lê-los, embora estivesse ciente das implicações filosóficas de seu pensar, não nomeia Deleuze jamais (achados contrários a essa afirmação serão, certamente, bem recebidos!). De fato, ele raramente referia-se aos filósofos: um Bergson aqui, um Foucault ali, um “os filósofos existencialistas” acolá, não muito mais que isso. Não obstante, Winnicott parece haver-se familiarizado com a metafísica, mas o fez lendo os poetas ingleses, principalmente: Shakespeare, Donne, Collins, Wordsworth, Keats, Yeats, Eliot, seu favorito e inspirador. Em algum momento, ele aproximou-se de confessar-nos que também os Beatles lhe haviam ensinado algo. Na verdade, nunca deixou de aprender com os jovens, com as crianças, com os bebês. Winnicott não era propriamente o que designamos hoje como um erudito, qualificativo facilmente atribuível a um Lacan ou, antes dele, a Freud. A vida, o ser, o criar, o fazer estavam aí, imediatamente postos antes de qualquer esforço reflexivo de qualidade abstrusa.

Ele surpreende-nos em sua espontânea, e não menos temerária, declaração ao assumir a presidência da British Psychoanalytical Society, ao dizer que se sentia um pouco estranho (odd) ao ocupar aquele lugar porque não estudara Freud com a extensão e a profundidade que ele merecia, mas que, apesar disso, sentia ter Freud em seus ossos (in my own bones), o que talvez o autorizasse à função. E, de fato, o tinha. Como afirmei já, em outros lugares, creio que Winnicott e Lacan (antecedidos por Ferenczi, certamente) foram os mais criativos-destrutivos e brilhantes freudianos contemporâneos, os dois a quem devemos hoje a vitalidade do pensar psicanalítico, sobretudo porque obrigaram seu velho mestre a trabalhar postumamente tanto ou mais do que já trabalhara em vida. Isso os fez herdeiros, legitimamente, no estrito e justo sentido atribuído por Derrida (2001) a esse significante, apoiado na desconstrução. Mas Derrida também não conheceu Winnicott, nem foi por ele conhecido, como Barthes, que o admirou e usou como poucos pensadores franceses o fizeram, e com o brilho da sua espantosa inteligência. Deleuze o leu, “posto que de atropelo”, se quisermos servir-nos das palavras do nosso Machado de Assis. Procuremos ver isso mais de perto; poderá ser estimulante e, se formos felizes, talvez ajude o pensamento psicanalítico a avançar.

Usa-se eventualmente dividir a obra de Gilles Deleuze em três tempos. Um primeiro, em que o encontramos como um erudito professor de filosofia que apresenta criativamente os grandes filósofos ao mundo pensante, praticamente dando aos livros, como título, o nome de cada um deles: Spinoza, Leibniz, Hume, Nietzsche, Bergson e outros. Um segundo, em que a sua filosofia emerge de uma forma não menos que espetacular, no final dos anos 60, com a publicação em sequência de dois livros que constituirão uma espécie de núcleo duro do seu pensamento (embora soe estranho falar de núcleo duro tratando-se de Deleuze, em que tudo flui, tudo afunda, tudo emerge); melhor dito, dois livros que indicam uma espécie de centro abismal de seu pensar: Diferença e repetição (1968/2006a) e Lógica do sentido (1969/2000). O terceiro tempo estaria determinado pelo começo de seu consórcio com Félix Guattari, que, sendo um psiquiatra de ofício e um ex-discípulo de Lacan afetado narcisicamente por certa indiferença da parte do mestre, forneceu a Deleuze a base de conhecimento e experiência clínica psiquiátrica que daria ensejo à escrita conjunta de O anti-Édipo (1972/2004a) e Mil platôs (1980/2004b). Trata-se de duas obras volumosas, e sem dúvida importantes, em que o ressentimento de Guattari com Lacan e com a instituição psicanalí-tica, além de sua limitada instrução filosófica, conduziram, de um lado, a um ataque, essencialmente equivocado, à teoria do significante e, de outro, a uma crítica necessária da edipianização da teoria e clínica psicanalíticas, a qual será, diferentemente do equívoco antes referido, em tudo concordante com o pensamento filosófico pós-metafísico (dito contemporâneo) e com o pensamento psicanalítico que qualifico de pós-metapsicológico. Refiro-me a Donald Winnicott e Jacques Lacan.

