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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.3 São Paulo jul./set. 2019

 

DIÁLOGO

 

Prelúdio de uma ética do feminino1

 

Prelude to an ethics of the feminine

 

Preludio de una ética de lo femenino

 

Prélude d'une éthique du féminin

 

 

Julia Kristeva

Membro da Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP). Professora emérita da Universidade de Paris 7 - Denis Diderot

Correspondência

 

 


RESUMO

Neste texto, a autora reconhece, na atualidade, uma mutação antropológica que faz das mulheres uma força emergente, e procura responder se a psicanálise pode e deve se fazer ouvir nessa nova fase do mal-estar na civilização. Considerando que o feminino tem sido rejeitado na esfera de interesse da ética, a autora observa que a psicanálise rompe com essa exclusão. A partir da ideia de Simone de Beauvoir de que "não se nasce mulher, torna-se mulher", e por meio da escuta clínica, são apresentadas algumas etapas do porvir do feminino.

Palavras-chave: feminino, ética, identidade psicossexual, feminino transformativo, heterossexualidade


ABSTRACT

In this article the author acknowledges, at present times, an anthropological mutation that makes women an emerging force. She aims at answering if psychoanalysis can and must be heard in this phase of civilization, when much social unrest is present. Considering the feminine has been rejected under the ethics perspective, the author acknowledges that psychoanalysis breaks this exclusion. From Simone de Beauvoir's concept that "one is not born, but rather becomes, a woman", and through clinical listening, the author presents some phases on the future of the feminine.

Keywords: feminine, ethics, psychosexual identity, transformative feminine, heterosexuality


RESUMEN

En este texto, la autora reconoce, en la actualidad, una mutación antropológica que hace de las mujeres una fuerza emergente, y busca responder si el psicoanálisis puede y debe hacerse escuchar en esta nueva fase de malestar de la civilización. Considerando que lo femenino ha sido rechazado en la esfera de interés de la ética, la autora reconoce que el psicoanálisis rompe con esa exclusión. A partir dela idea de Simone de Beauvoir de que "no se nace mujer: se convierte en mujer", y, mediante la escucha clínica, la autora presenta algunas etapas del porvenir de lo femenino.

Palabras clave: femenino, ética, identidad psicosexual, femenino transformativo, heterosexualidad


RÉSUMÉ

Dans ce texte l'auteure reconnaît, dans l'actualité, une mutation anthropologique qui rend les femmes une force émergente, et cherche à répondre si la psychanalyse peut et doit se faire entendre dans cette nouvelle phase du malaise de la civilisation. Tout en considérant que le féminin est constamment rejeté dans le cadre de l'intérêt de l'éthique, l'auteure reconnaît que la psychanalyse rompt avec cette exclusion. En s'appuyant sur Simone de Beauvoir qui affirme : "on ne naît pas femme, on le devient", et sur l'écoute clinique, l'auteure présente quelques étapes de l'avenir du féminin.

Mots-clés: féminin, éthique, identité psychosociale, féminin transformateur, hétérosexualité


 

 

Esta mulher sobre a qual exclamam:

"Ela é feita de aço!" é simplesmente feita "de mulher".

Colette, A vagabunda

 

Introdução

Qual ética?

Na mutação antropológica acelerada deste início do terceiro milênio, as mulheres são uma força emergente, em sintonia com as profundas transformações de valores e identidades, e ao mesmo tempo uma alteridade irredutível, objeto de desejo, medo e inveja, de opressão e exploração, de abuso e exclusão.

A psicanálise pode se fazer ouvir (questão epistemológica), deve se fazer ouvir (questão ética) nesta nova fase do mal-estar (Unbehagen, discontents) na civilização?

Foi necessário que uma mulher viesse a ser presidente da Associação Psicanalítica Internacional (IPA) para aproveitar este momento histórico e assumir o risco de propor como tema de um congresso O feminino.

Eu disse risco porque o feminino, tal qual um bóson do inconsciente (da mesma maneira que existe um bóson de Higgs na física de partículas), é um elemento constitutivo, tão radical quanto inapreensível, de nossas identidades psicossexuais. Já não sendo mais um enigma (Freud), esse vetor, que liga o soma e a psique, não deixa de ser um "transbordamento" de actings existenciais e sociais, conforme demonstra a impressionante polifonia do programa deste congresso.

