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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2018

 

RESENHAS

 

O seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação

 

 

Dominique Touchon Fingermann

Graduada em psicologia pela Universidade Paul Valéry, em Montpellier, com especialização em psicopatologia clínica na Universidade de Aix-Marseille. Radicada no Brasil desde 1983, iniciou sua formação analítica na França e pratica a psicanálise em São Paulo. Desde 1989, participa ativamente da implantação da psicanálise de orientação lacaniana, e em 1998 foi membro fundador do movimento dos Fóruns do Campo Lacaniano no Brasil. Publica regularmente artigos em periódicos e revistas nacionais e internacionais, sendo coautora, com Mauro Mendes Dias, de Por causa do pior (Iluminuras, 2005), organizadora de Os paradoxos da repetição (Annablume, 2014) e autora de A (de)formação do psicanalista (Escuta, 2016)

 

 

Autor: Jacques Lacan
Tradutora: Claudia Berliner
Editora: Zahar, Rio de Janeiro, 2016, 562 p.
Resenhado por: Dominique Touchon Fingermann

 

 

Há, com efeito, nesse Outro um algo que sempre põe o sujeito a certa distância de seu ser e que faz com que ele nunca se reúna com esse ser, com que só possa alcançá-lo nessa metonímia do ser no sujeito que é o desejo. (Jacques Lacan)

Este livro, publicado pela editora Zahar em 2016, é constituído pela sequência de 27 capítulos, isto é, aulas, sessões, ou seja, acontecimentos do seminário de Jacques Lacan entre os dias 12 de novembro de 1958 e 1.° de julho de 1959. As diversas transcrições do seminário foram consultadas e compiladas, e apenas recentemente estabelecidas, editadas e publicadas por Jacques-Alain Miller.

Esse último organizou a lógica dessa sequência cronológica em quatro partes, que de forma precisa retratam o ensino lacaniano - sua metodologia, sua abordagem epistemológica da psicanálise e a orientação de sua transmissão. A parte 1, "O desejo no sonho", atesta mais uma vez o que chamamos de a releitura de Freud, ou seja, a prática assídua do comentário da obra freudiana, que ocupou Lacan durante boa parte de seu ensino, a fim de retificar a lâmina cortante da verdade dos conceitos definitivos que sua obra explicitou. A parte 2, "Sobre um sonho analisado por Ella Sharpe", é outro exemplo ímpar dos cuidados epistemológicos do ensino lacaniano. O psicanalista francês se aplicou a ler, comentar, cotejar e criticar, eventualmente, as teorizações e exposições clínicas de seus contemporâneos, com a finalidade determinada de extrair e verificar o alcance clínico da teorização da psicanálise. A parte 3, "Sete lições sobre Hamlet", apresenta outro pilar da transmissão lacaniana da psicanálise: a referência às obras artísticas, não para rebaixá-las ao mero uso de exemplos clínicos, mas para elevá-las à dignidade de orientação ética para o psicanalista, pois o artista chega ao "melhor que se pode esperar de uma análise no fim" (Lacan, 1971/2003, p. 15). A parte 4, "A dialética do desejo", conclui o seminário explicitando o que a introdução ("Construção do grafo") havia anunciado: o ensino de Jacques Lacan, com seu estilo, suas diversas referências cruzadas e seu esforço teimoso de formalização.

As referências, nesse momento crucial dos anos 1960, remetem a Hegel, Saussure, Heidegger, bem como à literatura (Shakespeare se faz bastante presente), e Lacan empreende a exposição da topologia necessária à explicitação da estrutura do psiquismo humano, que o famoso grafo do desejo desdobra e condensa.

Subversão do sujeito e dialética do desejo seria um bom nome para essa época de ouro do ensino lacaniano, que, embora decididamente freudiano, está construindo as bases indefectíveis de seu arcabouço conceitual, apesar de todas as transformações formidáveis pelas quais virá a passar.

"Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano" é o título do famoso texto incluído nos Escritos (1966/1998), apresentado originalmente em 1960, um ano depois do seminário O desejo e sua interpretação. Esse texto já contempla e ultrapassa as pistas abertas no seminário. O ensino oral semanal de Lacan mostra essa lógica de espiral, na qual cada nova volta, embora pareça repisar o mesmo ponto, relança a cada vez novas questões e alcança um pouco mais a experiência clínica.