No primeiro dos dois livros escritos na década de 60, Diferença e repetição - talvez o mais denso e complexo de toda a sua obra -, os autores psicanalíticos mais frequentemente referidos por Deleuze são Sigmund Freud, Melanie Klein e Jacques Lacan. Mas, ao ocupar-se de descrever o que denomina de objetos virtuais, os quais se situam entre o real e a representação e, possibilitando a passagem das sínteses passivas às sínteses ativas, operam decididamente na construção da realidade, ele detalha:

O objeto virtual é um objeto parcial não simplesmente porque lhe falte uma parte permanecida no real, mas em si-mesmo e para si-mesmo, pois ele se divide, se desdobra em duas partes virtuais, uma das quais sempre falta à outra. Em suma, o virtual não está submetido ao caráter global que afeta os objetos reais. Não só por sua origem, mas em sua própria natureza, ele é trapo, fragmento, despojo. (1968/2006a, p. 150)

A construção desse conceito avança no sentido de uma enunciação nova, mas o psicanalista consegue adivinhar o seu parentesco com as noções de interregno de Freud (Zwischenreich), apenas referida em uma carta a Fliess - que não foi incluída em sua correspondência publicada - e nunca desenvolvida plenamente, de campo transicional (transitional field) de Winni-cott, referida dessa forma apenas uma vez em toda a obra do psicanalista inglês, e de objeto a de Lacan, que reconhece a sua fonte de inspiração winnicottiana. Deleuze está ciente dessas dívidas, mas, embora se refira aos objetos transicionais, ele deixa de nomear Winnicott (o conceito havia caído no domínio público dos filósofos e psicanalistas franceses após a introdução do pensamento de Winnicott na França por Lacan, na passagem dos 50 para os 60, com a tradução e publicação de “Objetos transicionais e fenômenos transicionais” na revista La Psychanalyse).

Retomando seu raciocínio, escreve Deleuze:

Enquanto a síntese ativa ultrapassa a síntese passiva na direção de integrações globais e da posição de objetos totalizáveis idênticos, a síntese passiva, aprofundando-se, ultrapassa a si própria na direção da contemplação de objetos parciais que permanecem não totalizáveis. Do mesmo modo, estes objetos parciais ou virtuais também se encontram, diversamente enunciados, no bom e no mau objeto de Melanie Klein, no objeto “transicional”,2 no objeto fetiche e, sobretudo, no objeto a de Lacan. (p. 151)

Nessa época, Deleuze não havia ainda se insurgido contra Freud, o Édipo e a psicanálise, nem contra Lacan e o significante. Mas, afastando-se da hermenêutica e do cientificismo, sua perspectiva imanentista, influenciada por Leibniz, Spinoza, Hume, Nietzsche, Bergson e Heidegger, enviesa-se literária e poeticamente, concedendo especial atenção à filosofia, literatura e poesia inglesas. Nesse primeiro grande livro, Diferença e repetição, ele chegará a apresentar-se como um empirista transcendental, e no segundo, Lógica do sentido, encaminhará o seu argumento filosófico a partir de uma leitura, em tudo original, de Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll.

Em Diferença e repetição, Deleuze parece acreditar ainda na necessidade da interpretação, pois, ao se referir às duas repetições, uma que se dá na superfície, no nível dos fatos, e outra que ocorre nas profundidades, de forma oculta, ele afirma:

Uma é repetição no efeito, a outra na causa. Uma é em extensão, a outra, intensiva. Uma é ordinária, a outra, notável e singular. Uma é horizontal, a outra é vertical. Uma é desenvolvida, explicada, a outra, envolvida, devendo ser interpretada. (p. 50)

O exato sentido que Deleuze atribui, então, ao ato de interpretar não é, porém, imediatamente apreensível nesse enunciado. Aludirá a Nietzsche ou a Freud?

Já em Lógica do sentido, um ano mais tarde, ele dirá, diferentemente, que

o sentido não é nunca princípio ou origem, ele é produzido. Ele não é algo a ser descoberto, restaurado ou reempregado, mas algo a produzir por meio de novas maquinações. Não pertence a nenhuma altura, não está em nenhuma profundidade, mas é efeito de superfície, inseparável da superfície como de sua dimensão própria. (1969/2000, p. 75)

Tornando explícito aquilo que espera e necessita encontrar em Freud, acrescenta: “Não procuramos em Freud um explorador da profundidade humana e do sentido originário, mas o prodigioso descobridor da maquinaria do inconsciente por meio da qual o sentido é produzido, sempre produzido em função do nonsense” (p. 75), o que se complementa com uma referência a Osier, segundo o qual o problema da interpretação não consiste em remeter do derivado ao originário, mas em poder compreender os mecanismos mesmos da produção do sentido nas duas séries, a profunda e a superficial, ou a do significante e a do significado (porquanto aqui Deleuze ainda seguia Lacan), pois o sentido é sempre efeito, “efeito de sentido”. De tal forma está Lacan ainda presente, como uma de suas referências, que Deleuze conclui o seu capítulo 11 com uma proposição de encaminhamento da intervenção afim com o pensamento estruturalista. Diz ele que se trata principalmente de “fazer circular a casa3 vazia e fazer falar as singularidades pré-in-dividuais e não pessoais; em suma, produzir o sentido é a tarefa de hoje” (p. 76).