Agradecendo pela honra que me foi dada, arrisco-me a afirmar que não se pode neutralizar o feminino, mesmo que seja apenas para fazer justiça às mulheres que lutam por seus direitos e àquelas que vêm buscar uma (sobre) vivência em nossos divãs.

A disjunção entre instintual e sexual

Nos 2 mil e 500 anos de existência da ética, o feminino tem sido rejeitado de sua esfera. Não é um sujeito; é no máximo um objeto (e olhe lá!).

A psicanálise rompeu com essa exclusão do feminino por uma espécie de ética que põe entre parênteses (isto é, suspende) o juízo, a moral e o mundo para melhor questioná-los, tomando uma direção - "Onde era isso, seja eu" ["Wo es War, soll Ich werden"] (Freud, 1933[1932]/1995b) - e dois princípios opostos - o princípio de prazer e o princípio de realidade.

Situada nessa suspensão, a transferência revela, no inconsciente, um sexual pulsional que, longe de evacuar o orgânico (a biologia e a anatomia), é desnaturalizado por ter sido disjunto do instintual orgânico pelo recalque originário. Essa disjunção originária constitui o ser falante como sujeito clivado, uma cisão (Spaltung) à qual o analista dedica sua escuta, e é essa clivagem que irrompe na moral normativa.

A fecundidade e o erotismo femininos parecem manifestar e trair essa disjunção, tornando-se assim alvo do desejo e da inveja. Devem ser possuídos, controlados, destruídos (também!), em benefício de uma dominação masculina constatada em todas as sociedades. O complexo de castração só adquire seu pleno sentido se for compreendido, para ambos os sexos, como um deslocamento traumático do "trauma" (Freud, 1940[1938]/2010) da diferença dos sexos, que ressoa profundamente com a cisão-clivagem originária.

Duas fábulas da hominização

Duas fábulas sobre os primórdios da hominização ilustram a violência que marca a descoberta da diferença sexual e continua a apavorar e a encantar a heterossexualidade.

Para Claude Lévi-Strauss, a revolução psíquica da matéria (Freud, 1911/1998) ou a sexualidade desnaturalizada, que desloca o instinto animal para a pulsão, agora definitivamente dupla, heterogênea (energia-e-sentido), graças à linguagem, seria originariamente... feminina. Cito-o: "Únicas fêmeas entre os mamíferos a praticar o ato sexual sem estar no cio", as mulheres "puderam sinalizar seus humores com palavras" (2013, pp. 214-215) (!).2

Os primeiros humanos decoravam as sepulturas (há 350 mil anos), e a arte rupestre nos dá uma representação zoomórfica das pulsões: uma vulva gigante com uma cabeça de bisão, que parece puxar a corrida dos animais (há 37 mil anos). Capazes de retransmitir a libido presa à sua finitude através da linguagem e da arte, os dois sexos entram na cultura e na morte como sujeitos divididos. A heterossexualidade age e exibe a cisão do ser na existência humana, independentemente das proezas da reprodução artificial e da desculpabilização da homossexualidade.

Ainda nos resta explicar como a psicossexualidade feminina, modulada pelas grandes mudanças sociopolíticas da condição feminina, consegue transformar essa cisão inaugural e constitutiva, e como acaba em sintomas na comédia heterossexual (Lacan, 1966).

Mudança de cursor

Quando eclode o mal-estar, Freud atribui à psicanálise, mediante dois ensaios sobre o feminino (1931/1995a, 1933[1932]/1995c), uma nova tarefa, que consistiría, no plano epistemológico, em encontrar a conexão da teoria da bis-sexualidade com a teoria das pulsões - tarefa para a qual este congresso convida - e, no plano ético, em testemunhar contra a abstenção da vida sexual (que não é a pornografia). Freud espera - seria uma aposta? - que Eros faça "um esforço para se afirmar na eterna luta contra seu adversário" (1930/1994, pp. 333).

As "duas fases" do Édipo feminino, segundo Freud, com mudança de objeto e sempre inacabado - prefiro infinito -, mostram que o feminino é um fator da transformabilidade da vida psíquica, considerada não como um aparelho, mas como uma vida anímica ou vida da alma (Coblence, 2010).

Prefigurando alguns aspectos das teorias dos gêneros, há uma bisse-xualidade psíquica polifónica, que é mais acentuada na mulher, mas que se desdobra em cada sexo, de modo que pelo menos quatro participam do "jogo", para se modular, por fim, no singular. Angustiante e jubilosa é a liberdade arriscada dessa escolha, dessa ética cujas "normas", até mesmo as próprias "identidades" (homem/mulher), tornaram-se conceitos dinâmicos, para o melhor e para o pior.

