SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.53 número3El dolor que atraviesa la palabra en la verdad del abuso sexual y en la alienación parentalExtracción de visión, valor de disfrute y palabras en reflujo índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.3 São Paulo jul./set. 2019

 

PALAVRA E VERDADE

 

A função significativa da palavra: Lacan e Santo Agostinho1

 

 

Luiz Alfredo Garcia-Roza

Formado em filosofia e psicologia, foi professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Autor de oito livros sobre psicanálise e filosofia. Deixou a vida acadêmica para dedicar-se à ficção policial e às investigações do delegado Espinosa, personagem central de quase todas as suas histórias. Seu romance de estreia, O silêncio da chuva, recebeu os prêmios Nestlé de Literatura (1996) e Jabuti (1997), além de ter sido traduzido para vários idiomas

 

 

Na passagem do século IV para o século V, vamos encontrar Santo Agostinho operando uma síntese do pensamento filosófico grego sob as exigências do cristianismo. Após a leitura de Platão, Plotino e Cícero, e uma convivência razoavelmente extensa com os maniqueístas, Agostinho empreende a tentativa de articular a filosofia neoplatônica com a fé cristã, o que em seus começos não era uma empresa excessivamente difícil, dado que o nível de exigência que a Igreja tinha para com seus filósofos era em parte estabelecido por estes próprios.

Fiel à concepção platônica de que o homem é uma alma que se serve de um corpo, mas fiel também à ideia de uma transcendência hierárquica da alma com relação ao corpo, Agostinho vai desenvolver uma interessante teoria segundo a qual o corpo sofre a ação da alma, mas não é capaz de por sua vez agir sobre ela. Resumidamente, a teoria agostiniana do conhecimento sensível pode ser colocada nos seguintes termos: os objetos exteriores exercem uma ação contínua sobre o corpo, e este é impressionado por eles sem que, no entanto, a alma seja afetada. Na relação com o mundo, apenas o corpo é afetado; a alma, hierarquicamente superior ao corpo e aos demais objetos materiais, não é atingida. Ela sabe das modificações que o corpo sofre e, por sua própria atividade, forma uma imagem semelhante ao objeto causador da modificação corporal. A sensação não é, pois, efeito de uma ação que o mundo sensível exerce sobre a alma, mas ação da própria alma em consonância com o corpo. Nesse sentido, não há paixões da alma, mas apenas paixões do corpo. A alma é ação, pelo menos no que diz respeito a sua relação com o mundo sensível (Gilson, 1985).

Paixões do corpo e ação da alma, essa é a curiosa dualidade que Agostinho vai defender e que vai determinar as linhas gerais de sua teoria da linguagem, particularmente na questão da relação entre a palavra e a verdade.

Essa questão é abordada num escrito datado de 389, o De magistro [Do mestre], cuja primeira parte tem por título "Disputatio de locutionis signification" [Diálogo sobre a significação da palavra], a qual, segundo Jacques Lacan, antecipa de um milênio e meio o que "de mais agudo há no pensamento moderno sobre a linguagem" (1979, p. 282).

Trata-se de um diálogo cujos interlocutores são o próprio Agostinho e seu filho Adeodato, e que guarda algumas semelhanças com os diálogos platônicos, mas com a diferença de que os interlocutores não são, verdadeiramente, dramatis personae. O diálogo começa com Agostinho perguntando ao filho: "Que te parece que pretendemos fazer quando falamos?", ao que Adeodato responde: "Pelo que de momento me ocorre, ou ensinar ou aprender" (Agostinho, 1980). E o diálogo prossegue com Agostinho demonstrando que, em última instância, quando falamos não nos propomos a outra coisa que não seja ensinar, visto que, mesmo quando perguntamos, ensinamos ao outro o que queremos saber. O ensino se faz per commemorationem, isto é, por relembrança. Falamos para relembrar, para suscitar recordações, nos outros ou em nós mesmos. Apesar da ligação evidente com a teoria platônica da reminiscência, a teoria agostiniana da linguagem não aceita a concepção platônica da palavra como ícone.

As palavras são signos, e esses signos não nos remetem diretamente às coisas, mas a outros signos, formando um sistema fechado no qual a significação, em vez de se fazer pela articulação signo-coisa, faz-se pela articulação signo-signo. A questão que Agostinho vai levantar é a de como, nesse caso, podemos chegar à verdade. Se as palavras formam um sistema fechado de significações, como estabelecer a verdade?

Em seu comentário ao De magistro, Lacan assinala que Santo Agostinho não coloca a questão em termos de comunicação por sinais, mas em termos de troca inter-humana da palavra, isto é, coloca a questão da intersubjetividade. A análise que Agostinho faz da função significante da palavra não se dá no domínio da linguística nem no domínio da teoria da informação. O domínio no qual se passa sua análise da palavra é o da verdade.

