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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2018

 

TRABALHOS PREMIADOS
XXVI CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE REVISTA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE

 

Melhor seria não haver nascido?1

 

Better not to have been born?

 

¿Sería mejor no haber nacido?

 

Le meilleur serait-ce de n'être pas né?

 

 

Ronis Magdaleno Júnior

Membro efetivo e analista didata do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Campinas e membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

O autor procura pensar a questão da morte a partir do referencial psicanalítico. Argumenta que Freud cria um problema conceituai em 1920, com o conflito entre pulsão de vida e pulsão de morte, excessivamente apoiado numa lógica econômica. Lacan, por meio da ideia do inconsciente estruturado como linguagem, abre um novo percurso para a compreensão do lugar da morte na clínica e no fenômeno da transferência. O autor propõe que a morte, em psicanálise, opõe-se à palavra e ao saber, pois constitui um centro ocupado pelo silêncio, em torno do qual a vida resiste. São apresentados dois excertos de material clínico que buscam contextualizar o percurso teórico.

Palavras-chave: morte, pulsão de morte, princípio de prazer, compulsão


ABSTRACT

The author's purpose is to think about death from the psychoanalytic perspective. The author states that, in 1920,Freud created a conceptual problem by proposing the conflict between life and death drives. This problem was heavily based on an economic logic. When Lacan proposed the notion of "the unconscious structured as a language", he opened a new path for understanding the place of death in the clinical practice and in the phenomenon of transference. According to the author of this paper, in Psychoanalysis, death opposes both word and knowledge, because death constitutes a center that is filled with silence; a center around which life resists. The author presents two clinical vignettes in order to contextualize the theoretical path.

Keywords: death, death drive, pleasure principle, compulsion


RESUMEN

El autor propone pensar en el tema de la muerte desde el marco psicoanalítico. Argumenta que Freud crea un problema conceptual en 1920, al proponer el conflicto entre el instinto de vida y el instinto de muerte, apoyado excesivamente por una lógica económica. Lacan, al proponer el inconsciente estructurado como lenguaje, abre un nuevo rumbo para comprender el lugar de la muerte en la clínica y en el fenómeno de la transferencia. El autor propone que la muerte, en el psicoanálisis, se opone a la palabra y al conocimiento, ya que constituye un centro ocupado por el silencio, alrededor del cual resiste la vida. Se presentan dos extractos de material clínico para contextualizar el curso teórico.

Palabras clave: muerte, instinto de muerte, principio del placer, compulsión


RÉSUMÉ

L'auteur propose penser la question de la mort à partir du référentiel psychanalytique. Il argumente que Freud crée un problème conceptuel en 1920, en proposant le conflit entre pulsion de vie et pulsion de mort, trop appuyé sur une logique économique. Lacan, en proposant l'inconscient structuré comme langage, ouvre un nouveau parcours pour la compréhension du lieu de la mort dans la clinique et dans le phénomène du transfert. L'auteur propose que la mort, en psychanalyse, s'oppose à la parole et au savoir, vu qu'elle constitue un centre occupé par le silence, au tour duquel la vie résiste. On présente deux extraits de matériel clinique qui cherchent contextualiser le parcours théorique.

Mots-clés: mort, pulsion de mort, principe de plaisir, compulsion


 

 

O filhote de homem nasce para morrer, salvo disposições em contrário - no caso, a presença de um humano adulto au pair e que o deseje, e a capacidade inata para o grito, primeiro verbo que se instala no infans, no ser que ainda não fala. A regra, se deixado à própria sorte, sujeito à prematuração que o caracteriza, é a morte, que quando enfrentada por conta própria apenas pode ser adiada por um grito irrepresentável, que tenta contorná-la sem qualquer potencial para fazê-lo, visto que insuficiente para tal fim.

 

Os suspiros de Carlos

Carlos é um homem de pouco mais de 40 anos, em análise há vários anos. É um sujeito quieto, ou melhor, é um sujeito que pensa muito para falar. Depois de tantos anos de análise vai ficando claro para nós que esse atraso ou essa reticência em falar, mais especificamente em continuar falando, relaciona-se ao medo da equação palavra/ação - falar é agir, a palavra é o ato - e ao julgamento que imagina que vou fazer sobre ele, sobre essa parte de si que ameaça o tempo todo tomar conta dele, tornando-o a meu juízo (essa é uma fantasia dele) um pervertido sexual.