Resta a pergunta enigmática que Freud faz a Marie Bonaparte: "O que quer a mulher?" ("Was will das Weib?"). Ele não se interroga sobre o desejo (Wunsch), mas sobre o querer (Wollen), pilar da escolha numa vida ética. O incompreensível ("O que quer...?") diz respeito à relação do feminino com os ideais da vida e com a vida ela mesma, inseparável dos ideais culturais.

Será que Freud buscava uma reestruturação da ética pelo feminino? A bio-política da modernidade exige de nós, mais do que nunca, esse questionamento.

Tentarei convencê-los - mas, como são psicanalistas, vocês já devem estar convencidos - de que o feminino trazido pela descoberta freudiana do inconsciente é um fator, se não o fator, dessa inquietante abertura, devido à sua própria transformabilidade: o feminino é transformativo. Nem inata nem adquirida, mas incansavelmente conquistada desde as duas fases do Édipo inacabado, a vivacidade do feminino se diversifica ou sucumbe nas provas da impiedosa realidade sócio-histórica.

Antes de prosseguir, uma confissão. Como vocês, ouço o feminino da mulher (não tratarei do feminino do homem) ao escutar meus pacientes, ao ler o que vocês escrevem, ao dialogar com vocês. E com frequência - como vocês? - estou farta de seus mistérios disruptivos, de suas maquiagens de todo tipo! Em que proporção o feminino está em mim? Em vocês? Ninguém sabe, mas o feminino que eu encarno, à minha maneira, não é um artefato ideológico. Eu participo de seu advento, sempre já por vir. Simone de Beauvoir escreve: "Não se nasce mulher, torna-se mulher". Eu diria: nasce-se (biológico) mulher, mas eu (consciente-inconsciente psicossexual) me torno (ou não) feminino.

Proponho compartilhar com vocês algumas etapas desse porvir às quais me conduziu minha experiência clínica com o feminino, por conta dos numerosos trabalhos que me guiaram e que não poderia citar.

 

O feminino transformativo

O Édipo biface

O feminino transformativo constrói-se no Édipo biface - Édipo primo [prime] e Édipo bis - e na religância3 [reliance] materna.

Chamo de Édipo primo o período arcaico que vai do nascimento à fase dita fálica, situada entre 3 e 6 anos de idade. Bem distante do idílico minoico-micênico (Freud) e da serenidade do ser antes do fazer (Winnicott), a identificação projetiva (Melanie Klein) é favorecida pela semelhança entre filha e mãe e pela projeção do narcisismo e da depressividade materna sobre a filha.

Estabelece-se uma subjetividade interativa pela elaboração precoce de um vínculo de identificação-introjeção/projeção com o objeto amante-e-intrusivo que é a mãe, na medida em que ela incorpora o feminino e transmite o desejo do pai.

Psiquização do vínculo

Pela introjeção, a cavidade excitada do corpo interno se transforma em representância (ou representabilidade) interna do externo. Essa psiquização da alteridade é logo dificultada pela identificação com a mãe e pela reatividade da menina como agente, ela também, da sedução-efração-frustração. A dependência arcaica prepara o status de objeto erótico feminino, ao qual a mulher solicitará que a compreenda como se fosse... uma mãe imaginária - a demanda feminina que busca a "autenticidade" é habitada pela miragem persistente do Édipo primo. Mas o conflito primário logo percebe ali a "ilusão" desse apego primário, despertando a vigilância que detecta a "impostura"4 nos vínculos.

Além dos dois obstáculos que são o narcisismo e o masoquismo apassi-vador, a semelhança projetiva do Édipo primo estrutura então o psiquismo da menina como uma mesmidade alterada, como uma alteridade integrada. O si fora de si, o fora-de-si em si.5

Essa psicossexualidade de interdependência é codificada no fluxo sensorial, gestos, imagens e ecolalias, que eu chamo de receptáculo (chora) semiótico: investimento de vocalizações pré-linguísticas (intensidade, frequência e ritmo), que já possuem sentido sem possuir significação, uma vez que esta se elabora com a aquisição das regras simbólicas (da fonética e da gramática).6

A copresença dos "mesmos" (mãe e filha), minucioso ajuste sensorial de suas harmonias-desarmonias, atravessa o cuidado utilitário e se esgota no império feminino dos sentidos, que é a beleza.7 Argumento que, ao mesmo tempo que aparece no olhar materno para o recém-nascido dos dois sexos, e antes de se mobilizar para enfrentar a castração ou a falta, a beleza magnetiza a mesmidade diferenciada menina-mãe, as excitações e a ternura de todos os seus sentidos semióticos atribuídos.