O ensino de Lacan tem esta característica ética fundamental: o saber do inconsciente e o real da clínica sempre o transbordam e forçam a constante reavaliação e renovação consequente da práxis da teoria.

De saída, Lacan situa o contexto da sua empreitada: Freud e os fundamentos da psicanálise, que sua obra estabeleceu. A psicanálise intervém como tratamento psíquico que leva em consideração os fenômenos residuais marginais, como lapsos, sonhos, atos falhos e sintomas, na medida em que estes colocam em jogo o desejo e sua energia: a libido. A psicanálise se apresenta como um tratamento modificador de estrutura, já que a neurose pode ser considerada uma defesa contra o desejo.

O desejo - conceito freudiano enquanto movimento, intransitivo -não pode ser reduzido a uma procura de objeto adequado, e sustenta toda a questão da transferência e a direção da cura analítica. A abordagem poética e filosófica do desejo explora, desde sempre, a sua dinâmica: "O desejo é a essência do homem", pontuou definitivamente Spinoza.

 

 

Construção do grafo

Iniciado durante o seminário sobre a relação de objeto e construído durante o seminário sobre as formações do inconsciente, Lacan apresenta agora o grafo, tal como este vai, doravante, atravessar boa parte de seu ensino.

A formalização que sua construção necessita reduz os fenômenos aos elementos mínimos da estrutura e mostra, de forma magistral, as diversas relações, intersecções, sobreposições e simultaneidades entre os elementos. Essa geração lógica presentifica simplesmente a divisão do sujeito e o movimento do desejo: a subversão do sujeito e a dialética do desejo.

Tudo começa com um movimento: a intenção provém do isso, e para se transformar em mensagem precisa, primeiramente, passar pelo lugar do código A. A mensagem do sujeito, a sua demanda, só poderá ser ouvida e respondida se for emitida, desde já, a partir do que o Outro (A) for capaz de ouvir e interpretar.

Abre-se assim, de saída, um hiato entre a intenção de manifestar a necessidade1 e a mensagem. Esse hiato, esse intervalo, chama-se desejo: d. O sujeito procede dessa sujeição forçada ao código do Outro, que inevitavelmente falha ao transformar a necessidade vital em demanda, e portanto abre a dimensão do desejo e do inconsciente que a linha pontilhada no segundo andar do grafo representa,2 ou seja, a enunciação recalcada que extrapola e sustenta todo e qualquer enunciado. O desejo oriundo dessa falha do código, isto é, da linguagem, se apresenta fundamentalmente como desejo do Outro.3

O sujeito, dividido por essa parte de si mesmo que seu enunciado nunca nomeia, será doravante escrito na álgebra lacaniana como . O código no nível inconsciente do segundo andar se revela e se escreve, portanto, como a relação do sujeito com a demanda D: -D. A mensagem do sujeito nesse nível inconsciente será sempre marcada por esse significante, que faltará sempre para nomear o ser (do sujeito): S(). De certo modo, essa formalização escreve o Unbekannt do umbigo do sonho, ao qual remete cada um dos sonhos e das formações do inconsciente.

A resposta do sujeito a esse desconhecido intangível, radical, lê-se no nível da fantasia -α, que sustenta, fixa, amarra o desejo d, fixando o sujeito dividido e evanescente $ com o objeto a que recorta, interpreta, a partir da interpretação fantasmática do desejo do Outro.

É com base nessa álgebra, que permite escrever a topologia do sujeito e de seu desejo consequente, que Lacan empreende a construção do grafo no seminário precedente, para ler e interpretar os chistes e os sintomas. Depois desse lembrete inicial, ele estende sua exploração para as outras formações do inconsciente: os sonhos e a obra literária. Nem sempre, porém, o uso do modelo do grafo permite elucidar o Unbekannt que Lacan aborda com essa formalização.

 

O desejo no sonho

Lacan prossegue e persegue, a partir das questões que a clínica apresenta; interroga essa via real para o inconsciente, nem sempre muito evidente em suas apresentações clínicas: "é muito difícil captar esse famoso desejo que, em todo sonho, supostamente se encontra em toda parte" (p. 47).