Um recurso que Carlos desenvolveu durante a vida e na análise foi o de assumir um modelo que ele acredita que os outros consideram aceitável e correto, e pautar sua vida por esse modelo. É claro que sua existência se torna tediosa, pesada e sufocada, fechada e constrangida, num continente rígido e opressor. Um dia surge, entre suas falas modelares, não a lembrança, mas a referência a um mito familiar, a história de como foi seu nascimento, ou melhor, sua vinda ao mundo, já que seu nascimento ainda é um processo em curso. Carlos veio ao mundo prematuro, mais prematuro que a maioria dos filhotes de homem, e teve de ficar por um mês numa incubadora, afastado dos cuidados da mãe, recebendo apenas o leite que era enviado por ela ao hospital onde estava internado. Carlos sobreviveu sem sequelas físicas, mas trouxe para o cerne de seu ser uma marca de silêncio, em que o grito não estrutura a linguagem - pois dissociado da escuta do outro -, mas existe por si, como puro ato que convoca a morte, visto não ter ali o outro au pair, para lhe traduzir o que aquilo poderia significar, o broto de uma palavra que pudesse estruturar uma linguagem e um pensamento. Cria-se um registro de rejeição em relação a tudo que ele precisa/deseja e a tudo que sai dele.

Continuando o mito, Carlos vai para casa com a mãe, mas é uma criança que não chora. Chama a atenção de todos que Carlos não chora quando está com fome, não chora quando está molhado, silencia. O grito não mais ocorre. Hoje, durante as sessões, ao abordar áreas mais próximas do seu desejo, silencia, julga seu desejo abusivo e excessivo. Suspira fundo nesses momentos, suspiro que me toca profundamente e que, não sei bem por quê, me irrita e incomoda. Seria um suspiro que expira e toma o lugar do grito? Um suspiro que põe no ambiente, com os parcos recursos de um ser imaturo, a morte que nos chama para seu ventre, ventre negro, mas de total complementaridade? Carlos debate-se na análise e na vida para poder existir sendo ele próprio, para poder construir um estofo representativo que o sustente e dê contorno criativo a esse resto de silêncio que o constitui de maneira traumática. Transferencialmente convida-me, aspira-me, continuamente para esse fundo de silêncio, este que nos fustiga e nos chama a todos.

A vida é aquilo que resiste, por ação de um desejo que lhe é estrangeiro e por necessidades filogeneticamente adquiridas e incrustadas na matéria viva, ao convite a uma complementaridade com o todo, que só é alcançada na morte. Ao renunciar à existência de uma "pulsão de atingir a completude" (Freud, 1920/2006, p. 165) atrelada aos anseios de Eros, Freud nos deixa como caminho único em direção à completude o lugar mítico de reencontro com a terceira mulher (Freud, 1913/1969b), a morte, como derradeira esperança de um sentimento impossível de unidade com o todo, ser Um. Ajuda-nos aqui o poema de Augusto dos Anjos "Vox victimae" (2001, p. 192), que ressalta a volúpia, ainda que obscura, de um encontro gozoso com a morte:

Na festa genetlíaca do Nada,

Abraço-me com a terra atormentada

Em contubérnio convulsionados..

 

E ai! Como é boa esta volúpia obscura

Que une os ossos cansados da criatura

Ao corpo ubiquitário do Criador!

No ponto extremo dessa volúpia está o silenciamento da morte, entoado no canto que, segundo Lacan, resume o tema central de Édipo em Colono, quando Édipo, já conjunção de morte e vida, após seu automartírio, chega ao local de seu holocausto: "Mais vale, no final das contas, nunca ter nascido, e se se nasce morrer o mais depressa possível" (Lacan, 2010, p. 312). Esse refrão introduz o campo que procurarei explorar neste trabalho, ou seja, a proximidade intrínseca entre o desejo e a morte, e nos remete à pergunta que o fundamenta: como falar da morte por meio do instrumental teórico e com a experiência clínica psicanalítica, tão atrelada ao campo do desejo? Será a morte uma questão psicanalítica?