Para Santo Agostinho, a verdade não habita a palavra. Não é a palavra, enquanto realidade exterior, que produz a verdade. Esta, através de nossa interioridade, é que possibilita a palavra. Aqui temos toda a força do platonismo, com sua teoria das ideias transcendentes e com sua teoria da reminiscência, incidindo sobre o pensamento de Santo Agostinho. Mas, ao articular a palavra com a interioridade e com a verdade, Agostinho remete-a também simultaneamente ao registro do erro, do equívoco, da mentira. E é por referência a esse registro que podemos situar a questão do sujeito. É isso que interessa particularmente a Lacan em sua análise.

É porque o outro é capaz de mentir, que sei que estou em presença de um sujeito. Se dois interlocutores fossem impedidos de mentir, de enganar, de ocultar, se fossem obrigados por alguma força superior a dizer "apenas a verdade e nada mais que a verdade", não poderiamos, a rigor, falar de relação intersubjetiva; a subjetividade cederia lugar à objetividade plena. O "Minto, logo sou" ou o "Equivoco-me, logo sou" são antecipações legítimas do "Cogito, ergo sum" de Descartes.

A dialética agostiniana orienta-nos em direção ao mestre interior da verdade. Para Agostinho, a verdade, ou já a possuímos, ou, se não a possuímos, não podemos adquiri-la pelas palavras ou pela experiência do mundo externo. "Com as palavras não aprendemos senão palavras", diz Agostinho a Adeodato, e mesmo isso não é inteiramente correto, pois o que de fato aprendemos são sons, os quais só sei que são palavras porque já conheço previamente seu significado.

Portanto, se compreendemos o que se exprime pelos signos da linguagem, é graças a algo exterior aos próprios signos e exterior à própria linguagem. Esse além-linguagem, poderíamos pensá-lo de duas maneiras: ou ele se daria pela apresentação repetida do objeto, ou ele não é dado porque nós já o possuímos como uma verdade interior. Santo Agostinho descarta a primeira hipótese por considerá-la insustentável. Se no lugar de uma palavra apontarmos com o dedo o objeto, não teremos com isso resolvido o problema da significação. Assim, se aponto para alguém uma árvore, tentando com esse gesto significar "árvore", a pessoa não saberá se o gesto indicativo se refere à árvore, ao verde da árvore, à madeira que constitui a matéria da árvore, ou ainda ao fato de essa árvore ser uma mangueira. Ao contrário do que seríamos levados ingenuamente a pensar, a indicação não é necessariamente índice de objetividade, mas de ambiguidade. A outra maneira de pensarmos esse algo externo ao signo e à linguagem, e que ao mesmo tempo é a condição de ambos, é a que Santo Agostinho defende com sua tese do mestre interior da verdade. Segundo ela, a verdade não está na linguagem, mas na interioridade do sujeito. É essa interioridade que possibilita a linguagem, e não o contrário. Há na interioridade humana algo que aponta para uma transcendência, e esse índice de transcendência é a necessidade com que a verdade se impõe à razão. Essa transcendência é, contudo, também proximidade. É no mais íntimo de nossa interioridade que ela se faz presente, iluminando o pensamento. O Deus agostiniano é ao mesmo tempo íntimo e transcendente, familiar e distante, uma espécie de Unheimliche iluminador do pensamento.

Segundo Lacan (1979), dizer que a verdade habita a interioridade do sujeito não significa eliminar o fato de que a palavra se instaura e se desloca na dimensão da verdade, mas sim que em presença das palavras não sabemos se elas são verdadeiras ou não; elas estão também inevitavelmente situadas no registro do erro, da equivocação, da mentira. Daí o título do segundo capítulo do De magistro: "Que os signos não servem de nada para aprender". O signo é enganador, diz Agostinho, porque não mantém nenhuma relação natural com a coisa. A função significante da palavra não se faz pela relação que ela possa ter com a coisa significada, mas sim pela relação que ela tem com as outras palavras. Assim, diz Lacan, "a linguagem só é concebível como uma rede, uma teia sobre o conjunto das coisas, sobre a totalidade do real. Ela inscreve no plano do real esse outro plano a que chamamos aqui o plano simbólico" (p. 299). Tomados um a um, a relação do significante e do significado é inteiramente arbitrária. A razão pela qual as coisas têm o nome que têm não está na coisa nem no signo considerado isoladamente, mas nas definições, isto é, nas relações entre os signos. Como as definições são equívocas e enganadoras, a verdade só pode ser encontrada fora da linguagem, na interioridade do sujeito. É a interioridade que sustenta a verdade do signo.

O que podemos fazer com a linguagem é proceder a retificações sucessivas do discurso com base em sua consistência interna. Essa seria uma maneira de diminuir o grau de equivocação nele presente de forma necessária. Assim, se chamo a mesa de cadeira e passo a dizer que escrevi durante todo o dia sobre a cadeira e que guardo alguns objetos nas gavetas da cadeira, que meu abajur se encontra sobre a cadeira etc., acaba ficando evidente que sob o nome cadeira é da mesa que estou falando. O que torna o erro manifesto é a contradição do discurso. Lacan comenta que é isso que fundamenta a concepção hegeliana do saber absoluto: "O saber absoluto é o momento em que a totalidade do discurso se fecha sobre si mesma numa não contradição perfeita" (p. 301). Esse é o sonho do discurso científico.