Advogando um retorno, que estava já em Nietzsche e Heidegger, aos pré-socráticos, para a construção de um pensamento novo, o que referimos como contemporâneo, sustenta Deleuze:

É uma reorientação de todo o pensamento e do que significa pensar: não há mais nem profundidade nem altura [...] trata-se sempre de destruir as Ideias e de mostrar que o incorporal não está na altura, mas na superfície, que não é a mais alta causa, mas o efeito superficial por excelência, que ele não é Essência, mas acontecimento. Na outra frente, mostraremos que a profundidade é uma ilusão digestiva, que completa a ilusão ótica ideal. (p. 134)

Esse desdobramento conflui para a formulação final, apoiada em Paul Valéry: “O que é mais profundo do que todo fundo é a superfície, a pele” (p. 143).

Esse aplainamento imagístico-descritivo da ideia de psique é compatível com as novas metáforas do psiquismo humano, da subjetividade transcendental e da individualidade relacional que encontraremos em Winnicott e Lacan.

Em Winnicott, o clássico modelo arqueológico, que contrasta o que está soterrado com o que é trazido à luz, e que ilustra a antinomia freudiana consciente/inconsciente, mediatizada pelo pré-consciente, é substituído por um modelo plano em que os círculos concêntricos indicam que o que está em jogo é o mais central e o mais periférico, o permanente trânsito “between the core and the peel”. Em seu clássico e fundamental artigo sobre os objetos e fenômenos transicionais, Winnicott (1951/1992b) recorre a um desenho simples que demonstra a ação/função da ilusão (que impede o mergulho no abismo que uma imediata percepção da separação implicaria e estabelece uma primeira ponte entre a interioridade e a exterioridade, que inicialmente não se distinguem) através da criatividade primária, quando o bebê concebe a ideia de algo que atenderia suas urgências psicossomáticas imediatas e sua mãe apresenta-se pontualmente no tempo e lugar em que ele a cria. O segundo desenho demonstra como o desenvolvimento da relação no interior desse campo ilusional possui um desdobramento, um devir próprio que dará origem aos primeiros fenômenos e objetos transicionais, experiências que, segundo Winnicott, “iniciam todos os seres humanos naquilo que sempre será importante para eles, ou seja, uma área neutra da experiência que nunca será contestada”, ou contrastada, ou questionada no que se refere a sua origem: interior ou exterior (p. 240). Ao estudar a gênese das psicoses em sua relação com a qualidade dos cuidados maternos, Winnicott (1952/1992a) mais uma vez recorre a essa concepção interativa, que prioriza os lugares, posições e atitudes que compõem o plano das relações emocionais nos estágios mais iniciais da vida, para exemplificar, através de múltiplas ilustrações e diagramas, os sucessos e fracassos que podem determinar um contato genuíno ou os primeiros desastres na relação inicial mãe-bebê, conduzindo a perturbações mais ou menos graves do processo integrativo, que estarão na base tanto da impossibilidade de integração do self individual como da pseudointegração apoiada em processos dissociativos permanentes que conduzem à inautenticidade e à futilização generalizada da experiência do estar consigo e do estar com o outro no mundo. Em seu livro póstumo sobre a natureza humana, em que pretendia sintetizar o principal da sua contribuição, Winnicott (1988) se utilizará diversas vezes de elementos gráficos, dispostos sobre um mesmo plano, através dos quais busca permitir a visualização do que descreve como o desenvolvimento emocional integral do indivíduo humano a partir de círculos concêntricos, que vão sendo conquistados/engendrados a cada passo dentro de seu movimento de expansão, salientando que a cada passo em direção ao mundo exterior, distanciador daquilo que é mais nuclear -a relação inicial com o outro (mãe, família) -, corresponde um passo na direção d'isso que é mais íntimo e familiar, embora insabido. Toda a conquista do mundo é, simultaneamente, uma conquista de si mesmo, uma consolidação da experiência do self individual no mundo.