Dia após dia, na vida como na clínica, contornamos o campo vazio a que a (in)experiência da morte nos incita todo o tempo, visto que, por princípio, nenhum de nós tem previamente conhecimento algum dela e, quando o tivermos, já será tarde e não mais será conhecimento. Não há como desvelar esse saber impossível, pois ele "não comporta instante algum além de si e apaga qualquer palavra" (Lacan, 2010, p. 284). Aproximamo-nos a cada instante da vida da experiência do vazio e da falta, daquilo que imaginamos ser não ser, mas a fala e a palavra (nossos recursos de compreensão) são, por natureza, a antimorte, contornam e afastam-se ativamente, em movimento centrífugo, desse lugar. Ao passar à existência, o infans é atravessado pela palavra, elemento da linguagem do Outro que insiste e torna impensável a concepção de uma unidade "da qual não há absolutamente nada a dizer antes de ela passar à existência" (Lacan, 2010, p. 316). A vida não pode conceber a morte, pois não há referência a ela em todo o seu percurso falado e vivido.

Lacan nos incita a pensar psicanaliticamente não a morte como tal, "porque isso não quer dizer nada", mas a "morte à medida que é contra ela que a vida resiste" (2010, p. 279), sendo inclusive em torno desse Real que o campo psicanalítico se estrutura. As palavras do grande Outro, que nos envolvem, submetem e abandonam, caem e impõem uma depressividade fundante (Fédida, 2009), que para ser articulada exige um esforço considerável de vida, de construção e de simbolização do qual ninguém sai ileso, mas humanizado. Essa "cicatriz narcísica" humanizante (Freud, 1920/2006, p. 146), dano permanente e profundamente doloroso ao sentimento-de-si, é o que resta como fundo de silêncio relativo à profunda decepção com os genitores e à frustração incontornável das moções pulsionais ligadas à sexualidade infantil.

No princípio era a morte, ilusão posterior de completude e pertinência à unidade das coisas, que pouco a pouco vai se fragmentando, esgarçando, estruturando-se a partir daí instâncias e uma mente que pode, fragilmente, fazer frente às exigências de uma realidade construída pari passu com um eu que se compõe de morte, de investimentos libidinais abandonados e perdidos. Cria-se a ilusão de um eu e de uma realidade, os quais em razão de sua gênese não são consistentes. Para complicar as coisas, o princípio de prazer, regulador dos processos vitais desse aparelho, estabelece-se só num segundo momento, após haver se desenvolvido um enlaçamento de excitações a representações, que buscam uma homeostase por meio de mecanismos de descarga ou de impedimento dela. Antes do desenvolvimento dessa capacidade de processamento psíquico, a tarefa de livrar-se da excitação opera independentemente do princípio de prazer, não o leva em consideração. Manifesta-se como compulsão, uma atividade psíquica primitiva de "caráter demoníaco" (Freud, 1920/2006, p. 159).

No fundo sempre o silêncio, que contudo só existe na vida falada a partir do grito. É o grito que denuncia o fundo de silêncio que subjaz a tudo - é a vida que denuncia, como ilusão de posterioridade, a presença incômoda da morte, que está no princípio. A vida, da qual somos cativos após seu atravessamento pela palavra do Outro, está conjugada à morte, sendo puxada centrifugamente, quase que a contragosto, para circuitos cada vez maiores, por elementos perturbadores do mundo externo, que a chamam de fora a partir de necessidades autoconservativas. Eros, ao se impor, num segundo momento, vai colaborar com esse esforço de preservação da vida, fustigando com a libido o ser em direção à permanência, tanto do eu como da espécie. A vida é, portanto, uma luta contra um tipo de inércia orgânica interna, que visa restabelecer um estado anterior ideal, a morte (Freud, 1920/2006). Lacan retoma esse pressuposto formulado por Freud, retirando dele, porém, certo ranço energético e econômico, ao afirmar que "a vida só pensa em descansar o mais possível enquanto espera a morte. É preciso puxá-la para fora para que ela alcance este ritmo pelo qual nos pomos em concordância com o mundo" (Lacan, 2010, p. 315).

