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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.3 São Paulo July/Sept. 2019

 

INTERFACE

 

Extrativismo de olhar, valor de gozo e palavras em refluxo1

 

Vision, the pleasure principle and words being replaced

 

Extracción de visión, valor de disfrute y palabras en reflujo

 

L'extractivisme de regard, la valeur de jouissance et les mots en reflux

 

 

Eugênio Bucci

Professor titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), jornalista (articulista do jornal O Estado de S. Paulo) e autor dos livros A forma bruta dos protestos (Companhia das Letras, 2016) e O estado de Narciso (Companhia das Letras, 2015), entre outros

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo, filiado aos estudos da comunicação, aprofunda a hipótese (já apresentada em textos anteriores do autor) de que duas esferas que o discurso do capitalismo globalizado entende como separadas, quais sejam, o negócio do entretenimento e as empresas de tecnologia, constituem um corpo único, a indústria do imaginário. Para essa indústria, o olhar é uma força produtiva, assim como era o trabalho em fases anteriores do capitalismo. Daí a necessidade de uma técnica especializada na extração de olhar e no emprego do olhar para fabricar o que, de passagem, Jacques Lacan, nos anos 1960, chamou de valor de gozo. Assim opera o capitalismo na era da sociedade do espetáculo, em que o capital se encontra "em tal grau de acumulação que se torna imagem" (Debord). A era digital não revogou o espetáculo; ao contrário, potencializou-o numa profusão de signos em que a imagem avança sobre a palavra e, na palavra, a função imaginária fala mais alto que a função simbólica. O triunfo da técnica, antes entendido como a prevalência da razão, impõe-se como o triunfo do capital (espetáculo). O pensamento se recolhe.

Palavras-chave: indústria do imaginário, valor de gozo, olhar, técnica, palavra


ABSTRACT

This article, together with communication studies, deepens the hypothesis (already presented in previous articles by the same author); of the two sides the globalized capitalism speech understands as separate ones. They are: the entertainment business and the technology companies business, which are one, the industry of the imaginary. For this industry, the vision is a productive force, as the job was in phases previous to capitalism. Therefore, the need for a special technique in the vision and using that to produce what, according to Jacques Lacan, in the 1960s called pleasure principle. That's how capitalism works in the era of Society of Spectacle, when capitalism is found in such an "accumulating level that it becomes image" (Debord). The digital era hasn't eliminated the spectacle; on the contrary, it has made it stronger by abundance of signs that image substitutes words and in words the imaginary means more than the symbolic function. This technique's success, before seen as reason prevalence, is enforced as capital success (spectacle). Ideas are replaced.

Keywords: industry of the imaginary, pleasure principle, vision, technique, words


RESUMEN

Este artículo, asociado a los estudios de la comunicación, profundiza la hipótesis (presentado en textos anteriores del autor) de que dos esferas que el discurso del capitalismo globalizado entiende como separadas, cualesquiera que sean, el negocio del entretenimiento y las empresas de tecnología, constituyen un cuerpo único, la industria de lo imaginario. Para esta industria, la visión es una fuerza productiva, de la misma forma que lo era el trabajo en etapas anteriores del capitalismo. De aquí la necesidad de una técnica especializada en la extracción de la visión y en su empleo para fabricar lo que, Jacques Lacan, en los años 1960, denominó valor de disfrute. De esta forma opera el capitalismo en la era de la sociedad del espectáculo, en la que el capital se encuentra "en tal grado de acúmulo que se convierte en imagen" (Debord). La era digital no revocó el espectáculo; al contrario, lo potencializó en una profusión de signos en los que la imagen avanza sobre la palabra y, en la palabra, la función imaginaria habla más alto que la función simbólica. El triunfo de la técnica, antes entendido como la prevalencia de la razón, se impone como el triunfo del capital (espectáculo). El pensamiento se recoge.

Palabras clave: industria de lo imaginario, valor de disfrute, visión, técnica, palabra


RÉSUMÉ

Cet article, affilié aux études de la communication, approfondit l'hypothèse (présentée déjà sur des textes préalables de l'auteur) que deux sphères conçues séparément par le discours du capitalisme mondialisé, à savoir, l'affaire de l'entraînement et les entreprises de technologie, consistent en un corps unique: l'industrie de l'imaginaire. Pour cette industrie, le regard est une force productive, tel que l'était le travail dans les phases antérieures du capitalisme. D'où le besoin d'une technique spécialisé dans l'extraction du regard et dans l'emploie du regard pour fabriquer ce que, dans les années 1960, Jacques Lacan a appelé, en passant, la valeur de jouissance. Ainsi opère le capitalisme dans l'ère de la société du spectacle, où le capital se retrouve "dans un tel degré d'accumulation qu'il devient une image" (Debord). L'ère digitale n'a pas révoqué le spectacle; au contraire, elle l'a potentialisé dans une profusion de signes où l'image avance sur le mot et, dans le mot, la fonction imaginaire parle plus fort que la fonction symbolique. Le triomphe de la technique, que l'on comprenait avant comme la prévalence de la raison, s'impose maintenant comme le triomphe du capital (spectacle). La pensée se recueillit.