Em Lacan já tudo é superfície, tudo se encontra ali, entregue ao olho e ao ouvido; ver ou não ver, escutar ou não escutar, dependerá do sucesso de um esforço oblíquo de captura, como diria Badiou. Semelhante a Lacan, Deleuze afirmará que nada se esconde por detrás de nada; atrás de um simulacro encontra-se um outro simulacro, e atrás desse outro um outro; não partimos do derivado para chegar ao original. Como se pode aí ver, trata-se de uma outra forma de enunciação do incessante deslizamento do significante. Enxerga-se ou não se enxerga; é o fenômeno da anamorfose. Para que se chegue a visualizar algo mais nítida e definidamente é necessário ocupar uma certa posição, é necessário un certain regard. Lacan descreve esse fenômeno, a forma particular como o inconsciente pode-se dar a conhecer ou velar-se, segundo a posição que adotamos, ilustrando-o com o quadro Os embaixadores, de Hans Holbein, que lhe serve inclusive como imagem de capa para O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1973). Nesse quadro, observamos dois representantes da aristocracia político-monárquica faustosamente trajados, tendo seus cotovelos apoiados sobre um bonito móvel medieval coberto por um tapete oriental, em que se encontram diferentes objetos relacionados à ciência e à arte. Contemplando o cenário finamente decorado, localizaremos, na parte inferior da tela, um objeto de aparência bizarra, disposto na diagonal, em que nada se vê além do contraste de claro e escuro, que não permite enxergar mais que uma maçaroca informe inclinada junto ao chão. Quem tiver a oportunidade de visitar a National Gallery, de Londres, onde o referido quadro ocupa toda uma parede, irá surpreender-se, ao entrar na sala, com o fato de que a quase totalidade dos presentes aglutina-se no canto esquerdo da peça, não incomumente acompanhados por guias de visitas que os instruem sobre a peculiaridade da obra. Ocorre que, se nos deslocamos para o lado esquerdo e nos aproximamos da parede, com os olhos fixos na maçaroca informe que ocupa a base da tela, vemos tomar forma exata a imagem de um crânio humano, de uma caveira, que não pode ser visualizada de nenhum outro ponto da sala que não o buscado espontaneamente ou sob orientação. Parece óbvio que esse elemento tem o intuito de denúncia, de revelar de forma algo velada o que se passa e trama nos bastidores ou porões das negociações e transações diplomáticas oficiais; aquilo de mortífero ou de tanático que subjaz ao intuito e à razão ornamental do retrato e que, aparentemente, move o artista. O inconsciente, para Lacan, dá-se a ver/ouvir também sob a forma de um quebra-cabeça, de uma paisagem bizarramente desarranjada e com elementos aparentemente sem sentido. Tudo ali, porém, “mostra” e “fala” sem parar. Cabe a quem olha e escuta saber fazer sobressair o sentido das incessantes variações caleidoscópicas superficiais. Nada está oculto embaixo ou atrás de nada. Tudo se assemelha a um slide puzzle, a um rébus.

Mas, se não existem mais o superficial e o profundo, se não existem o derivado e o original, a matriz e a cópia, se já tudo é repetição tendendo à produção de diferença, de heterogeneidade, a representação cederá seu lugar à “presentação”, ao acontecimento, ao evento; e a interpretação, concebida como explicação, decodificação ou tradução, a Deutung freudiana, não encontrará mais lugar nessa redescrição da intervenção analítica, assumindo uma potencialidade doutrinária e redutiva que Winnicott e Deleuze não deixariam de denunciar.

Em O anti-Édipo, Deleuze coloca em questão os pressupostos da interpretação edípica e do pansexualismo psicanalítico em um único parágrafo:

Uma criança não brinca somente de papai e mamãe; também brinca de feiticeiro, de cowboy, de polícia e ladrão, de comboios e de automóveis. O comboio não é forçosamente o pai, nem a estação é a mãe [...]. Admite-se que uma criança, ao crescer, se insira em relações sociais que já não são familiares, mas, como se pensa que essas relações sobrevêm posteriormente, só há duas hipóteses possíveis: ou admitimos que a sexualidade se sublima ou se neutraliza nas relações sociais (e metafísicas), forma assumida na pós-análise, ou admitimos que essas relações implicam uma energia não sexual. (1972/2004a, p. 49)

Sobre a tendência dos psicanalistas de crianças a encontrarem em toda brincadeira infantil a referência ao pênis paterno e ao seio materno, a essa incontornável conflitiva “simbólica” a ser interpretada, assinala criticamente Deleuze:

Consideremos uma criança que brinca ou que, ao engatinhar, explora as divisões da casa. Contempla uma tomada elétrica, maquina seu corpo, serve-se de sua perna como de um ramo, entra na cozinha, no escritório, manipula os carrinhos. É evidente que a presença dos pais é constante e que a criança sem eles não tem nada. Mas a questão não é essa. A questão é sabermos se tudo aquilo em que ela toca é vivido como uma representação dos pais [...]. Parece contraditório dizer que a criança vive entre objetos parciais e que o que ela percebe nos objetos parciais são, ainda que fragmentadas, as pessoas parentais. (p. 49)