Não foi esse o caminho tomado pela psicanálise. Na verdade, ela institui um novo caminho, e é para essa outra via da verdade que Lacan chama a nossa atenção ao final de um de seus seminários: "Durante a análise, nesse discurso que se desenvolve no registro do erro, algo acontece por onde a verdade faz irrupção, e não é a contradição [itálico meu]" (p. 302)

Diferentemente da via da verdade proposta por Parmênides, a via da verdade psicanalítica não é percorrida obedecendo-se ao princípio da não contradição. Ela se faz, ao contrário, pelo caminho das equivocações, dos lapsos, dos tropeços, das ambiguidades da palavra. É aí que habita a verdade do desejo, é por aí que o inconsciente faz suas irrupções, e é aí também que se inscrevem a condensação (Verdichtung), o recalcamento (Verdrangung) e a denegação (Verneinung).

A Verdichtung, diz Lacan, "é simplesmente a lei do mal-entendido" (1985, p. 100). Contrariamente à lei da não contradição, a Verdichtung é o que permite a multiplicidade simultânea de sentidos, a satisfação simultânea de tendências opostas. É graças a ela que podemos manter com alguém uma relação de amor e de ódio, sem que se excluam mutuamente, ou ainda que tendências masculinas e femininas podem coexistir na mesma pessoa, sem que no plano imaginário e no plano real a masculinidade ou a feminilidade de cada um sejam ameaçadas.

A Verdrangung "não é a lei do mal-entendido" (Lacan, 1985, p. 100). É a "interrupção do discurso. O sujeito diz que a palavra lhe falta" (Lacan, 1979, p. 305). Essa interrupção do discurso não significa interrupção ou eliminação do desejo. Suas exigências continuam a se fazer subterraneamente, só que não reconhecidas no plano das significações.

A Verneinung é também da ordem do discurso e revela-se como o lado negativo da Verdichtung, da superposição simultânea de sentidos. A Verneinung é uma forma de apresentar o que se é no modo de não sê-lo:2 "Não pense o senhor que eu quero ofendê-lo, mas..." A denegação está sob a ação direta do princípio de realidade e "concerne ao que somos capazes de fazer vir à tona por uma via articulada" (Lacan, 1985, p. 101).

É por percorrer os caminhos da Verdichtung, da Verdrangung e da Verneinung que a psicanálise tem como regra fundamental a associação livre, procedimento que permitirá o rastreamento das múltiplas determinações do sentido.

Freud recupera, assim, a via da opinião, que havia sido rejeitada pelo discurso conceitual, e o faz não para opô-la à via da verdade, mas para mostrar que verdade e erro não são excludentes, visto que é precisamente na dimensão do erro e do equívoco que a verdade faz sua emergência. Enquanto produtor de um discurso teórico conceitual, ele se insere na tradição platônico-aristotélica, mas, enquanto produtor de uma prática clínica que lida sobretudo com a ambiguidade da palavra, ele se inscreve na tradição sofística.

O psicanalista é esse díkranoi que se situa no cruzamento dos dois eixos - da verticalidade e da horizontalidade - com o olhar e a escuta voltados simultaneamente para as alturas platônicas e para a horizontalidade dos acontecimentos à espreita das irrupções do inconsciente.

O que Freud faz é recuperar o valor da palavra ambígua, da palavra cujo sentido, ao mesmo tempo que revela, oculta a verdade, e faz isso sem sacrificar o rigor conceituai de sua construção teórica. Mistura de aedo e de sofista, ele redimensiona o estatuto da palavra e da verdade.

 

Referências

Agostinho, S. (1980). De magistro. In S. Agostinho, Confissões; De magistro (A. Ricci, Trad.). São Paulo: Abril.         [ Links ]

Gilson, E. (1985). La filosofía en la Edad Media (A. Pacios & S. Caballero, Trads.). Madrid: Gredos.         [ Links ]

Hyppolite, J. (1984). Comentario hablado sobre la Verneinung de Freud. In J. Lacan, Escritos 2 (T. Segovia, Trad., pp. 859-866). Buenos Aires: Siglo XXI.         [ Links ]

Lacan, J. (1979). O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud (B. Milan, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Lacan, J. (1985). O seminário, livro 3: as psicoses (A. Menezes, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

 

 

1 Trabalho original publicado em: Garcia-Roza, L. A. (2001). Palavra e verdade: na filosofia antiga e na psicanálise (4.ª ed., pp. 87-96). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Agradecemos a autorização da Editora Zahar para a publicação deste texto.
2 Cf. Hyppolite (1984).

Creative Commons License