Mots-clés: industrie de l'imaginaire, valeur de jouissance, technique, mot


 

 

O extrativismo como padrão

Há 100 anos, nos parágrafos finais de A ética protestante e o espírito do capitalismo, Max Weber escreveu:

O poderoso cosmos da ordem econômica moderna ... determina com pressão avassaladora o estilo de vida de todos os indivíduos que nascem dentro dessa engrenagem ... e talvez continue a determinar até que cesse de queimar a última gota de combustível fóssil. (2004, p. 165)2

Naquele início do século XX, a técnica, então entendida como um engenho da razão, tinha aprendido a conjugar trabalho, meios e instrumentos para redobrar a potência das forças naturais e, com elas, transformar a natureza em bens que determinavam os novos modos de viver (Silva, 2007). Não há de ser difícil intuir que os contemporâneos de Weber saíssem da leitura desse parágrafo com o pressentimento de que o chão lhes seria arrancado dos pés por máquinas que arrancavam do subsolo todo o óleo e todos os minérios. O capitalismo torraria o planeta, mais ou menos como a chama queima a cabeça de um palito de fósforo em câmera lenta. Roldanas, guindastes, gruas e engrenagens revolveriam os alicerces da natureza até a extinção de tudo. A violência do extrativismo seria tamanha que talvez o ser se visse na iminência de um despedaçamento, desgrenhado pelo maquinário que a própria razão inventara.

Se fizermos uma escala na poesia, encontraremos registros da mesma sensação, uma sensação de catástrofe iminente e, ao mesmo tempo, de catástrofe adiada. Em 1951, em "A máquina do mundo", poema do livro Claro enigma, Carlos Drummond de Andrade se ocupou de pôr em questão o ser. Enquanto descreve a brutalidade colossal e prodigiosa que, de dentro das entranhas da terra, arrancava minério,3 o poeta se refere a si mesmo como um ser ora restrito, ora desenganado. É assim que ele se expressa ao escrever: "na escuridão maior, vinda dos montes/ e de meu próprio ser desenganado". O poeta denuncia a escuridão maior vinda dos montes - aquela que vem igualmente de seu próprio ser desenganado - como um rastro deixado pela máquina do mundo, que se desvela a seus olhos e o convida a render-se: "a máquina do mundo se entreabriu/ para quem de a romper já se esquivava/ e só de o ter pensado se carpia" (1995, p. 121). Sabe que dele se avizinha um saber técnico que ameaça devorá-lo antes de se fazer compreender. Ele se declara diante d'"essa ciência sublime e formidável, mas hermética" (p. 122), e anota que, se quiser realmente vê-la (ou decifrar a ciência que à máquina serve de alma), se quiser penetrar seu mistério essencial, terá que aderir a ela. A máquina do mundo é uma divindade metálica mais caprichosa que a esfinge: em vez de devorar quem não a decifra, só se deixa decifrar por aquele que se deixa devorar.

O poeta resiste. Prefere olhar de longe. Verseja como quem desconfia daquilo tudo. Desconfia que essa ciência, aquela que anima a máquina do mundo, transfunde o pensamento para além do pensamento mesmo. Desconfiado, enxerga "o que pensado foi e logo atinge/ distância superior ao pensamento" (p. 123). A máquina drummondiana quer escalavrar as montanhas até sugar de dentro delas a última limalha da última nesga de minério com valor comercial. Como o poderoso cosmos da ordem econômica moderna descrito por Max Weber, a máquina fumega para exaurir o planeta de todo resquício de energia armazenada que ele esconde. Não sobrará nada no final. E, aqui, dizer que não sobrará nada significa dizer que não sobrará nem pensamento. Não sobrará palavra. O poeta diz não ao assédio da máquina como quem não quer renunciar à palavra que lhe resta. Seu esforço, contudo, é vão - e ele não ignora isso.

Deixemos agora Drummond e Weber no passado. Aportemos em nossos dias. Se olharmos além da margem de nossas estradas pedregosas, veremos que é preciso levar a sério a hipótese de que o capitalismo na era do espetáculo (Debord, 1997) segue sendo extrativista. Uma coisa, porém, é diferente. Agora, o extrativismo não é mais obcecado por minérios e petróleo, e sim por algo menos mineral, um bem precioso, e humano, a que precariamente damos o nome de olhar (ou olhar social). Dispositivos que funcionam como atratores de olhar e como extratores de olhar escarafuncham o íntimo dos desejos do sujeito e, com o que arrancam lá de dentro, como olhar, fabricam valor.

Não por acaso, estrategistas de marketing já vêm identificando - superficialmente - esse processo pelo qual o mercado atribui valor aos olhos que fisga ao público. Esses estrategistas chamam tal processo de economia da atenção (Davenport & Beck, 2001). A abordagem que oferecem, no entanto, deve ser vista por nós mais como um sintoma do que como uma explicação. A análise que conta, e que precisa ser feita, terá de investigar o que há por trás de uma economia da atenção supostamente neutra, que apenas alcança identificar o caráter de mercadoria na atenção que consegue atrair do consumidor.

A economia da atenção se apresenta como um agregador de valor lateral no campo do marketing. O que se passa, entretanto, é de uma ordem mais totalizante. O que está em curso não se reduz a um dado a mais dentro de um modo de produção que tiraria proveitos suplementares das técnicas atratoras da atenção do público - o que está em curso é uma transformação profunda do capitalismo, que fixa seu centro de gravidade exatamente na extração e na exploração do olhar.