Como bem dizia Freud, é o enigma, o absurdo, o nonsense do sonho que indica o desejo indestrutível; é um ponto fora da linha, uma falta fundamental de representações, que orienta inexoravelmente todas as formações, figurações, formas de todos os sonhos. A satisfação do sonho consiste nos achados inacreditáveis para figurar o não figurável: "O Wunsch do sonho se contenta com aparências" (p. 50).

Lacan considera aqui dois sonhos bem diferentes em sua relação com o desejo inconsciente: o sonho do pai morto (Freud, 2000b), cuja realização de desejo parece a priori problemática, e o sonho infantil da pequena Anna (Freud, 2000a), cujo disfarce inconsciente parece desnecessário. Esse sonho de realização de desejo, por seu próprio texto, ilustra como uma necessidade se satisfaz pela via do significante e de seus encadeamentos metonímicos, ao mesmo tempo que expressa "a realidade da satisfação como interdita" (Lacan, 2016, p. 87). A criança se confronta com a censura, o dizer que não, o interdito, incluído na estrutura do significante, que por sua vez permite outro tipo de satisfação.

O sonho do pai morto que não sabia que estava morto ilustra, de outra maneira, o limite absoluto do significante: não há pai que saiba da morte.

Os dois sonhos realizam igualmente esse desejo fundamental de dormir, dizia Freud - dormir para não despertar para o real traumático da ausência de garantia, de um pai que saiba, um pai presente, mesmo se for para encarnar a proibição.

 

Sobre um sonho analisado por Ella Sharpe

Ao longo de cinco encontros, Lacan explora, destrincha, comenta, graças ao modelo do grafo do desejo, um sonho de uma paciente de Ella

Sharpe. Há um inegável aspecto didático nessas aulas, que mostram o cuidado, o tempo, o valor que pode tomar a análise de um "simples" sonho. A interpretação de um sonho é vetorizada e justificada em uma análise na medida em que ela orienta a interpretação do desejo: extrair do sonho o desejo que ele "realiza", satisfaz.4 Sabemos que o neurótico interpreta o desejo do Outro, sempre Outro, com sua fantasia. A "análise" do sonho do paciente de Ella Sharpe permite evidenciar a fantasia fundamental - fazer-se desaparecer, sendo diferente do que é o próprio sujeito - que fomenta as imagens do sonho, e cuja "solução" responde ao enigma do desejo do Outro, a sua falha essencial interpretada pelo neurótico como Che vuoi? (O que queres?).

 

Sete lições sobre Hamlet

O que quer Hamlet? Como interrogar o desejo de uma criação literária? Hamlet, que a obra e suas reviravoltas desconcertantes apresenta como dividido, torturado pela sua divisão entre o desejo e o ato, é personagem e texto. O protagonista hesitante da peça de Shakespeare apresenta suas perturbações diante do desejo como enigma do Outro, que não responde, nem explica, nem dissolve o equívoco de seus gestos e feitos: o pai morto, a mãe, o tio traidor, Ofélia. O que quer dizer Hamlet, essa peça que encena de tantas maneiras o nonsense e o limite das interpretações edipianas para dar conta do mistério do desejo e de sua enunciação que escapa a todos esses enunciados?

"Sete lições sobre Hamlet" é um capítulo didático, na medida em que expõe o enigma e o paradoxo do desejo indestrutível, porque irrealizável, e cuja realização confina até a morte.

 

A dialética do desejo

O desejo, enquanto inconsciente, não faz sentido. Ele perturba, atormenta a razão e o bom senso, não acorda com o canto do mundo. Apesar do que pensam os contemporâneos de Lacan, como Glover (1939), ali comentado, não há maturação do desejo em direção a uma maior adaptação do sujeito com o mundo. O desejo é causado por uma falta que não faz sentido. Lacan chama essa falta que não se subjetiva de objeto, que ele escreve com uma letra, a. O objeto a designa a falta de nomeação, por parte do significante, do ser do sujeito, ou seja, daquilo que não se sujeita à sua representação pelos recursos do Outro. O objeto a é a negatividade da falta a ser que movimenta o desejo, mas também designa a positividade de uma singularidade ímpar que fixa.