O desejo por excelência seria, nesse sentido, no mais profundo do íntimo, o desejo de dormir, introduzido - e pouco explorado - por Freud (1900/1969a) em A interpretação dos sonhos, um desejo sem nome, uma espécie de "modorra, que seria o estado vital mais natural" do humano (Lacan, 2010, p. 315), sempre atrelado a uma tendência alienante ao discurso e ao desejo do Outro, o que torna o desaparecimento de si um risco sempre iminente. Seria a essência do desejo humano dormir, voltar a um estado inicial não propriamente de morte, pois o que morre é a vida, mas de não existência, de um não ter nascido nem ter chegado a existir? Seria a recuperação de um estado inicial impensável, em que a palavra ainda não deslocou o infans da ilusão da unidade, do pertencimento ao silêncio dos astros, da união ao corpo ubiquitário do Criador?

Dormir e morrer se sobrepõem, assim como viver e sonhar. Mas afinal o que é a morte para nós, psicanalistas? Teria a ver com o corpo morto, o corpo imóvel, o corpo que se decompõe, o corpo que não deseja, o corpo que não fala, o corpo que não mais se reproduz? O que realmente nos diz respeito? Possivelmente tudo isso e nada disso. Se, partindo de uma leitura atenta de Além do princípio de prazer (Freud, 1920/2006), concebermos a pulsão de morte como corporal, em contraste com a pulsão de vida, essencialmente psíquica, teremos na morte uma questão psicanalítica muito complexa, pois envolveria todos esses campos de desligamento, ao mesmo tempo que se descola deles em direção a um lugar sui generis, que é o campo do desejo. Mas desejo de quê?

Nesse ponto, Lacan nos coloca dentro do problema ao conjugar desejo e morte: "o desejo é desejo de nada" (2010, p. 285). Atrás de tudo que é nomeado pelo homem, o que existe é o inominável, a falta, o oco, esse inominável que se aparenta ao inominável por excelência, isto é, a morte. Somos a articulação entre o ser, enquanto desejo que espera por se revelar, e o nada, que sustenta a estrutura dada pela palavra, tendo no centro uma falta, algo que não se realizou. Essa articulação nos conduz a uma região pouco confortável, àquilo que não se quer saber, ou seja, que o que sustenta a vida é a morte. É a este ponto que chega Freud (1920/2006), causando grande desconforto em si próprio e em seus seguidores: o objetivo de toda a vida é a morte. A vida não se caracteriza por nada a não ser por essa aptidão pulsional para a morte, para voltar a um estado anterior de unidade perdida.

Partindo de um referencial energético, Freud cria um problema teórico para si mesmo, ao qual se dedicará pelo resto de seus dias: como acomodar esse objetivo morte, no sentido puramente econômico, ao corpo teórico que havia desenvolvido até então? Onde e como situar o princípio de prazer, conceito tão fundamental para a sustentação de seu edifício teórico? É com base no problema conceituai que introduz com a postulação da pulsão de morte que Freud se vê obrigado a propor a segunda tópica, os processos de cisão do eu, a segunda teoria da angústia, a psicologia das massas, o fetichismo, efeitos daquilo que provoca um gap, um espaço vazio, um oco, na essência mesma da estrutura do ser, que está fora do universo representativo e que Lacan vai situar, fora dos registros Simbólico e Imaginário, no registro do Real. Um silêncio que sustenta o grito, mas que só é silêncio a partir do grito.

O desfecho do drama de Édipo aponta nessa direção. Quando Édipo se encontra isolado em seu exílio, coloca para si uma questão fundamental, que condensa toda a problemática da existência humana, da vida e da morte: "Será que é no momento em que não sou nada que me torno um homem?". É no momento em que tudo cai, em que a fala se esgarça, em que a palavra se interrompe, que algo da essência, algo que tange a morte, apresenta-se como verdade, por ser causa do desejo. Primo Levi, por outros caminhos, chega a esse ponto ao se perguntar "É isto um homem?", no momento em que o ser humano é destituído de tudo que o identifica; "aqui não existe 'por quê'" (1988, p. 27).