Assim, se quisermos adotar uma perspectiva menos afeita ao mercado e mais crítica, será preciso traçar o diagnóstico desse modo de produção que extrai olhar, emprega-o como força produtiva, confecciona significados em imagens e linguagem e, disso, fabrica uma forma própria de valor, o valor de gozo. Em síntese, poderíamos dizer que o valor de gozo é a forma do valor capitalista que não tem mais seu centro de gravidade no corpo físico da mercadoria. Lembremos que, no dizer de Marx, "a mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, a qual, pelas suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie" (1985, p. 45). Agora o valor se inscreveria, segundo a hipótese aqui elaborada, na imagem (ou significado fabricado) da coisa ou do objeto externo (Bucci & Venancio, 2014). Estamos tratando de uma mutação de larga escala no próprio capitalismo.

Entender esse processo requer um deslocamento de perspectiva teórica - um deslocamento de paradigma, na direção de uma percepção original do que vem a ser apreendido como olhar. Antes compreendido como faculdade orgânica, como a aparelhagem necessária para o "gozo escópico", o olhar deve ser pensado agora como uma forma superior de trabalho.

 

O olhar e a imagem em mutação

Detenhamo-nos um pouco mais no entendimento do que significa esse vocábulo, olhar - neste tópico, aproveitam-se argumentos de um ensaio anterior (Bucci, 2017).

Como já está dito, podemos pensar no olhar como a faculdade de ver com o dispositivo ótico de que a natureza dotou os humanos, entre outros animais. Podemos pensar também no olhar como a instância iluminada pelos holofotes do imaginário, a instância em que todas as cenas têm lugar, em que os seres humanos, e só eles, buscam se instalar como seres olhados, além de seres "olhantes".

Os gregos antigos preferiam se aproximar dessa faculdade de olhar através de uma teoria própria, a teoria do raio visual, segundo a qual haveria uma estranha luz que, saindo das pupilas, se depositaria sobre o objeto visto. Essa "claridade" emitida pelas pupilas seria personalíssima: duas pessoas olhando a mesma coisa jamais veriam coisas idênticas. Aristóteles chegou a escrever que o raio visual das mulheres menstruadas deixava nos espelhos uma névoa cor de sangue (Simaan & Fontaine, 2003). Não se pense que sejam ideias que se esfumaçaram no tempo. Ainda hoje, quando alguém busca proteger-se contra o mau-olhado, é possível que dê seguimento à teoria do raio visual no século XXI. O olhar é deveras misterioso.

Merleau-Ponty falou "do céu percebido ou sentido, subtendido por meu olhar que o percorre e o habita, meio de uma certa vibração vital que meu corpo adota" (1971, p. 290). Falou ainda "do investimento do objeto por meu olhar que o penetra, o anima" (pp. 356-357). O filósofo, é claro, não quis aderir à teoria dos velhos gregos, mas com todas as letras emprestou ao olhar uma condição de sujeito: o olhar "habita" o céu e "anima" os objetos (o verbo animar, a propósito, carrega o sentido de "dar alma a algo"). O olhar desempenharia uma força material na função de estabelecer significações e de preencher de sentido os objetos olhados.

Disso decorre que o olhar concentra esse poder de constituir objetos na medida em que tece o sentido das imagens - e de tecer o sentido das imagens conforme as põe em foco. Para que uma figura adquira significado, é preciso que ela seja olhada em associação a esse significado. O significado (bem como o sentido) não vem embutido nas imagens ou nas palavras - ele se processa e ganha efetividade pelas associações prevalentemente imaginárias que os sujeitos, coletivamente, realizam em relação a referentes que, sem essas associações mais ou menos convencionadas, seriam apenas significantes errantes deslizando por aí. Dizer, então, que o olhar "anima" os objetos, "penetra-os" e os "habita" não significa dizer que o olhar os constitua fisicamente ou metaforicamente, mas significa, isto sim, que o olhar os constitui no plano da linguagem (a linguagem articulada por signos, visuais inclusive). Os objetos olhados e as imagens olhadas ganham sentido, nessa perspectiva, por "força" do olhar. Merleau-Ponty tem razão.

Indo adiante, é possível arriscar que o olhar não funciona propriamente como "janela" aberta na cabeça dos consumidores, através da qual as mensagens dos anunciantes (ou dos profissionais de marketing e de publicidade) entram e, aterrissando no cérebro de seus alvos, produzem lá dentro os efeitos pretendidos pelos anunciantes de mercadorias. Diferentemente disso, o olhar funciona como agente ativo - não receptor passivo - na atividade fabril do espetáculo. Pensemos na seguinte perspectiva: pelo trabalho ativo dos olhos do público (ou do olhar social), a fixação dos sentidos das imagens é costurada nas telas sobrepostas e mutantes do imaginário.

Longe do olhar, nenhuma imagem adquire sentido imaginário. O que dá sentido a elas é o olhar social nelas investido. Nessa medida, o tempo dos olhos das massas precisa ser "comprado" - o que por vezes se dá pelo escambo, quer dizer, "compra-se" tempo de olhar em troca de atrações banais. Desse modo, o olhar (como força que precipita a aderência entre significados e significantes, sobretudo visuais) é empregado no processo de fabricação das imagens e dos sentidos.