Essa beleza não deixa de coabitar logo com o desejo de expulsar a expulsão. Os primeiros gestos pré-simbólicos ganham um tom de rejeição: atração e repulsão, fascínio e repulsa, nem "sujeito" nem "objeto", a abjeção é mais violenta entre a menina e a mãe do que entre a mãe e o menino idealizado. A isso se somará o ódio da adolescente pela mulher castrada, objeto do pênis paterno. Um ódio sem o remorso de Orestes. Diferentemente do parricídio, o matricídio praticado pela menina permanecerá como um complexo inconsciente nebuloso, um ruído de fundo contínuo, que a acompanhará em seus intermináveis acertos de contas com a mãe e suas representantes. Impensado, impensável, o matricídio a despoja de si mesma.

O feminino, refém potencial do materno pré-objetal, da Coisa (Lacan, 1986); o feminino, primeira elaboração das fobias do infans, sem a qual o adolescente fóbico e suicida, tornando-se incapaz de suportar a si mesmo, tentará se refugiar na anorexia e fora do sexo, mudando até mesmo de sexo; o feminino, reservado e recalcado pelo acesso ulterior ao fálico.

Não seria precisamente essa posição feminina alterada, tão absoluta quanto recusada, delineando-se já no Édipo primo, que subjaz ao fato de que o feminino seja o mais inacessível, segundo Freud, para ambos os sexos? Inacessível por medo da apassivação, da regressão narcísica e masoquista, da perda de referências visíveis da identidade por um engolfamento sensorial que pode dispersar o sujeito num autismo endógeno, até mesmo patológico.

Continente mal recalcado, ou seja, mantido, o feminino alterado do Édipo primo é mascarado pela feminilidade reativa e seus desfiles de embelezamento ou de reparação narcísica, com os quais o falicismo posterior da mulher reage ao complexo de castração. E é durante a fase fálica - entre 3 e 5 anos de idade, em que o sujeito é introduzido na triangulação edípica - que a mulher passa por mutações psíquicas pelas quais a escolha da identidade sexual se fará definitivamente, ou não.

Estranha ao falo

Dois momentos marcam essa instalação no Édipo bis. O estágio fálico se torna o organizador central da copresença sexualidade-pensamento em ambos os sexos; é um kairós fálico, no sentido grego de "encontro" mítico e/ou "corte" de destino. Estabelece-se uma equivalência entre, de um lado, o prazer do órgão fálico, visível e valorizado na sociedade androcêntrica, e, de outro lado, o acesso à linguagem, à função da fala e do pensamento.

A entrada no Édipo bis (o pai substitui então a mãe como alvo do desejo) acompanha um momento decisivo na construção da subjetividade feminina: o investimento (Besetzung, catexia) do que Freud (1923/1991a) chama de o pai da pré-história individual. Antes de "se tornar certa", a diferenciação sexual é apenas uma questão de identificação direta e imediata (Einfühlung) com o pai, que ainda não é "objeto", mas já uma instância terceira e identificatória que, reunindo as características de ambos os pais, leva à formação do ideal do eu. Insisto na bissexualidade (pai e mãe) que intervém na terceiridade originária. Considero que a parte "mãe" desse "pai imaginário" só pode favorecer a transição do Édipo primo feminino para o Édipo bis, sustentando assim essa bissexualidade sobre a qual Freud afirma que "se manifesta muito mais claramente na mulher que no homem" (1931/1995a, p. 12).

Figura terceira, separadora e reguladora da díade sensorial mãe-criança, o pai terá de se colocar para sempre como pai simbólico, instância do interdito e da lei, razão, poder e códigos morais. O pênis se torna assim, para os sexos falantes, o falo, significante da privação, da falta e, pelo mesmo motivo, do desejo - desejo de copular, significar, sublimar, criar.

