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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.3 São Paulo jul./set. 2018

 

RESENHAS

 

Elogio dell'inconscio: dodici argomenti in difesa della psicoanalisi1

 

 

Fabiano Veliq

Doutor em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas)

Correspondência

 

 

Autor: Massimo Recalcati
Editora: Bruno Mondadori, Milano, 2007, 140 p.
Resenhado por: Fabiano Veliq

 

 

Massimo Recalcati é um ferrenho defensor da psicanálise e de sua atualidade para pensar os problemas contemporâneos. Em Elogio dell'inconscio: dodici argomenti in difesa della psicoanalisi, ele propõe 12 argumentos a favor da psicanálise, em resposta à conturbada obra O livro negro da psicanálise, organizado por Catherine Meyer, lançado em 2005 na França e em 2011 no Brasil. Em seu livro, Recalcati demonstra toda a sua paixão pela psicanálise e explicita como essa área do saber pode servir para abordar diversas questões do homem de hoje.

Com seus 12 argumentos, o autor procura fazer um percurso ascendente pela teoria psicanalítica, trabalhando primeiro o inconsciente como uma invenção freudiana. Segundo ele, Freud é quem inventa o inconsciente com uma razão e uma ética; com Freud, o inconsciente deixa de ser algo assimilado ao irracional, ao incompreensível, e passa a ser uma instância psíquica dotada de um sentido encoberto, que pode ser acessado pela análise.

O meu elogio do inconsciente pretende ser um elogio do inconsciente freudiano. O passo dado por Freud, com efeito, não tem antecedente, porque o inconsciente não vem pensado tanto como uma obscuridade inacessível da psique, como um subsolo da razão, mas como uma razão dotada de um rigor ético e de uma gramática própria. (p. 2)

Ao situar o inconsciente como uma nova razão, Freud empreende uma interessante inversão do Iluminismo. O eu deixa de ser senhor em sua própria casa, e outra razão exige ser escutada. O inconsciente inventado por Freud faz nascer em nossa cultura o sujeito do desejo, que contraria a noção de um eu que controla todas as coisas - que é antes controlado por algo que não compreende. De centro da vida psíquica, o eu passa a ser uma simples parte, e isso representa uma grande ferida narcísica para o ser humano, provocada pela psicanálise.

A invenção do inconsciente propõe um redimensionamento da esfera da consciência. Os sonhos, os lapsos, os atos falhos passam a ter um sentido que antes lhes era negado. Se antes os sonhos eram vistos como uma mensagem dos deuses, agora são vistos como uma mensagem do próprio sujeito, que ele não deseja escutar e que, por isso, rejeita. Esse inconsciente não se mostra como uma instância estanque. É um inconsciente que trabalha e participa da vida do sujeito de forma ativa; é algo que anima a vida do sujeito e o põe em movimento. Nesse sentido, a invenção freudiana significa uma grande subversão para o sujeito.

O segundo argumento de Recalcati diz que o inconsciente não é fechado em si mesmo, mas é sempre algo que depende do outro. A constituição de minha própria imagem depende de um modelo externo a mim. A interioridade do sujeito é uma exterioridade interiorizada e, por isso, não se pode acusar o inconsciente de ser apenas uma instância mais íntima e inacessível, pois todo o sujeito é constituído a partir de relações externas que estabelece com o outro. Esse contato com o outro, da mesma forma que constitui o sujeito, leva-o a uma perda de gozo para que possa viver em comunidade. É isso que Freud chama de mal-estar na civilização.

O terceiro argumento sustenta que a psicanálise faz uma dura crítica ao princípio de identidade. Ao dizer que o eu não é mais senhor em sua própria casa, a psicanálise afirma que ele não é algo sólido, que é sempre atravessado pelo outro e que está sempre em processo de construção. Dessa forma, o eu se constitui um hóspede em sua própria casa.

Com essa proposta, a psicanálise produz uma crítica que se opõe a qualquer enfatização unilateral do homem, estimulando a tolerância e o respeito à razão do outro. Isso aponta na direção de que o sofrimento humano não viria de uma fragilidade do eu, mas de seu reforço excessivo. A ideia de um eu constituído mostra-se uma grande loucura para a psicanálise.