 

Os braços de Sara

Sara é silêncio. Com 30 e poucos anos, procurou análise justamente quando foi diagnosticado um câncer em sua mãe. Sua queixa era de ter importantes dificuldades nos relacionamentos pessoais. Tinha uma dificuldade enorme em tolerar o outro, sentindo-se frequentemente traída, não gostada, e calava-se. Durante os muitos anos de análise, sempre teve muita dificuldade em expressar-se em palavras, achar sentido para sua vida e sentir-se gostada por mim. Sara tem uma aparência peculiar: é pequena, com um corpo algo disforme, a cabeça muito grande em relação ao todo, sem qualquer traço de feminilidade, pouco expressiva, e um olhar algo desconfiado; mas o que desde o início chamava bastante minha atenção eram seus braços, que me pareciam curtos, e os dedos de suas mãos, que eram pequenos e gordos, com uma quantidade incomum de pelos. Uma experiência estranha de algo humanoide, algo fetalizado. Sua aparência, suas proporções (ou desproporções) causavam em mim sentimentos inomináveis e intensos, dolorosos...

Nos primeiros anos de análise, suas queixas em relação à companheira com quem vivia eram frequentes e constituíam boa parte de seu material falado. As minhas interpretações ou mesmo os comentários que eu fazia durante suas sessões eram sentidos como fora de sintonia com ela ou considerados ofensivos. Sara parece nunca ter entendido bem o que estava fazendo ali comigo, expressando constantemente que não havia muito benefício nem sentido em estar ali, mas de maneira paradoxal era bastante regular em sua frequência às sessões e, por vezes, fazia-me sutilmente intuir que gostava de mim. Seus silêncios eram longos e penosos. Eu sentia um enorme peso na região cervical, que se irradiava pela parte posterior dos braços e me obrigava a movimentar-me muito na cadeira - às vezes, surpreendia-me alongando o pescoço e os braços. Aquilo se transformava numa penosa angústia, que chegava a me fazer pensar em interromper a sessão ou mesmo a própria análise. Os silêncios de Sara e as minhas dores físicas eram vividos por mim como uma mortificação silenciosa. Passaram-se anos até que ela trouxesse o material a seguir.

"Fui colher sangue para um exame de rotina e depois meu braço inchou e foi ficando com manchas roxas. Ficou parecendo um braço de morto" - vai levantando a manga da camisa a fim de me mostrar o braço, e a cena que se apresenta é assustadora: o braço totalmente roxo e inchado, como um braço de cadáver em início de processo de decomposição, o que causou em mim um forte impacto e um sentimento de repulsa, que me deixou sem palavras. Consigo apenas dizer: "Fizeram um estrago aí, hein!"

Sara continua, mostrando-me o braço sob todos os ângulos, o que aumenta a impressão causada pela imagem:

Foi ficando inchado, depois foram aparecendo manchas... No início, achei que algum bicho havia mordido. Nem relacionei com a coleta de sangue. Voltei ao laboratório e ninguém sabia me dizer o que tinha acontecido. Acho que triscou uma artéria e o sangue infiltrou o músculo. É estranho, parece um braço de morto. Vai mudando de cor. Fico com medo de estar doente mesmo.

Sara faz um longo silêncio e me deixa ali envolvido no impacto que a imagem causou em mim. Permaneço intrigado, siderado com a imagem...

Pergunto: "Como sente isso de ter um braço morto?"

Após um silêncio, ela responde: "Acho que é como estou me sentindo." Prossigo: "Que tem algo morto dentro de você, como se tivesse uma parte morta."

Silêncio.

Ela diz: "É didático isso. Fiquei pensando numa aula de anatomia em que se mostra um braço morto".

Silêncio enorme, durante o qual me sinto muito incomodado, paralisado e irritado. Penso comigo se tudo isso vale a pena, se tenho algo a fazer nessa situação. Uma necessidade de ter que fazer algo se apossa de mim. Tenho que dizer alguma coisa.