O menino entra no Édipo sob o regime do assassinato do pai e da castração, e os "resolve" pelo supereu. A menina entra no Édipo bis favorecida pelo feminino do pai da pré-história, que, ao contrário, angustia o menino ao remetê-lo à castração e à passividade. Ela idealiza essa terceiridade bivalente paterna e seus valores; mas, magnetizada pela mesmidade-intimidade materna do Édipo primo, adere à ordem fálica como estranha ao falo, percebendo a sen-sorialidade e a excitabilidade do clitóris como menos visíveis e menos notáveis, mesmo - e sobretudo - se tentar defender-se disso erigindo-se numa postura fálica. Comunicadora incansável, ativista inflexível, ela preenche as telas com causas inevitavelmente paternas, que o poder midiático-político utiliza sempre na ânsia de resgatar latências espetaculares de suas palavras de luta.

A não ser que ela purifique seu Édipo primo pela revolta e pela insubmissão, pela eterna ironia da comunidade (Hegel), pela curiosidade insaciável de uma pesquisadora.

Adaptabilidade e cicatriz

A extraordinária adaptabilidade social feminina oculta - cicatriz obstinada - essa dissociação constitutiva que se expressa como estranha à ordem fálica. De um lado, um intenso investimento da alteridade que serve de apoio, um movimento psicossexual que se revela na necessidade de crer: no envelope materno, no pai imaginário. De outro lado, essa crença - desmentida pelo sexismo e ensejada pelo Édipo primo - e também toda identidade são vivenciadas no registro do ilusório: é um jogo, "Faço parte dele, mas faço de conta". Iludido, o feminino é igualmente desiludido, desapontado - um desapontamento radical, mais intratável que a melancolia, não porque confronta o nonsense do ser, mas a absence8 [ausência] de ser. Quando ele/ela descarta o suicídio, o feminino assume essa ab-sence de ser e revive com ela. Zona temível, em que a força (de viver) convive com a indiferença.

O feminino reprimido, maltratado, entrincheirado em sua estranheza e ausência deixa-se consolar e instrumentalizar pelas religiosidades sectárias ou fundamentalistas; devotas e místicas existem em grande número, mas o feminino desiludido também faz as ateias mais aguerridas.

O aparente realismo feminino apoia-se neste ilusório: as mulheres não param de fazer, e fazer de tudo, por não acreditarem nele totalmente; acreditam que é uma ilusão... a ser refeita.

No entanto, o amódio9 [hainemoration] feminino pelo falo não se extingue. O feminino sabe combater tanto a dominação materna do Édipo primo quanto o pai do supereu no Édipo bis. Mas a interiorização feminina de toda essa panóplia psicossexual - que acabo de traçar simplificadamente -, na preservação da intimidade que foge de si mesma, também facilita o contato in-trapsíquico do feminino com a pulsão de morte. Antes de e sem se externalizar no sadismo, o masoquismo originário é apenas uma versão melancólica dessa destrutividade que esculpe o humano e modela "naturalmente", por assim dizer, o humano feminino (pensem na cena do pequeno Sigmund, em que sua mãe modela os Knodels). Freud afirma que o "princípio de prazer [está] simplesmente a serviço da pulsão de morte" (1920/1996, p. 337). No entanto, para uma mulher, Sabina Spielrein, que teorizou a pulsão de morte em 1912, antes de Freud, é o contrário: a necessidade de destruição é inerente ao instinto sexual, mas a destrutividade não é senão a condição de todo devir.

Além disso, com o amódio pelo falo, uma segunda postura psíquica, iniciada no Édipo primo, só se realiza durante o Édipo bis: na condição de ser falante, o feminino acessa a ordem simbólica social como sujeito estranho ao fálico; mas, na condição de feminino, esse sujeito deseja ter um filho do pai a partir do lugar da mãe.

Assim, do Édipo primo ao Édipo bis, o feminino transformativo é um multiverso (empresto esse termo da astrofísica contemporânea) que o encontro amoroso desperta e reconstrói. A não ser que essa estrutura laminada seja condensada em anorexia ou frigidez, uma cascata de sensorialidades, traços mnésicos, fantasias e ideais copresentes leva o prazer de órgãos ao gozo feminino. "Toda a minha pele tem alma", escreveu Colette (1907, p. 144). Acrescento: toda a minha carne tem alma. Completude destotalizada e eclipse de si: vitalidade absoluta e mortalidades cruzadas de ambos os parceiros.