Para Deleuze, o inconsciente é concebido em sua natureza produtiva, e não representativa ou expressiva. Equivale dizer: ele não duvidava do isso, mas desacreditava do inconsciente recalcado. O inconsciente já não é teatro, mas usina. Assim concebido,

o inconsciente não levanta problemas de sentido, mas problemas de utilização. A questão do desejo não é “o que é que isto quer dizer?”, mas como é que isto funciona? [...]. Isto não representa nada, produz, isto não quer dizer nada, funciona. E é no meio da derrocada geral da pergunta “o que é que isto quer dizer?” que o desejo aparece. (p. 114)

Em sua refutação do assim chamado simbolismo psicanalítico, ou seja, em sua crítica da significação, Deleuze propõe que os etnólogos teriam algo a ensinar aos psicanalistas no que se refere à abordagem do símbolo - está aqui se referindo, obviamente, à antropologia estrutural. Segundo Deleuze:

Embora as suas formulações não sejam sempre claras, os etnólogos e os helenistas pensam que um símbolo se define não pelo que quer dizer, mas pelo que faz e pelo que se faz dele. [...] E talvez os etnólogos tenham muito a ensinar aos psicanalistas sobre a não importância do “que é que isto quer dizer?” [...]. Pode ser que os etnólogos e helenistas levem os psicanalistas a fazer, por sua vez, uma descoberta similar: a de que não há nem material inconsciente nem interpretação psicanalítica, mas apenas utilizações, utilizações analíticas das sínteses do inconsciente. (p. 186)

Em Mil platôs, a crítica da interpretação assume uma qualidade irônica, sarcástica, não sem apoiar-se numa certa caricaturização da atividade do psicanalista que favorecerá logo o ataque mordaz:

Lá onde a psicanálise diz: Parem, encontrem o seu ego, será preciso dizer: Vamos ainda mais longe, ainda não encontramos o nosso corpo sem órgãos, ainda não destruímos bastante o nosso ego. Substituam a anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela experimentação. (1980/2004.0, p. 200)

O corpo sem órgãos (expressão que Deleuze vai buscar em Antonin Artaud), como campo de imanência das intensidades, da vitalidade, do desejo, não é inter-pretável. Pense-se no corpo em estágios primitivos ou nos estados de regressão, conforme descrito por Winnicott. O corpo sem órgãos, de Deleuze, aproxima-se da concepção do corpo anintegrado (unintegrated) de Winnicott e do corpo despedaçado (dépecé ou morcelée) de Lacan. Conforme Deleuze:

Um corpo sem órgãos é feito de tal maneira que não pode ser ocupado, povoado, senão por intensidades. Só as intensidades é que passam e circulam. O corpo sem órgãos também não é uma cena, um lugar, nem mesmo um suporte onde se passaria alguma coisa. Nada a ver com uma fantasia. Nada a interpretar. (p. 203)

À semelhança de Foucault, Deleuze equiparará o ritual psicanalítico com o religioso e o psicanalista com o sacerdote; segundo diz, a figura mais recente do padre é o psicanalista, com seus três princípios: prazer, morte e realidade. Chegando muito próximo da noção de alienação em Lacan -a desfiguração do sujeito e a falsificação de seu desejo pela submissão de si e de seu projeto ao diktat do Outro - e de inauten-ticidade em Winnicott - que determina a instituição do pseudo-self ou do falso self, a que nos referimos antes, porque este passa a ser a única forma de negociação compulsória com vistas ao asseguramento temporário da integridade do verdadeiro self ou da autenticidade do sujeito estrategicamente encoberta - , ele dirá que a subjetivação implica uma teoria do rosto. A “rostifica-ção”, que toma como protótipo o rosto da mãe, permite a apropriação de um território que assume a ordem do familiar, mas o rosto deverá ser mais tarde destruído. A imagem que nos forma deverá ser posteriormente despedaçada. O trabalho analítico deveria oportunizar a sua destruição. Não tendo mais que uma breve notícia, porém, sobre a obra de Winnicott, Deleuze não terá a oportunidade de familiarizar-se com as noções de relação, destruição e uso de objeto, desdobramento do subjetivo que tem justamente a função de descolonizar o imaginário4 individual através da expulsão do não eu para o exterior do self.