Sara vive a morte de sua palavra e o assassinato da palavra do outro. Não consegue, desde sempre, contornar o silêncio que a habita com algum estofo significante, algo que a proteja do efeito de atração desse oco irrepresentável, que é a presença da morte dentro de si, como um fio desencapado. Complicando esse impasse está o impulso assassino da palavra do outro, que poderia retirá-la dali. A morte não metaforizada apresenta-se como signo no setting analítico, como imagem crua de um órgão em processo de decomposição, ou de conservação por formol, numa aula de anatomia. Muito didático, mas assustador.

Os silêncios de Sara estão muito longe de ser momentos de gestação psíquica ou reflexivos; são silêncios próprios do contato brutal com a morte. O silêncio da morte, silêncio do que se foi, do qual nada se quer saber, provoca a reação de repulsa, de evitação, um virar o rosto apavorado, que vemos retratado em imagens de cenas de horror. É possível falar disso? É possível ouvir falar disso? Sara usa algum humor sarcástico para tentar responder àquilo que ouve, mas desnatura, descontextualiza, quando não mata, a palavra. Não quer ouvir que talvez já esteja morta, em parte morta, com pouca esperança de reviver. A sessão se desenvolve num clima de extrema tensão: o analista insiste em nomear aquilo que não tem nome; Sara recusa, fragmenta-se (põe seu braço na sala de anatomia), acusa o analista de sarcasmo, de crueldade... Talvez tenha razão: é um assunto que deve ser silenciado. Melhor nem ter nascido. A palavra introduz toda a degradação que comporta o tema. Mas a cena está ali, a olhos vistos, cruenta. O que fazer com ela? É dessa morte que nós, analistas, tratamos, a morte que sustenta a vida, mesmo quando a vida está morta.

 

A morte, a palavra e o desejo

Auxiliados pelo material clínico de Carlos e de Sara, podemos pensar que o contrário da morte, em psicanálise, não é a vida, e sim a palavra. Onde a palavra falta, a morte se apresenta. Mas não é também exatamente aí que se situa a causa do desejo, animação da vida? A sobreposição desses dois campos introduz o drama da existência humana, e ao mesmo tempo todo seu potencial criativo, construtivo ou destrutivo, para o bem ou para o mal. Tão gêmeas são a fadiga e a satisfação, como nos adverte poeticamente Almada Negreiros.2 A morte e a satisfação (impossível) do desejo, tão próximas, tão gêmeas, quando submetidas a uma visada metapsicológica, levaram Freud a formular uma segunda teoria pulsional, na qual propõe que a satisfação plena só ocorre com a pulsão de morte, capaz de descarregar de forma completa. Por esse caminho, chega à morte como telos da vida, a vida procurando a morte incansavelmente, até conseguir alcançá-la, paradoxalmente, de forma natural. Baseado num princípio energético, Freud supõe uma quantidade que se impõe, e cria um nó teórico que, até o final de sua vida, não consegue desatar de maneira plena. É possível conceber o psíquico energeticamente?

Freud não abandona sua proposição inicial em direção a uma nova, mas articula o que é novo com o antigo, fecundando o além com o princípio de prazer, construindo um novo campo de trabalho, um novo paradigma, que terá consequências enormes sobre o que virá a ser a psicanálise: introduz o problema da pulsão de morte em seu referencial conceitual e cria o impasse do "seria melhor não ter nascido?". Esse nó se desfaz, ou se afrouxa um pouco, ao pensarmos que o diabólico, aquilo que está mais além, não é a morte, mas a compulsão, o Zwang, que mais do que uma quantidade é uma insistência. Pelo Wiederholungszwang (compulsão à repetição), Freud chega a um mais além. É partindo da observação dessa insistência repetitiva que ele propõe algo além do princípio de prazer - princípio que sempre deu base e fundamento para seu raciocínio teórico - e que, ao insistir no mesmo, inibe o espaço da criatividade e da fertilidade. Enquanto o Zwang é insistência, o Wiederholungszwang é redundância, o que faz toda a diferença.