Religância

A experiência materna que denomino religância é outro componente do feminino transformativo. É um erotismo no sentido em que a psicanálise entende Eros como "reunindo a substância viva, dispersa em partículas, em unidades cada vez mais extensas, mantendo-a naturalmente nesse estado" (Freud, 1923/1991a, p. 283).10

Originariamente experiência biopsíquica, a religância - da mulher e do homem - pode ser recusada ou transposta para profissões relacionadas à educação e à saúde ou para diversos engajamentos sociais. Mas inverte-se em mère-version11 [mãe-versão] (Barande, 1987) quando a libido da amante desvia para a criança as pulsões insatisfeitas.

Antes de se tornar um "continente", do qual se liberará a criação dos vínculos psíquicos (Brusset, 2005), o erotismo materno é um estado: um estado de urgência da vida,12 uma qualidade de energia já sempre psicossomática, dada e recebida para manter a medida necessária à conservação da vida.

Contudo, enquanto a libido da amante é dominada pela satisfação das pulsões, o erotismo materno transforma a pressão libidinal em ternura; para além da abjeção e da separação, a ternura é o afeto elementar da religância.

O erotismo materno nos parece um investimento da "dupla inversão" da pulsão em todos os níveis do aparelho psíquico, constituindo, portanto, uma condição essencial para a mutabilidade do aparelho psíquico da mãe e da criança.

Dois fatores internos à intersubjetividade materna favorecem esse metabolismo da paixão destrutiva em desapaixonamento religante: o Édipo biface da mulher, revivido e remanejado no novo casal parental, e a relação materna com a linguagem.

Sobre esses dois pilares, constrói-se um verdadeiro ciclo sublimatório (Baldacci, 2004) na aquisição da linguagem pela criança. Para aqueles que afirmam que o feminino não tem humor, lembramos a economia desse ciclo sublimatório, que é literalmente a que Freud observa na emissão e na recepção do chiste: surpreso e capturado pela armadilha, o interlocutor é convidado a recriar a história; a criança, também.

Portanto, religância. Depois da ênfase na separação e na transicionalidade, com Winnicott, e na loucura materna, com André Green, parece-me importante insistir hoje nessa vertente materna que mantém o investimento e o contrainvestimento da ligação e do desligamento nas relações psicossomáticas, a fim de que permaneçam abertos, para serem identificados e recriados. Esse erotismo específico, que mantém a urgência da vida até os limites da vida, eu o chamo de religância.

Segue-se um tempo espiral e em rebotes: o tempo materno como começo e recomeço.

Herege do amor

As mulheres querem ser livres para decidir ser ou não ser mãe. Algumas recorrem facilmente à maternidade assistida, sem preconceitos. Seria talvez porque a vertente pré-subjetiva do erotismo feminino as familiarizou com esse despojamento de si que a ciência moderna impõe ao mais íntimo? Ao mesmo tempo, o feminino transformativo não se liberta dos dogmas nem das normas, mas os modula em conceitos dinâmicos. E alcança essa ética em suspenso que caracteriza... a própria psicanálise.

Cabe à psicanálise continuar criando novos conceitos de metapsicologia para desenvolver - à escuta da sexualidade da amante - a elucidação e o acompanhamento do erotismo materno em sua especificidade. Caso contrário, a emancipação do sujeito mulher está fadada a ser apenas uma engrenagem sem ética na automação da espécie humana. Se o amor é, segundo Spinoza, a face íntima da ética, o feminino não é uma ideologia nem uma moral, mas aparece como uma "herege" do amor.

Os limiares dessa transformabilidade são obstáculos nos quais o destino feminino tropeça ou fracassa, por um lado, no sofrimento ou no sintoma patológico e, por outro, na cumplicidade com o conformismo social ou o totalitarismo. Mas quando consegue driblá-los - associando-se com o masculino de um companheiro, apoiando-se na cumplicidade de uma companheira ou numa comunidade, atravessando a solidão e os conflitos, com o auxílio da psicanálise, por exemplo - o feminino reflete uma maturidade que parece faltar ao "bebê macho", abrigado à sombra do poder e da sedução masculina. Antes que o feminino do homem restaure a transformabilidade.

 

Singularidades e metamorfoses da parentalidade

Assim entendido, proponho pensar que o feminino - "estrutura aberta" e destotalizada - participa da superação e da legitimação em curso das identidades de sexo e de gênero, do futuro singular e compartilhável destas. O terceiro milênio será o das chances individuais, isto é, singulares. Ou não,13 se ele se deixar engolfar em semelhanças e likes banalizados pela automação transumanista que está instalando a dominação binária "dos que o têm" sobre "os que não o têm".