Jacques Lacan já anotara, nos anos 1950, na contramão do senso comum vigente, que o olhar era um ato de linguagem, mais que um aparelho receptor de imagens. Naquela época, quando quase todos diziam que o fotógrafo trazia a "realidade" para dentro da câmera, onde essa "realidade" ficaria impressa no suporte químico, Lacan entrou com uma ideia inusual: o fotógrafo é um operário da linguagem e seu equipamento pertence à sua subjetividade (e à subjetividade do discurso para o qual ele trabalha). Para ele, o equipamento do fotógrafo habitaria a linguagem. Vejamos como a ideia ocorre a Lacan: "Talvez a câmera fotográfica não seja mais que um aparato subjetivo que habita o mesmo território do sujeito, quer dizer, o da linguagem" (1996, p. 125). Podemos, então, dizer com segurança: olhar é projetar, na tela do imaginário, os sentidos para as imagens que lá transitam como significantes vazios.

Lembremos que o substantivo espetáculo vem do latim spectaculum, que significa "vista", "algo para observar visualmente". Spectaculum, por sua vez, vem de spectare, ligado a specere, que quer dizer "ver", do indo-europeu spek ("observar"). O sufixo culum costuma conotar uma ideia de instrumentalidade (ferramenta para). Spectaculum, enfim, seria algum objeto apropriado para ser olhado, como habitaculum é algo apropriado para habitar, e cubiculum é um quarto para se deitar. Em suma, o termo espetáculo traz em sua carga genética o sentido de designar um atrator universal de olhar, que toma o olhar como uma ação - ou como um trabalho. O espetáculo é aquilo que se oferece para ser olhado - um arsenal de dispositivos para atrair, extrair e depois empregar o olhar.

Se a sociedade do espetáculo inaugura outra fase do capitalismo - pois, como Debord anotou em 1967, "o espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem" (1997, p. 25) -, é preciso admitir a hipótese de que a imagem, a partir do advento dessa nova fase do capitalismo, também se transforma. A parte mais facilmente identificável dessa modificação da substância da imagem pode ser flagrada na maneira como ela foi retirada do domínio da arte, em que se encontrava desde o Renascimento, para ser entregue ao domínio da indústria. Foi essa mutação - sua natureza se transmutou para que o deslocamento se viabilizasse - que fez da imagem o carro-chefe do capitalismo tornado espetáculo.

Francis Wolff (2005) lembra como a imagem, no início da era moderna, foi conquistada pela esfera da arte. Até então, ao menos na tradição do Ocidente, a imagem parecia estar confinada aos domínios da religião, ou, mais precisamente, da Igreja católica. Aí a imagem era, no dizer de Wolff, transparente. Na pintura, por exemplo, a imagem aparecia não como um objeto a ser visto, não como um objeto que se oferecia aos olhos, mas como um portal mágico, que levaria os olhos do espectador a contemplar um ente além da tela. Se desprovido da imagem-portal, esse ente ficaria para sempre escondido, submerso no invisível. A imagem religiosa, nesse período, conectaria diretamente os olhos do espectador à figura representada na imagem - um santo católico, um objeto sagrado, um milagre, Deus. O fiel olhava para a tela ou para o afresco na parede e não via a tela ou a imagem ou a parede: via o santo. É por isso que a pintura teria o dom de ficar transparente. Ela, a pintura, não era vista. O que era visto era o objeto representado.

No século XVI - numa datação aproximativa, não exata - as imagens teriam começado, segundo Wolff, a se mostrar elas mesmas. Esse é o "momento em que as imagens se tornam artísticas, ou, se preferirmos, o momento em que a arte se apoderou das imagens" (p. 39). Então, o espectador olhava para a pintura e via efetivamente a pintura, além da coisa representada.

Mais adiante, já no século XX, ainda de acordo com Francis Wolff, as imagens são apropriadas pela indústria de "técnicas automáticas de reprodução, à pura reprodução mecanizada, à representação pela representação: fotografia, cinema, televisão, tevê em cores, imagens digitais, e sobretudo imagens por todo lado, imagens de tudo, imagens vindas de todo lado, imagens para todos" (p. 43). Com isso, como se fosse uma maldição, a imagem volta a ser... transparente:

E acabamos nos encontrando, mutatis mutandis, na mesma situação que a de antes da época da arte, quando as imagens eram feitas de maneira estereotipada, com o único intuito de representar, com a mesma consequência, a transparência das imagens e a ilusão imaginária. ... Pois as imagens estão uma vez mais abandonadas a si mesmas, a seu próprio poder de representar, e criam a ilusão fundamental de não representar, de não ser imagens fabricadas, de ser o simples reflexo, transparente, aquilo que elas mostram, de emanar diretamente, imediatamente, daquilo que elas representam, de ser puro produto direto da realidade, como outrora acreditávamos que emanavam diretamente os deuses que representavam. (p. 43)

Antes, a imagem pictórica se apresentava como transparente para dar a ver nada menos que o sagrado. Agora, a imagem digital se apresenta como transparente para dar a ver o que na mercadoria é fetiche - fetiche que o apetite do olhar do sujeito quer buscar de volta para conferir um objeto a seu desejo e um sentido (imaginário) para sua existência.

Mutatis mutandis, podemos inferir, com isso, que o olhar também se metamorfoseou. No capitalismo contemporâneo, cada vez mais ancorado na indústria do entretenimento em sentido amplo (turismo, ciência, guerra e exploração espacial integram a indústria do entretenimento), o olhar atua e age como força produtiva que cimenta a justaposição entre significante e significado nas telas do imaginário. Especializada na extração de olhar e no emprego do olhar na confecção de sentidos, essa nova fase do capitalismo (o capitalismo da era digital, vertebrado de chips e encantado pela inteligência artificial) interpela o desejo, não mais a necessidade. Mais ainda, ela coloniza o desejo e domestica o olhar do mesmo modo que antes domesticara o consumo e o regime de trabalho.