Os capítulos desdobram, com extrema didática e generosidade, as consequências dessa estrutura nos destinos particulares dos tipos neuróticos (fobia, histeria, obsessão) e perversos, mas sobretudo explicam como o achado fantasmático de cada um responde e corresponde ao sentido/sem-sentido do desejo. A fantasia produz um sentido, justamente onde não havia, interpretando o desejo como desejo do Outro e respondendo a esse desejo fazendo-se de objeto que faltaria para o Outro ser completo e responder por sua falta.

Esse seminário extenso termina com capítulos densos e tensos, nos quais Lacan expõe, em todas as letras, se assim posso dizer, a álgebra da sua formalização da experiência psicanalítica: , α, A, , a necessidade, a demanda, o desejo, a fantasia e suas relações topológicas e lógicas fundamentais para a leitura e a interpretação da experiência da clínica.

O arcabouço conceitual que permite sustentar a clínica lacaniana da psicanálise está longe de ser aqui definitivamente estabelecido. Percebemos ao longo do texto a progressiva introdução do termo real, dimensão que será acrescentada ao simbólico, aqui privilegiado, e ao imaginário, como sempre, denunciado.

A fantasia favorece a localização, por Lacan, dessa terceira dimensão da estrutura psíquica. Ela é índice da morada do ser no dizer (diz-mansão), que ultrapassa os limites do simbólico e do imaginário. A experiência da fantasia exprime "essa dimensão, o real do sujeito, que é o advento do ser para além de toda realização subjetiva possível" (Lacan, 2016, p. 429).

Podemos adiantar, neste tempo de conclusão, que mais além desse real, localizado a partir do limite do simbólico, será necessário para Lacan formalizar (com o nó borromeano) a dimensão do real que testemunha a ex-sistência: a existência ímpar e singular, que não decorre da alienação simbólica e imaginária. Deveremos considerar, portanto, um desejo que não deva nada ao Outro, isto é, que não seja apenas efeito da estrutura, mas ponto de origem, ponto de emergência de um dizer inaugural. Essa mudança conceitual acontecerá em consequência da consideração, na análise, da experiência do desejo e de sua interpretação.

Essa formalização, necessária à sustentação da experiência da análise, se estenderá por mais 19 seminários. Ser lacaniano, hoje como ontem, consiste em seguir sustentando a experiência original da psicanálise, sempre na contramão do canto do mundo, prosseguindo na explicitação de seus princípios operatórios, pois, como diz Lacan, o analista, para funcionar enquanto tal, tem que ser pelo menos dois: um responsável pelo saber-fazer do ato analítico e outro engajado na transmissão do saber da experiência, no intuito determinado de explicitar as razões da ética dessa clínica, que leve em conta a contravenção do desejo e as aberrações do gozo.

 

Referências

Freud, S. (2000a). Carta 73, de 31 de outubro de 1897. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud [gd-rûm] (J. Salomão, Trad., Vol. 1). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (2000b). Conferência 12: algumas análises de amostras de sonhos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud [cd-rom] (J. Salomão, Trad., Vol. 15). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Glover, E. (1939). The psychoanalysis of affects. The International Journal of Psychoanalysis, 20,299-307.         [ Links ]

Lacan, J. (1998). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In J. Lacan, Escritos (V. Ribeiro, Trad., pp. 807-842). Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1966[1960]         [ Links ])

Lacan, J. (2003). Lituraterra. In J. Lacan, Outros escritos (V. Ribeiro, Trad., pp. 15-25). Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1971)        [ Links ]

 

 

Correspondência:
Dominique Touchon Fingermann
Travessa Alonso, 30
05436-065 São Paulo, SP
dfingermann@gmail.com

 

 

1 "Interpretar o desejo é restaurar aquilo a que o sujeito não pode ter acesso por si só, a saber, o afeto que designa seu ser e que se situa no nível do desejo que lhe é próprio" (Lacan, 2016, p. 159).
2 "A discursividade se impõe retroativamente à tendência, que se submete à sua forma" (2016, pp. 39-40).
3 "Esses dois andares estão em funcionamento, ambos, ao mesmo tempo, no menor ato de fala" (p. 36).
4 "É nesse intervalo, nessa hiância, que se situa a experiência do desejo. Ela é inicialmente apreendida como sendo a do desejo do Outro, e é dentro dela que o sujeito tem de situar seu próprio desejo, o qual não pode situar-se em outro espaço que não esse" (p. 26).

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