O "trauma" da diferença dos sexos, que Freud especula até o Esboço (1940[1938]/2010), encobre-se se não "desaparece" na multiplicação dos gêneros que reivindicam lutas subversivas apaixonadas. No entanto, o alcance libertador do gênero desestabiliza o próprio "sexo psíquico" e revela as zonas traumáticas da subjetividade, em que se rompe esse vínculo primordial com a vida que é a sexuação. Sem sucumbir à clivagem, mas beirando-a, a angústia da castração e do vazio bem como a exibição fálica podem gerar sintomas que, longe de erotizar (J. Butler) o feminino, o "desintegram" e o levam ao recuo do outro e dos vínculos, quando não o condenam à violenta vertigem do ser, que intima a "mudar de corpo" pela manipulação hormonal ou até mesmo genética. O analista (homem ou mulher) é levado então a recriar - em sua escuta - o feminino (no sentido da transformabilidade e da religância) para acompanhar os sintomas desses "seres de outra maneira" em direção à criatividade.

Entre esses sintomas, eu poderia mencionar: a fadiga incurável, a tensão extenuante, a incapacidade de se escolher, oprimida entre posturas e objetos de desejo masculinos e femininos; o ciúme implacável pela "outra mulher", sinal da recusa em aceitar sua feminilidade de sexo ou de gênero, que passa do ódio à ternura na transferência com uma analista mulher; a compulsão desenfreada a fazer para não ser, a anular-se pelo fazer, que se lança numa narração alucinada, solapando o feminino do homem analista; ou ainda a radicalização fundamentalista de uma adolescente que se diz feminista por "odiar os homens", mas está disposta a "fazer filhos por Alá"...

Essas observações me levam a um assunto tão normativo quanto sensível: a heterossexualidade.

A heterossexualidade é o problema

A heterossexualidade (no sentido da psiquização da genitalidade e da diferença sexual, incluindo a bissexualidade psíquica, e no sentido de sua inserção no pacto social) é uma aquisição frágil e tardia na história das culturas humanas, sendo ainda hoje a problemática por excelência para todos nós, tanto na parentalidade quanto no próprio laço social.

Hoje, a heterossexualidade deixa de ser percebida como a maneira mais segura e única de transmitir a vida e garantir a memória das gerações. No entanto, sejam quais forem as variantes da "norma heterossexual" na psicossexualidade de cada um e as aceitações ou rejeições em relação aos casais compostos de formas diversas, a miragem da "cena primitiva", como fantasia original que estrutura o inconsciente, relaciona inevitavelmente a diversidade dos erotismos com o ápice da procriação, como explica Bataille (2011). A heterossexualidade contém tanto a intensidade extrema quanto a fragilidade insustentável que habitam a fúria da cena primitiva: fusão e confusão do homem e da mulher, perda exuberante de energias e identidades, afinidade da vida com a morte. A heterossexualidade, portanto, não é apenas uma descontinuidade - "Sou outro(a), sozinho(a) diante do outro" - normatizada pela continuidade (fusão para "dar" a vida). A heterossexualidade é uma transgressão das identidades e dos códigos que não provém do pavor, mas da angústia e do desejo por morte, movidos pela promessa de vida através da morte. Contudo, no auge do dispêndio, o prazer recompensa a castração, a angústia de morte eleva-se ao gozo e a anula, tomando forma na provável concepção de um novo ser, estrangeiro e efêmero.14 Esse é o sentido da cena primitiva, e de todos os erotismos que têm nela seu umbílico, até a doença de amor que assombra nossos imaginários.

Fragilidade do casal heterossexual, porque a emancipação das mulheres acentua o feminino singular das mães e das amantes e perturba os homens que sentem com elas um "perigo de homossexualidade" (Colette) - feminina ou masculina? A não ser que seja uma esperança.

Procuramos em vão onde estão os "valores humanistas". E se o casal heterossexual e sua família fossem o ponto visado, precisamente no lugar do "valor" (que se delineia como uma preocupação de superar a solidão, de estender-se e transmitir)? A biotecnologia reprodutiva e o casamento para todos não modificam nada: nossas fantasias convergem inconscientemente para esse legado arcaico da parentalidade.

O casal heterossexual, casado, continua a fascinar. Não só o casamento como instituição o normatiza, mas também o cinema, de Hollywood a Bollywood, o impõe como modelo a ponto de causar repulsa. O casal: enigmático, escandaloso, detestável e, por isso mesmo, desejável. A heterossexualidade é e será o problema. Assim, a partir de e com o feminino transformativo singular, infinitas são e serão as metamorfoses da parentalidade que a psicanálise se prepara para acompanhar.