 

A palavra reflui, sitiada ou mesmo deprimida

Diante de tamanha prevalência da imagem, resulta óbvio que a palavra perde espaço na comunicação social. Essa constatação nada tem a ver com uma platitude lamuriosa que se tornou lugar-comum a partir do final do século XX, especialmente entre educadores, que carrega uma nota nostálgica sobre os bons tempos em que as pessoas "liam mais". A questão é de outra ordem. Não há, nestas linhas, nenhuma intenção de protesto moral contra a televisão, o cinema, os games, as telas de computador em alta definição ou os outdoors no meio das grandes avenidas. A menção aqui feita à prevalência da imagem sobre a palavra nos remete a uma transição de fôlego longo, empreendida pelo capitalismo e pelas sociedades ditas democráticas, entre a instância da palavra impressa e a instância da imagem ao vivo (Bucci, 2009).

Por alterações estruturais e de padrão tecnológico - alterações que escapam ao escopo deste artigo -, a sintetização da esfera pública, aqui entendida como um "espaço social gerado pela comunicação" (Habermas, 1996, p. 360), deixou de ser amalgamada pela instância da palavra impressa para se entregar progressivamente à instância da imagem ao vivo. Em termos sumários, pode-se dizer que, entre os séculos XVIII e XIX, deu-se o predomínio da instância da palavra impressa na conformação das esferas públicas e dos Estados nacionais que daí afluíram. Esse predomínio se faz sentir até nossos dias, quando verificamos a persistência da instituição dos diários oficiais como o plano (ou instância) que deve conferir existência e validade aos atos da administração pública. Os Estados nacionais, com efeito, são decorrência histórica direta de esferas públicas ordenadas pela instância da palavra impressa, e isso definiu seus ordenamentos internos - ainda que esses ordenamentos, hoje, sejam impelidos a um aggiornamento pelas pressões vindas de esferas públicas cada vez mais geradas pela instância da imagem ao vivo.

A partir da segunda metade do século XX, o predomínio da imagem (eletrônica e, depois, digital) na comunicação social fez expandir a(s) esfera(s) pública(s), ultrapassando as antes intransponíveis fronteiras idiomáticas, nacionais e geográficas. Presididas pelas imagens, acima das palavras, as teias da(s) esfera(s) pública(s) pavimentaram trilhas pelas quais começou a emergir o que Octavio lanni (1998) batizou de sociedade civil global, ou seja, uma sociedade civil muito maior que um só Estado nacional. Pela imagem, comunidades de idiomas incompreensíveis entre si puderam se conectar e se identificar, por meio de laços de pertencimento que sobrevoam os limites da palavra e dos idiomas.

Nessa transição de longo fôlego, que se cumpriu no curso de três séculos, a palavra perdeu um pouco de sua centralidade e de sua autoridade, no mais estrito sentido próprio da ordem do simbólico. A palavra não deixou de existir, nem deixará. Ela apenas refluiu e perdeu, por assim dizer, parte de seu peso específico na constelação dos signos e dos sistemas sígnicos que povoam (constituem) os espaços sociais. Isso significa que a função de ordenamento cumprida pela palavra (ou letra) em sua dimensão de significante perdeu espaço (ou autoridade) para a dimensão de significante da imagem. É possível que tenha ocorrido aí, embora isso não se possa propriamente "medir", uma expansão da função imaginária da palavra em detrimento da função simbólica da palavra. A ordem do simbólico teria sido recoberta por franjas extrapolativas enraizadas na ordem do imaginário.

Isso teria a ver, inclusive, com certas inversões anotadas no interior da teoria psicanalítica, em que o superego que ordena "Não goza!" cede terreno para o mesmo superego passar a ordenar "Goza!".4 Gozar, agora, tem a ver com alguma sorte de identificação, ou de acoplamento, entre o sujeito e a afirmação gozosa a que a imagem o autoriza - e a imagem, agora, é necessariamente a imagem que, tornada transparente, deixa ver o fetiche da mercadoria, o fetiche que o sujeito deseja colar em si.

Há que anotar ainda que as imagens podem se comportar rudimentarmente como língua, o que é mais perceptível nos códigos dos infográficos tão banalizados no jornalismo, na publicidade e na comunicação pública. Há regramentos gramaticais na combinação de formas e cores na infografia, que mostram o potencial linguístico das imagens. Contudo, a imagem nesse caso, necessariamente menos propensa a abstrações, não é comparável ao registro próprio da palavra. Quando chamada a cumprir as vezes da palavra, a imagem é desordenadora (como o desejo desordena). Quando chamado a ordenar, o plano das imagens promove um ordenamento mais apoiado no imaginário do que no simbólico, que pode não dialogar com a razão.

Esses itinerários ainda estão por ser descritos, mas, desde já, pressente-se um encolhimento do campo da palavra, como se a palavra estivesse sitiada, enclausurada, deprimida. Em tempos de corpos humanos cada vez mais tatuados, que traem o desejo de ser mídia, surgem perguntas estranhas. Como analisar um sujeito que fala por imagens? Como se valer da palavra em meio a palavras em refluxo?

É nessa perspectiva que a comunicação presidida pela imagem assume o centro por excelência do capitalismo e do capital. Para entender isso, é necessário ter em mente uma mutação que começou a ser percebida na substância do capital ainda nos anos 1960.