O inconsciente já não designa o princípio escondido do plano de organização transcendente, mas o processo do plano de consistência imanente [...] o inconsciente está por fazer, não por encontrar. Já não há uma máquina dual consciência-inconsciente, porque o inconsciente é, ou, antes, é produzido, lá onde vai a consciência arrebatada pelo plano. (p. 361)

O inconsciente, portanto, deverá devolver ao sujeito que se forma ou “formata” a cada passo - e isso é inevitável porque precisamos “adaptar-nos” ao mundo para viver - o vigor e a vitalidade de sua informidade ou amorfismo (formlessness) essencial.

Veja-se que tal redescrição do inconsciente é compossível com a noção winnicottiana de um inconsciente acontecimental. O que é o inconsciente em Winnicott senão o que não aconteceu, ou o que deverá acontecer, ou o que havendo acontecido não foi percebido ou significado como tal, ou que sendo vivido não foi porém experienciado, dando lugar à simples catalogação de fatos biográficos (como na operatividade do falso self)? Ora, o que não aconteceu não poderá ser representado, não poderá igualmente ser interpretado na perspectiva da “outra cena”, pois não houve nesse caso cenificação, fantasia, sonho. Não há lugar, portanto, para as manobras de significação, descodificação ou tradução do significado inconsciente de um sintoma, de um sonho, de um ato falho. Partindo-se do princípio de que o significado é preexistente, dirá Deleuze ser “necessário um mecanismo secundário a serviço da significância: é a interpretância ou a interpretação” (p. 156). Sua fina ironia crítica o levará a afirmar:

O significado último é, pois, o próprio significante na sua redundância ou no seu “excedente” [e nesse sentido Deleuze não distingue a interpretação em Lacan, Freud e Klein]. É perfeitamente inútil pretender ultrapassar a interpretação e até a comunicação pela produção do significante, visto que é a comunicação da interpretação que serve sempre para reproduzir e produzir o significante. Não é certamente assim que se pode renovar a noção de produção. Foi a descoberta dos padres psicanalistas [...]: que a interpretação tenha de ser submetida à significância, ao ponto de que o significante não dê nenhum significado sem que o significado não volte a dar por sua vez significante. (p. 156)

Quem está familiarizado, como os prováveis leitores deste escrito, com a produção winnicottiana dos últimos dez anos de sua vida, poderá admirar-se do quanto tudo isso se compõe em fina sintonia com os escritos da maturidade de Winnicott, que já desacreditava dos insights e suspeitava que as melhores análises prescindiam de compreensão e explicação. Lembremos que, embora elogiasse a abordagem não interpretativa de Virginia Axline, ele lhe reprovava estar ainda tão preocupada com o insight (Winnicott, 1960/1989a). Ela ainda buscava levar à compreensão, articular determinado sintoma, comportamento ou atitude com um significado que esclareceria a sua origem, que seria a sua causa ou motivação inconsciente.

Em um pequeno escrito do final dos anos 60, prenhe de grandes enunciados relacionados ao problema da interpretação na clínica analítica, e intitulado “A interpretação em psicanálise” (1968/1989b), Winnicott, que faz a crítica avançar no sentido do declínio da interpretação (Graña, 2014) - em sua concepção clássica e tradicional -, realça a ilegitimidade e injus-tificabilidade da Deutung. Sua relevância desconstrutiva e seu vigor descritivo fazem valer a pena a transcrição de alguns excertos, cuja disseminação é certamente a nossa intenção principal.

Nos parágrafos introdutórios a esse escrito, está dito que “a palavra interpretação implica que estamos utilizando palavras, havendo a implicação adicional de que o material fornecido pelo paciente é verbalizado”; porém, “nesta época, após mais de meio século de psicanálise, os pacientes sabem que se espera que digam o que lhes vem à mente e que não retenham nada” (p. 207). Ou seja, a “regra fundamental” (verbalizar tudo o que vier à mente) opera aí como um clichê que - como dirá Lacan -, contrariamente à sua intenção original, formula-se como um imediato convite à mentira, havendo a necessidade de considerar que

também costuma ser reconhecido, atualmente, que uma grande parte da comunicação que tem lugar entre paciente e analista não é verbalizada. Isso foi notado, inicialmente, em termos de nuances da fala e das várias formas através das quais a fala envolvia certamente muito mais do que o significado das palavras utilizadas. (p. 207)

Isso faz com que Winnicott desloque a tônica da interpretação para algo que se comunica no diálogo analítico em níveis não necessariamente verbais, que eventualmente atinge um ponto essencial e que envolve o reconhecimento de que algo importante está sendo ali veiculado; nesse caso, “o propósito da interpretação deve incluir o sentimento que o analista tem de que foi feita uma comunicação que precisa ser reconhecida. Essa é talvez a parte mais importante da interpretação” (p. 208). A atitude analítica envolve, então, o reconhecimento, a convalidação e o registro vivo, pontual e sutil do acontecimento enquanto apropriativo (no sentido do Ereignis de Martin Heidegger).