Senhora presidente, as mulheres não são donas do feminino transformativo sempre em devir, que participa, com o masculino, da psicossexualida-de dos viventes que falam e imaginam. Desde o último Freud e nas mutações sócio-históricas de hoje, o feminino parece estar no cerne da experiência psicanalítica. A psicanálise seria uma das possíveis sublimações (quem sabe a última) desse feminino?

Para o exercício de sua clínica, "the psychoanalytic listening" [a escuta psicanalítica] se mantém à espreita da "presence of change in certain dimension of psychic functioning" [presença de mudança em certa dimensão do funcionamento psíquico] - do sensorial ao linguístico (do "semiótico" ao "simbólico") - e é capaz de induzir o paciente "to collaborate with the task of transforming [these] elements" [a colaborar com a tarefa de transformar (estes) elementos]. E você adverte: apenas "an improvement on the attachment to the analyst and her capacity to receive and contain his anxieties made this transformation possible" [uma melhora no vínculo com o analista e sua capacidade de receber e conter as ansiedades tornam possível essa transformação] (Ungar, 2014).

Como presidente da IPA , sua plasticidade é e será muito solicitada, sempre discreta e eficaz! "Renascer nunca esteve além de minhas forças", escreveu Colette (1991, p. 349), um desses gênios femininos "transformadores" cuja leitura nos revigora. Que este lema a acompanhe.

Boa sorte!

 

Referências

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Correspondência:
Julia Kristeva
76 Rue D'Assas
75006 Paris, France
julia.kristeva@univ-paris-diderot.fr

Recebido em 5/9/2019
Aceito em 19/9/2019

 

 

1 Trabalho apresentado no li Congresso Internacional de Psicanálise, realizado em Londres (Inglaterra), de 24 a 27 de julho de 2019. Agradecemos a autorização da IPA para publicação do texto.
2 O grito da fêmea não seria mais uma pressão hormonal do ciclo ovariano, mas o "sinal" do investimento psíquico em curso no parceiro masculino.
3 NT: trata-se de um neologismo, assim como no original. Seguimos a tradução proposta em outros artigos da autora publicados no Brasil.
4 Helene Deutsch (1970) foi a primeira a diagnosticar a "personalidade como se", inaugurando assim a clínica dos falsos selfs.
5 Melanie Klein, uma mulher psicanalista, foi quem postulou a existência, desde o início da vida, de um eu capaz de relação de objeto, mesmo que parcial (o seio). E foi uma mulher filósofa, Hannah Arendt, quem criticou o isolamento melancólico de seus colegas homens, defendendo que o eu-sozinho só pertence aos outros.
6 Hanna Segal (1957) identifica as equações psíquicas prévias aos verdadeiros símbolos da posição depressiva.
7 Freud dizia que "infelizmente ... a psicanálise não tem absolutamente nada a dizer sobre a beleza" (1930/1994, p. 270).
8 NT: atente-se ao jogo de palavras pela homofonia entre nonsense e absence.
9 NT: neologismo já consagrado em português, a partir da junção de amor e ódio, para traduzir o neologismo lacaniano haineamoration.
10 Em carta de 1.° de março de 1914 a Rainer Maria Rilke, Lou Andreas-Salomé diz: "Tatear no espaço ... e em nosso próprio corpo com confiança, como uma mão estendida ao outro ... com toda a interioridade da criatura para a qual essa relação ainda não obscureceu em absoluto" (1979, p. 231). Antes de atribuir ao materno justamente essa capacidade de apresentar e superar a "clivagem patológica" para "produzir o tecido" entre a realidade interna e a realidade externa, matéria e símbolo, masculino e feminino, e restituir a degradação que sofre o processo de individuação.
11 NT: observe-se o jogo de palavras com a homofonia possível em perversion (perversão) e père-version (pai-versão).
12 Cf. o Not des Lebens de que falam Heidegger e Lacan.
13 "Os dois sexos morrerão apartados um do outro", diz Alfred de Vigny (citado por Marcel Proust).
14 Essa intimidade entre dois incomensuráveis rompe os vínculos grupais de raça, as divisões nacionais e o sistema de classes sociais, produzindo importantes efeitos como fator de civilização, diz Freud (1921/1991b).

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