 

A mutação capitalista do espetáculo e do valor de gozo

Com o advento da indústria do imaginário, o capital descobriu que a imagem da mercadoria pode incorporar o valor atribuído ao corpo da mercadoria. A base do valor passa a ser a imagem, não mais o corpo físico da coisa fabricada. A coisa corpórea - o objeto físico, objeto externo, realidade sensível - se liquefaz em lixo industrial. A materialidade da mercadoria se deposita, então, na imagem. Com isso, o engenho extrativista registrado na prosa de Weber mudou de objeto. Em vez de transformar a matéria em matéria retrabalhada, a técnica extrativista agora usa o olhar para, com ele em operação dirigida, transformar signos: imagens, cores e palavras. Eis aí a nova materialidade (aparentemente inefável) da mercadoria.

A ideia de mutação se apresenta incontornável, pois isso tudo envolve uma grande mutação. No seminário O avesso da psicanálise, apresentado em forma de aulas abertas em 1969 e 1970, em Paris, Lacan usa o substantivo mutação para acusar uma alteração de imensa gravidade: "Falo dessa mutação capital, também ela, que confere ao discurso do mestre seu estilo capitalista" (1992, p. 178).

Na prosa lacaniana, o termo discurso encerra uma força maior. Diz o psicanalista: "na ordem da linguagem ... atua como relação social" (1978, p. 11). Isso significa que o discurso exerce uma pressão na estrutura da linguagem: disciplina as palavras que serão faladas pelos falantes, como se fosse uma usina subterrânea gerando os signos que se põem em movimento depois, pela boca dos falantes. Para Lacan, "toda determinação de sujeito, portanto de pensamento, depende do discurso" (1992, p. 161). (Teríamos hoje que pensar muito mais em discursos imagéticos, mas isso fica para outra ocasião.)

Quando sintetizou seus quatro discursos, Lacan (1992) pôs em tela não apenas um ordenamento de sujeitos, mas um ordenamento de palavras que ordenava sujeitos. Os quatro discursos eram: discurso do mestre, discurso da histérica, discurso do analista e discurso da universidade (ou do universitário). Três deles correspondem a três atividades que já tinham sido definidas por Freud: governar, analisar e ensinar. O discurso do mestre corresponderia ao governar. O discurso do analista, ao analisar. O discurso da universidade, ao ensinar. A esses três ofícios freudianos, Lacan acrescentou um quarto, o fazer desejar, que veio a ser o discurso da histérica.

De posse das quatro funções - governar, analisar, ensinar e fazer desejar - ele acreditou contempladas as possibilidades discursivas. Só mais tarde ele atentou para essa mutação capital, que deu ao discurso do mestre seu estilo capitalista. Essa mutação convulsionou os discursos anteriores, uma vez que - numa interpretação que podemos nos permitir aqui, não nos cânones da psicanálise, mas nos parâmetros dos estudos da comunicação - a lógica do capital passou a governar a vida, ou a determinar o discurso. Nessa fase, a do discurso do capital como discurso imagético dominante, o simbólico se retrai e o inconsciente fica mais exposto - ou mesmo conquista novos gomos do poder. A ordem, então, é a anarquia.

O caráter anárquico viria inscrito, aliás, no DNA do capitalismo. Não custa (ou custa muito) lembrar que Marx e Engels recorreram à figura da anarquia da produção para qualificar o modo de produção capitalista em face das crises de mercado. Em 1848, no Manifesto comunista, eles escreveram:

A burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais. ... Essa subversão contínua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de ideias secularmente veneradas, as relações que as substituem tornam-se antiquadas antes mesmo de ossificar-se. Tudo que é sólido desmancha no ar. (1998, p. 11)

Pelo menos desde que esse parágrafo foi escrito, sabe-se que a chamada anarquia da produção é inseparável do modo de produção capitalista (o que se mantém na sociedade do espetáculo). Pois o discurso do capitalista em Lacan põe em evidência esse caráter do capitalismo, entre outros, mas agora com potência redobrada.

No capitalismo contemporâneo - na indústria do imaginário -, o sujeito do inconsciente ordena a produção de objetos, signos, sentidos culturais, imagens, mercadorias. Na outra ponta, a produção bombardeia o sujeito com a incessante oferta de objetos, mercadorias e imagens (mercadorias projetadas em imagens, e imagens que são, elas mesmas, mercadorias). Esses objetos assaltam o olhar por meio de dispositivos da indústria do imaginário. De sua parte, o olhar transita sem que o sujeito saiba dirigi-lo: o olhar está entregue às engrenagens do espetáculo (capitalista) e atua na produção de imagens dotadas de sentido - e essas imagens são o reflexo dos objetos dos quais o inconsciente se ressente e dá falta. São essas as imagens que voltam ao sujeito na forma de uma sedução exterior, sem medida e sem controle, a ponto de ser acertado dizer que as imagens lhe tomam de novo o olhar em assalto.

O resultado é que o discurso do capitalista avança sem freios, não encontra limites, e recrudesce pela acumulação e pela oferta de gozo. Para encurtar essa passagem, podemos resumir em cinco pontos a mutação capital que dispara o estilo capitalista do discurso do mestre:

1.  Os objetos assediam o sujeito que mal sabe de si e, não obstante, deseja e age como o grande sabedor do mundo, como se governasse o mundo.