De acordo com Recalcati, a crença num eu sólido, sem um inconsciente, é totalitária e acentua o narcisismo do sujeito. Com isso, geram-se diversas doenças psíquicas. O excesso de defesa do sujeito acaba por tentar cancelar o sujeito do inconsciente. O sujeito rompe o contato com sua realidade interna, com seu desejo, e se solidifica sobre a ilusão de seu próprio eu. Para o autor, isso seria uma espécie de psicose branca e caracterizaria de forma significativa a sociedade contemporânea.

O quarto argumento mostra que a psicanálise propõe ao sujeito uma responsabilidade radical. Na medida em que obriga a um descentramento do eu, reduzindo a ambição narcísica de ser mestre na própria casa, ela sugere uma ética que não busca um fundamento universal, mas que é sempre singular e contingente ao sujeito. O que conta não é a adesão a uma lei transcendente e absoluta, mas a coerência com nosso desejo inconsciente. Dessa forma, a responsabilidade proposta pela psicanálise é uma responsabilidade radical do sujeito para consigo mesmo. Se não há um padrão a ser seguido, cada um se torna responsável diante do próprio desejo, não apenas em relação à sua consciência, mas também em relação a tudo o que o outro fez por ele.

O quinto argumento exalta o caráter indestrutível do desejo. Liga-se, assim, ao argumento anterior, pois a indestrutibilidade do desejo aponta para a responsabilidade radical a que o homem é convidado pela psicanálise. A única culpa que cabe ao sujeito é de se afastar do próprio desejo. Como o desejo sempre diz respeito à particularidade do sujeito, afastar-se dele significa afastar-se de si mesmo. Ao mostrar o caráter indestrutível do desejo, a psicanálise põe o homem novamente diante de si e o torna responsável.

O sexto argumento afirma que a psicanálise realiza uma crítica à ideologia da liberação contemporânea. Recalcati diz que o inconsciente freudiano exige a experiência do limite, isto é, da castração. Não existe sujeito que não seja castrado, pois é a castração que o coloca no campo da linguagem. Para alguém se constituir como sujeito, é necessário haver a experiência do limite. O inconsciente contrasta com a ideologia da liberação contemporânea, que não aceita o não como parte da vida. O imperativo contemporâneo do dever gozar estimula a queda da experiência do limite, levando o sujeito a um gozo cego, que destrói a vida e impede todo tipo de atividade sublimatória.

O sétimo argumento diz que, para a psicanálise, o inconsciente é algo que indica não apenas o passado, mas também o futuro. Mais que um simples voltar-se para trás, o ato de lembrar é uma construção do sujeito, o qual refaz seu passado a partir da memória. Segundo Recalcati, a própria noção de transferência aponta nessa direção, uma vez que nela o processo de rememoração remete à força criativa para formar um laço com o analista. Dessa forma, o analista se assemelha não a um arqueólogo, que procura verdades escondidas, mas a um químico, que busca compor algo novo com os diversos elementos de que dispõe, ou seja, com o que lhe é dado pelo paciente. Nesse sentido, para o autor, a análise produz o inconsciente.

O oitavo argumento é o de que a cura proposta pela psicanálise é diferente da cura de outras terapias. Para a psicanálise, a cura vem pela palavra, numa relação de transferência entre analista e paciente. Na época das terapias breves e orientadas para o bem-estar social, a psicanálise aparece como uma terapia fortemente crítica, um tratamento que visa não resolver um problema pontual do sujeito ou fazê-lo adaptar-se a um quadro paradigmático de normalidade, mas levar o sujeito a reconciliar-se com seu desejo inconsciente.

O nono argumento declara que o sintoma aparece como defesa da particularidade, ou seja, como uma expressão da verdade do sujeito. De acordo com o autor, o sintoma tem sempre um caráter particular e não pode ser reduzido a uma simples anomalia patológica. Recalcati tece uma dura crítica às terapias cognitivo-comportamentais (TCCS): diz que elas trabalham com uma noção que reforça o eu, fazendo com que o inconsciente seja excluído do processo. Para o autor, em sua maioria, as TCCS buscam a adaptação do sujeito ao meio em que vive; mostram que o mal que o paciente sofre é apenas um erro na maneira como conduz seu pensamento; dessa forma, se ele reconduzir seu pensamento à direção correta, o sintoma desaparecerá e a cura virá.