As interpretações formuladas em termos de símbolos e de simbolismos ilustram exatamente o oposto do que está sendo aqui sugerido, devendo ser em tese evitadas. Segundo Winnicott,

como exemplo disso, poder-se-ia tomar uma interpretação do tipo “os dois objetos brancos no sonho são os seios”, etc. Tão pronto o analista tenha embarcado nesse tipo de interpretação, ele abandonou a terra firme e acha-se agora em uma área perigosa, onde está utilizando as suas próprias ideias, e estas podem estar erradas do ponto de vista do paciente nesse momento. (p. 208)

A simplicidade da intervenção ou da interpretação, o seu conveniente minimalismo, conforme descrito e proposto em outro lugar (Graña, 2011), conceberá “idealmente” o analista devolvendo ao paciente aquilo que ele supostamente lhe diz, sem disso aperceber-se, mas

pode facilmente acontecer que o analista ache que isso é uma ocupação fútil, porque, se o paciente comunicou algo, qual é o sentido de dizê-lo de volta a ele, exceto, obviamente, pelo propósito de deixar o paciente saber que o que foi dito foi ouvido e que o analista está tentando alcançar o sentido corretamente? (Winnicott, 1968/19890, p. 208)

Que bela indicação encontramos aqui - de evidente ressonância deleuziana e heideggeriana -, compreendendo a repetição, a busca, a espera e a possiblidade do desvelamento da verdade no curso/tempo de uma conversação despretensiosa, que não tem a forma de um instrumento de pesquisa nem tem como objetivo principal a busca de significados ou de “causas” para o que está sendo comunicado. Reconhece-se aí a potencialidade transformadora da repetição, com base em seu poder terapêutico de produção de heterogeneidade, de diferença; haverá “sempre o Outro na repetição do Mesmo”, sustentará Deleuze (1968/2006a, p. 50).

Muitos dos nossos analisandos são incapazes de

fazer uso de analistas que requerem dos pacientes mais que um certo grau de adaptação, ou, dito inversamente, fazer uso de analistas que não tem capacidade ou vontade de alcançar mais que um certo grau de adaptação às necessidades do paciente. (Winnicott, 1968/1989b, p. 209)

Winnicott afirma isso referindo-se ao que denomina de órbita de onipotência individual do analisando, seu território narcisista, que esbarra não incomumente no fato de que muitos analistas,

em seu papel interpretador, assumem uma posição que é quase inexpugnável, de maneira que, se o paciente tenta fazer uma correção, o analista tende antes a pensar em termos de resistência do que em termos da possiblidade de a comunicação ter sido errada ou insatisfatoriamente recebida. (p. 208)

Isso compreende a crítica da compreensão da Verneinung segundo Freud (1925/1973) - se “sim”, sim; se “não”, sim. Na sequência dessas redescrições da atividade interpretativa do analista, visando o máximo benefício da experiência da análise, Winnicott refere-se a uma dificuldade facilmente antecipável para a introdução dessa nova forma de pensar a intervenção analítica, o fato de que “há uma certa oposição a essa maneira de olhar as coisas, porque os analistas gostam de exercer as habilidades que adquiriram e têm muito a dizer a respeito de qualquer coisa que apareça” (1968/1989b, p. 210). O que se está propondo, e de forma não necessariamente confortável para quem se formou na tradição que privilegia a representação, o significado inconsciente e a sua interpretação, é uma reserva, uma renúncia narcísica que certamente afeta a vaidade do analista “performático”, justamente aquele que ama exercitar as habilidades adquiridas e tem sempre muito a dizer acerca do emergente.

Em A ilha deserta (2002/2006), publicação póstuma que reúne escritos de diferentes épocas, Deleuze refere-se a Winnicott nominalmente em um ensaio que tem por título “Pensamento nômade”. Contrastando-o com Melanie Klein - que, segundo o filósofo, estabelece com seus pacientes um contrato que consiste em trocar o relato de estados vividos pela interpretação de fantasias, uma troca de dinheiro e palavras -, ele dirá que

um psicanalista como Winnicott mantém-se verdadeiramente no limite da psicanálise, porque tem o sentimento de que esse procedimento não convém mais num certo momento. Há um momento em que não se trata mais de traduzir, de interpretar, de traduzir em fantasia, de interpretar em significados ou significantes, não, não é isso. Há um momento em que será necessário partilhar, é necessário colocar-se em sintonia com o doente, é preciso ir até ele e compartilhar o seu estado. (p. 322)

Em um belo escrito que compõe o seu livro Crítica e clínica (1993/1997), intitulado “O que as crianças dizem”, Deleuze examina criticamente a abordagem clínica de Melanie Klein na análise do pequeno Richard, realizada durante a Segunda Guerra. Sua crítica contrasta a abordagem arqueológica tradicional do freudo-kleinismo com sua abordagem cartográfica, de inspiração foucaultiana, que possui espontânea afinidade com as atitudes clínicas de Winnicott e Lacan.