2.  O sujeito do inconsciente comanda o discurso do capitalista, com a ilusão essencial de ter acesso pleno ao gozo das coisas e das imagens.

3. A ordem do imaginário avança sobre a ordem do simbólico, de tal forma que onde havia a interdição passa a haver o seu oposto, ou seja, onde o superego ordenava "Não goza!", o mesmo superego, agora mutante, determina "Goza!".

4.  No sujeito do inconsciente, dentro do discurso do capitalista, o sentido do olhar preside os demais sentidos; é pelos olhos que ele come, bebe e devora o que mira sem enxergar.

5.  O olhar é o ponto para o qual convergem todos os objetos produzidos, uma vez que existem como imagem. Olhando, o sujeito lhes empresta sentido. O olhar adquire função ativa na produção capitalista. (Bucci, 2017, p. 264)

 

Um pouco mais sobre o valor de gozo

Nesse quadro teórico, a se comprovarem mais elementos da hipótese que vem sendo desenhada neste artigo (como em textos anteriores), a razão instrumental se investe na transformação da linguagem e na fabricação de linguagens artificiais. O interstício que separa, de um lado, a técnica (sobretudo aquela imiscuída na linguagem) e, de outro, o próprio pensamento, parece se dissolver aos poucos. Quem dirá que um domínio ainda difere do outro? Em quê? Ou será que ambos se espelham, se replicam e se assemelham progressivamente? Mais ainda: será que ao avanço do imaginário sobre o simbólico não teria correspondido um avanço da técnica sobre o pensamento, como se a técnica, produto da razão e do pensamento, tivesse antes se autonomizado para depois engolir, em uma recidiva, as autonomias do pensamento e da razão? Até que ponto a razão não teria se tornado refém da técnica? Até que ponto o pensamento ainda consegue criticar a técnica? E até que ponto a imagem não conduziu essa mutação?

Em 1967, o mesmo ano em que Debord lançou em Paris A sociedade do espetáculo, já se fazia perceptível que as coisas transformadas pela técnica, produzidas pelo capitalismo, podem ter sua materialidade na imagem e quase não precisam mais de suportes corpóreos. O valor de uso é posto em questão, uma vez que a matéria se torna prescindível para esse bem a que chamamos mercadoria (um sapato não é um sapato, mas o suporte, o transmissor da marca e do significado que o objeto sapato imprime à imagem do corpo do sujeito).

Mas, se o valor de uso - que funcionaria no reino da necessidade, pois atenderia a uma necessidade - perde sua função num mercado que se ambientou no reino do desejo, onde a coisa corpórea (o sapato) apenas dá suporte ao signo ou ao significante desejado, que valor entraria no lugar do valor de uso que cai em desuso? A resposta é: o valor de gozo. No mesmo ano de 1967, Jacques Lacan mencionou pela primeira vez a expressão valor de gozo, numa das aulas do seminário A lógica do fantasma.

Há algo que toma o lugar do valor de troca, tanto que da sua falsa identificação ao valor de uso resulta a fundação do objeto mercadoria. ... se trata da equiparação de dois valores diferentes, valor de uso e, por que não, veremos isso sempre, valor de gozo. Sublinho valor de gozo, desempenhando ali o valor de troca. (Lacan, citado por Bucci & Venancio, 2014, p. 150)

Lacan nunca detalharia esse conceito, que aparece também em A ética da psicanálise, quando ele nomeia "a função de gozo" da "coisa fabricada" (1991, p. 279), mas a expressão ganhou lugar fixo em sua escola. Tanto que Jacques-Alain Miller observou: "Conciliar o valor de verdade com o valor de gozo é o problema do ensino de Lacan" (2005, p. 52).

Pela hipótese trabalhada neste artigo, temos então que, na relação de produção que fabrica valor de gozo, o olhar é explorado como trabalho -daí a necessidade das técnicas extratoras de olhar. Além disso, o espetáculo fabrica o valor de gozo nas imagens que se precipitarão como substitutas do objeto pequeno a e que, depois, coladas ao sujeito (na forma do fantasma), vão dotá-lo de sentido imaginário.

Na era do espetáculo, enfim, o imaginário avança sobre os territórios do simbólico na mesma medida em que a técnica avança sobre o pensamento.

 

Indícios empíricos do recrudescimento da indústria do imaginário

A mutação capital se acelera. Em 1998, as cinco empresas mais caras do mundo eram a GE, a Microsoft, a Shell, a Glaxo e a Coca-Cola. A segunda da lista já era uma companhia dita de tecnologia, ou seja, uma operadora estrutural da indústria do imaginário ("World's ten largest companies", s.d.). Em 2018, as empresas mais caras do mundo são todas ligadas diretamente à operação do imaginário industrial. As duas primeiras da lista, a Apple e a Amazon, já triscaram a barreira de 1 trilhão de dólares. São as empresas mais valiosas de todos os tempos. As outras três do grupo são a Alphabet (holding que inclui o Google), a Microsoft (a única que continua no grupo das cinco desde 1998) e o Facebook (Shen, 2018).

A Amazon é apresentada como loja. As outras quatro são apresentadas como empresas de tecnologia. As cinco, porém, são operadoras do entretenimento, extratoras de olhar, são pura indústria do imaginário. Processam imagens e comercializam imagens (imagens-mercadoria), enquanto vendem os olhos de seus usuários a outros vendedores de imagem.