A psicanálise, por sua vez, não vê o sintoma desse modo, mas como um elemento que revela algo do inconsciente do sujeito, algo que deve vir à tona no processo de análise - afinal, o pressuposto antropológico da psicanálise é bastante diferente do pressuposto adotado pelas TCCS.

O décimo argumento afirma a existência da pulsão de morte, ressaltando que o sintoma é uma formação de gozo e que a vida, ao contrário do tratamento dado pelas TCCS, não visaria o próprio bem. A noção de pulsão de morte é um tema muito caro ao autor, e ele procura desenvolvê-lo no livro Luomo senza inconscio [O homem sem inconsciente] (2010), em que diz que nossa época se caracterizaria por um abandono do inconsciente simbólico e uma exaltação do inconsciente enquanto id ou pura pulsão de morte.

O inconsciente como lugar do desejo recalcado é o que foi elogiado por Recalcati nos argumentos anteriores; este outro inconsciente, como pulsão de morte, aparece como a grande novidade do pensamento freudiano. Com a noção de pulsão de morte, Freud isola um traço fundamental da natureza humana: o fato de que o ser humano não deseja o próprio bem; deseja antes gozar, mesmo que esse gozo conduza a algo para além do seu bem. É como que um impulso ao excesso, ao perigo, a ponto de querer gozar de qualquer forma, ainda que isso lhe custe a vida. É uma tendência a buscar o próprio mal, procurar o que pode conduzi-lo à destruição. O sujeito do inconsciente se revela aqui não como desejo, mas como vontade de gozo, para além do bem e do prazer. O sujeito se encontra contra si mesmo, contra a própria vida. Para Freud, a guerra ilustraria algo dessa pulsão de morte, algo que não se deixa governar pelo programa da civilização.

A pulsão de morte, segundo Freud, não só se caracteriza pela tendência à repetição como se liga de forma direta ao narcisismo. Uma vez que a pulsão de morte se desenvolve a partir da pulsão de autoconservação, ou pulsão do eu, surge a questão sobre o que une a autoconservação à autodestruição. “O extremo narcisismo, a defesa extrema da própria identidade, conduz à destruição da vida”, diz Recalcati (p. 111). Desse modo, a doença não é fruto de um enfraquecimento da identidade do sujeito, mas de um reforço extremo dela.

O décimo primeiro argumento é um desdobramento do décimo e afirma que o centro de preocupação da psicanálise é não a retórica do bem-estar, mas o “pior” do sujeito. Com isso, ela se mostra uma dura crítica da sociedade atual. A psicanálise é uma clínica do pior (o pior do gozo), e não do bem-estar. Essa constatação leva o autor a postular duas vias principais para a clínica contemporânea.

A primeira é a via traumática do excesso, que se funda no quadro moderado pelo princípio do prazer e conduz o sujeito à própria destruição, como na toxicomania e na bulimia. A segunda é a via subtrativa, que se constitui por um retirar-se da vida, numa espécie de narcotização progressiva, como no caso da depressão e da anorexia grave. Segundo Recalcati, “adição e subtração, excesso e narcotização, indicam os dois polos de uma economia do gozo que define efetivamente o sujeito contemporâneo” (p. 118).

De acordo com o autor, o grande desafio para a psicanálise em nossa época é como tratar a pulsão de morte a fim de que ela permita ao sujeito inventar e criar, ou seja, como alcançar uma nova aliança entre a pulsão de morte e o desejo de forma que o impulso a um gozo mortífero diminua, sendo canalizado para uma realização positiva.

O décimo segundo e último argumento de Recalcati a favor da psicanálise diz que ela contribui muito para o discurso pedagógico-educativo, uma vez que estimula o sujeito a se conhecer perenemente, mesmo que o conhecimento completo de si nunca seja possível. A ignorância do sujeito diante de si mesmo é o grande motor da psicanálise, a qual convida o sujeito a produzir um novo saber acerca de si. Por isso, para o autor, a formação analítica está sempre sendo feita.

 

 

Correspondência:
Fabiano Veliq
Rua Alcobaça, 132, bloco 2, ap. 302
31255-210 Belo Horizonte, MG
veliqs@gmail.com

 

 

1 Elogio do inconsciente: doze argumentos em defesa da psicanálise.

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