O pequeno Richard é estudado por Melanie Klein durante a guerra. Ele vive e pensa o mundo em forma de mapas. Ele os colore, os inverte, os superpõe, os povoa com seus chefes, a Inglaterra e Churchill, a Alemanha e Hitler. O próprio da libido é impregnar a história e a geografia, organizar formações de mundos e constelações de universos, derivar os continentes, povoá-los com raças, tribos e nações. Qual ser amado não envolve paisagens, continentes e populações mais ou menos conhecidos, mais ou menos imaginários? Mas Melanie Klein, que, no entanto, faz de tudo para determinar os meios do inconsciente, tanto do ponto de vista das substâncias ou das qualidades quanto dos acontecimentos, parece ignorar a atividade cartográfica do pequeno Richard. Só vê ali um depois, simples extensão dos personagens paren-tais, o bom pai, a mãe má... Mais até que os adultos, as crianças resistem à pressão e à intoxicação psicanalíticas; Hans ou Richard o tomam com todo o humor de que são capazes. Porém não conseguem resistir por muito tempo. Têm de guardar os seus mapas, sob os quais só restaram fotos amareladas do pai-mãe, pois a “Sra. K. interpretou, interpretou, INTERPRETOU.”. (p. 74)

Importante será que não confundamos a superinterpretação, a interpretação interminável que nos é proposta por Umberto Eco (1992/1993), que endossa o perspectivismo nietzschiano - e está afinada com a afirmação de Paul Valéry de que não existe o verdadeiro significado de um texto, relato ou discurso -, com a intoxicação de interpretações a que Deleuze se refere acima. A interpretação concebida no sentido nietzschiano, a Auslegung, diz respeito à função hermenêutica da personalidade, ou seja, ao fato de não deixarmos de atribuir sentido a tudo o tempo todo; o que justifica a afirmação de Nietzsche de que “não existem fatos, apenas interpretações”. Contrariamente a isso, a Deutung freudo-kleiniana, concebida em sua forma clássica, conduz ao “forçamento”, ou seja, à imposição de um significado único, de um sentido definitivo que constituiria a versão “verdadeira”, a correta interpretação dos fatos.

A perspectiva do declínio da interpretação assinala não apenas um movimento de queda da possiblidade de alcançar qualquer saber absoluto, no sentido hegeliano, mas sobretudo a futilidade e a desimportância da busca da determinação de critérios que assegurem ao psicanalista a formulação da “interpretação correta”, como pretenderam os autores de diversos e célebres manuais de técnica psicanalítica que circularam nos Institutos de Psicanálise nas décadas de 60, 70 e 80, e que tomavam a interpretação tra-dutiva como um instrumento de máxima eficácia clínica e de inquestionável valor conceitual e axiomático.

Obviamente, enquanto inadequadamente proposta for a questão, impropriamente apresentada será a resposta. Se o analista se supõe o sujeito e senhor de todas as revelações, o extrator arqueológico das verdades, ele inevitavelmente as sentenciará. A atitude alternativa - e certamente mais discreta, segura e conveniente - é, no entanto, insuspeitavelmente simples: não interprete; pergunte, problematize, repita, realce, desdobre, desterritorialize, sugerirá Deleuze. Seja, esteja, rabisque, e espere, silenciosamente, a emergência de uma forma nova elevando-se do amorfo (formless), a espontânea e essencial verdade do self, acrescentará Winnicott, rendendo-se por fim, como Heidegger, à linguagem poética, para pretender muito fugazmente tocar o ser.

 

Notas

1 Trabalho apresentado no XXIV Encontro Latino-Americano sobre o Pensamento de Winnicott, Rio de Janeiro, novembro de 2015.

2 Serão as aspas indicativas de um desconhecimento, anonimação ou borramento da origem do conceito por Deleuze?

3 No sentido de espaço, lugar, compartimento.

4 Feliz expressão de Alfredo Naffah Neto.

 

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Correspondência:
Roberto Barberena Graña
Rua Prof. Annes Dias, 154/1201
90020-090 Porto Alegre, RS
Tel.: (51) 3286-1542
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Recebido em 13.01.2016
Aceito em 17.06.2016

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