Registre-se que o termo tecnologia já não significa meramente o "estudo da técnica", mas um cultivo prático e científico, com aspectos de religiosidade, de procedimentos maquinais que conferem à técnica o estatuto de logos.

No final da segunda década do século XXI, os conglomerados digitais - Google, Facebook, Netflix, entre outros - já estão estabelecidos como monopólios globais, instalados em altitudes inalcançáveis para as legislações nacionais. Encontram-se acima da lei - dos marcos regulatórios dos Estados nacionais. Lá do alto, lá onde as leis nacionais não os alcançam, os conglomerados da indústria do imaginário engendram uma fórmula e uma escala inéditas de exploração do olhar e do trabalho: o usuário é ao mesmo tempo a mão de obra, a matéria-prima e a mercadoria, e tudo isso sem nenhum centavo de remuneração.

Para melhor visualizar o argumento, pense-se nos pactos de consumo que gigantes como Google, Facebook ou WhatsApp impõem ao usuário. Como num cassino, o usuário imagina se divertir enquanto trabalha, sem saber que trabalha, confirmando a profecia de Adorno e Horkheimer, autores de outra anotação que não podemos deixar de lado, qual seja, "a diversão é o prolongamento do trabalho no capitalismo tardio" (1985, p. 128).

Assim como se tornou difícil precisar onde termina a razão técnica (a racionalidade instrumental) e onde começa o pensamento, também ficou difícil traçar a linha divisória entre a máquina e o humano, embora subsista a ilusão de que seria elementar distinguir o silício do carbono. Em fevereiro de 2017, o Parlamento Europeu aprovou um relatório de "iniciativa legislativa", com 396 votos a favor, 123 contra e 85 abstenções. Segundo a resolução, ficam recomendadas disposições de direito civil sobre robótica. O ponto de partida da decisão merece registro: "existe uma possibilidade de que, numa perspectiva a longo prazo, a inteligência artificial possa ultrapassar a capacidade intelectual humana" (Parlamento Europeu, 2017).

No tópico 59, o Parlamento chama a Comissão Europeia e os Estados membros a criar

um estatuto jurídico específico para os robôs a longo prazo, de modo que, pelo menos, os robôs autônomos mais sofisticados possam ser determinados como detentores do estatuto de pessoas eletrônicas responsáveis por sanar quaisquer danos que possam causar e, eventualmente, aplicar a personalidade eletrônica a casos em que os robôs tomam decisões autônomas ou em que interagem por qualquer outro modo com terceiros de forma independente. (Parlamento Europeu, 2017)

Em maio de 2018, um artigo na Columbia Journalism Review reportou que a inteligência artificial poderá reivindicar direitos autorais e que um robô terá garantias hoje dadas a jornalistas (Schroeder, 2018). A técnica se aproxima da condição de sujeito de direito. Aos olhos da autoridade pública, a técnica se move com a autonomia de um ser pensante.

Para voltar a Max Weber, vale constatar que, embora estejamos longe de queimar a "última gota de combustível fóssil", o extrativismo se intensifica e se diversifica. Hoje, tem o olhar como objeto, e ainda "determina com pressão avassaladora o estilo de vida de todos os indivíduos que nascem dentro dessa engrenagem".

 

Referências

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Correspondência:
Eugênio Bucci
Universidade de São Paulo, Escola de Comunicações e Artes
Avenida Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, Butantã
05508-020 São Paulo, SP
eugeniobucci@uol.com.br

Recebido em 5/9/2019
Aceito em 19/9/2019

 

 

1 Este artigo foi apresentado sob a forma de uma breve palestra no Instituto Moreira Salles, em São Paulo, no dia 22 de setembro de 2018, na mesa com Adauto Novaes, Franklin Leopoldo e Silva e Marcelo Coelho, por ocasião do lançamento da plataforma Artepensamento, com a publicação de 318 das mais de 800 palestras dos ciclos organizados por Adauto Novaes.
2 "O puritano queria ser um profissional - nós devemos sê-lo. Pois a ascese, ao se transferir das celas dos mosteiros para a vida profissional, passou a dominar a moralidade intramundana e assim contribuiu [com sua parte] para edificar esse poderoso cosmos da ordem econômica moderna ligado aos pressupostos técnicos e econômicos da produção pela máquina, que hoje determina com pressão avassaladora o estilo de vida de todos os indivíduos que nascem dentro dessa engrenagem - não só os economicamente ativos - e talvez continue a determinar até que cesse de queimar a última porção de combustível fóssil. ... Quis o destino, porém, que o manto virasse uma rija crosta de aço/jaula de ferro" (Weber, 2004, p. 165). Em outra tradução, fala-se em "a última tonelada de combustível" (Weber, 1999, p. 131).
3 Valho-me, aqui, da leitura do poema proposta por José Miguel Wisnik (2018).
4 "Nada força ninguém a gozar, senão o supereu. O supereu é o imperativo do gozo - Goza!" (Lacan, 1982, p. 11). Ver também Miller (1997). "Aqui vale lembrar que o superego para Lacan não é apenas aquele que exige: 'Não goza!' [o superego de Freud, ou seja, o que representa a ordem baseada na repressão], mas simultaneamente o que nos impõe: 'Goza!'. ... A norma que rege o código da rede imaginária não é outra que o imperativo do gozo, e nesse caso o discurso televisivo, revestido da autoridade de código social, exige a mesma coisa: o gozo, a plenitude, a locupletação" (Kehl, 1991, p. 66).

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