Não confundamos esses dois campos conceituais, já que o primeiro aponta para uma ruptura, para um de Novo - o potencial de algo novo da verdade do sujeito se repetir na repetição -, enquanto o segundo, para um de novo, um mais do mesmo, que não necessariamente deixa de ser criativo, mas que não necessariamente é criativo, podendo ser muito sintomático. O Zwang, porém, para ser criativo e não somente gozo, precisa do atravessamento por algo de particularmente vitalizante, que passa pelo desejo e pela palavra. O inverso disso é a compulsão à repetição, que é movida pelo gozo, aquém da palavra, e que se apresenta à bruta, que empurra até um ponto em que fadiga e satisfação se enlaçam de tal forma que vida e morte passam a ser um, tão gêmeos... Não esqueçamos que é essa mesma insistência diabólica, insistência significativa, que faz o mundo possível, à medida que se torna "um universo submetido à linguagem" (Lacan, 2010, p. 279), mas é ela também que instaura o mal-estar que acompanha a vida. A desarticulação dessa lógica significante expõe o sujeito ao impossível de entender do universo real, portanto, à loucura, mas também, paradoxal e assustadoramente, à sua verdade última, ou seja, a constituição do íntimo de seu ser, que está apoiada num resto de morte, num aquém da palavra.

Sara apresenta, em cena, um corpo que goza, sem palavras - um corpo em decomposição. Carlos coloca-me em contato com um corpo que expira.3 Em ambos os casos, a decomposição do corpo psíquico se dá pela perda da palavra, palavra essa que contorna a demanda, abrindo o oco do desejo e o silêncio da morte. O corpo sem a palavra é o corpo que se decompõe, é o corpo que morre. No entanto, não podemos deixar de considerar que a própria incorporação da palavra comporta uma perda, a morte da completude, carregando consigo a impossibilidade de uma realização completa do ser, a marca da castração. É nesse sentido que a condição humana carrega em si algo de trágico, de dramático: a impossibilidade de escapar de um destino mortal, que é o que insere o homem em seu meio. Qualquer impossibilidade nesse processo de inscrição num todo cultural, no qual a morte está na base, resulta em tangenciamentos da morte do ser, seja pela patologia mental, pelo adoecimento psicossomático ou pela morte física, natural ou suicidária.

 

Referências

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Fédida, P. (2009). Uma doença do humano. In P. Fédida, Dos benefícios da depressão: elogio da psicoterapia (M. Gambini, Trad., pp. 19-32). São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Freud, S. (1969a). A interpretação dos sonhos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vols. 4-5). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)        [ Links ]

Freud, S. (1969b). O tema dos très escrínios. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 12, pp. 365-379). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1913)        [ Links ]

Freud, S. (2006). Além do princípio de prazer. In S. Freud, Obras psicológicas de Sigmund Freud (L. A. Hans, Trad., Vol. 2, pp. 123-198). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1920)        [ Links ]

Lacan, J. (2010). O seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-1955) (M. C. L. Penot, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Levi, P. (1988). É isto um homem? (L. Del Re, Trad.). Rio de Janeiro: Rocco.         [ Links ]

Negreiros, J. A. (2005). Obra literária de Almada Negreiros (Vol. 1). Lisboa: Assírio & Alvim.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Ronis Magdaleno Júnior
Rua Padre Almeida, 515, sala 14
13025-251 Campinas, SP
Tel.: 19 3203-2103
ronism@uol.com.br

Recebido em 19/12/2017
Aceito em 02/01/2018

 

 

1 Texto vencedor do Prêmio Durval Marcondes, conferido durante o 26.° Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado em Fortaleza, Ceará, de 1 a 4 de novembro de 2017.
2 "Se escrevo ou leio ou desenho ou pinto,/logo me sinto tão atrasado/no que devo à eternidade,/que começo a empurrar p'ra diante o tempo/ e empurro-o, empurro-o à bruta/ como empurra um atrasado,/ até que cansado me julgo satisfeito./ (Tão gêmeos são a fadiga e a satisfação!)" (Negreiros, 2005, p. 182).
3 No duplo sentido da palavra: expelir o ar dos pulmões e morrer.

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