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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.3 São Paulo July/Sept. 2019

 

RESENHAS

 

Janelas da psicanálise: transmissão, clínica, paternidade, mitos, arte

 

 

Betty Bernardo Fuks

Psicanalista. Doutora pela Escola de Comunicação e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida, Rio de Janeiro

Correspondência

 

 

Autor: Fernando José Barbosa Rocha
Editora: Blucher, São Paulo, 2019, 334 p.
Resenhado por: Betty Bernardo Fuks

 

 

Psicanálise, multiplicidade e interdisciplinaridade

Em tempos de penúria, quando alguns insistem em vulgarizar a psicanálise, reduzindo-a a um saber dogmático a serviço de suas próprias instituições, e outros fazem avançar, com estardalhaço na mídia, a ideia de que o lugar do inconsciente na contemporaneidade não é mais aquele construído por Freud, um livro que contradiz tais afirmativas, bem definido, incisivo e escrito em linguagem clara e precisa, merece saudações. Brindemos, então, a edição do segundo livro do psicanalista Fernando Rocha, recém-lançado pela editora Blucher: Janelas da psicanálise: transmissão, clínica, paternidade, mitos, arte.

O excelente prefácio assinado por Joel Birman, "Cartografias da psicanálise", permite uma melhor apreensão dos 15 ensaios e da entrevista que compõem ordenadamente as quatro partes desta obra. Interligados, eles são apresentados sob a rubrica janelas, categoria que faz jus, como bem assinala o prefaciador, à posição ética de Rocha diante dos registros pluridimensional e interdisciplinar da psicanálise. De saída, nota-se que o grande desafio do autor foi tecer em conjunto os diversos ensaios e os diversos temas que se propôs perscrutar, obedecendo ao princípio de que no psiquismo habita uma pluralidade de traços, os quais mantêm concatenação entre si, e uma energia circulante. Nesse diapasão, o livro tem três qualidades fundamentais para enfrentar a crise contemporânea da psicanálise antes citada: rigor, multiplicidade e interdisciplinaridade.

Na primeira janela, "Psicanálise e transmissão", Fernando Rocha aborda a questão da formação psicanalítica de maneira particularmente original: estabelece um diálogo interdisciplinar entre a concepção freudiana de formação e as ideias dos filósofos Theodor Adorno e Hannah Arendt de que o processo de formação é algo da ordem da emancipação do sujeito em relação ao que recebe do Outro. Através desse diálogo, o autor procura fazer avançar a noção de transmissão da psicanálise evitando o confronto entre disciplinas já constituídas, das quais, na realidade, nenhuma consente em ceder à outra. Essa posição dialógica, segundo Barthes (1988), permite ao pesquisador criar um novo objeto, o texto. No caso, o texto de Rocha tem uma iluminação filosófica capaz de subverter os dogmas da discursividade obsessiva que impera nas instituições psicanalíticas.

Em "Psicanálise e clínica", a segunda janela, o leitor terá acesso a uma modalidade singular de exercício da terceira das profissões impossíveis, a psicanálise. Indubitavelmente, é digna de mérito a tentativa do autor de expor alguns casos e vinhetas clínicas em íntima consonância com uma variedade de temas - perda, luto, resiliência, trauma, corpo, narcisismo -, mesmo tendo afirmado que o relato clínico é uma tarefa "impossível". Um paradoxo perfeitamente admissível, quando se trata de refletir e pensar a transmissão da psicanálise. O tema das entrevistas preliminares, já desenvolvido com precisão no primeiro livro de Rocha, Entrevistas preliminares em psicanálise (2011), reaparece na apresentação de uma vinheta clínica. Por meio dela, o autor mostra o que considera ser a função principal dessas entrevistas: estabelecer um corte para transformar o sintoma em sintoma analítico no trabalho de retificação subjetiva do candidato à análise. Esse seria o único caminho possível para que o analisando chegue a se reconhecer como partícipe da situação geradora de sofrimento.

Na terceira janela, "Psicanálise: paternidade e mitos", Rocha mergulha nos estudos que abrangem a conexão entre psicanálise e cultura, sem perder de vista a importância vital de se manter muito próximo da clínica e da me-tapsicologia. Por esse motivo, a questão do pai em psicanálise aparece, em sua obra, articulada a materiais míticos e clínicos. Imediatamente o leitor identifica o alinhamento de Rocha à tese freudiana, exposta no "Projeto para uma psicologia científica", de que o destino do indivíduo não pode ser estudado fora da cultura em que está inserido. Nesse sentido, o livro oferece algumas reflexões importantes sobre o sujeito contemporâneo, que mostram o quanto o autor se mantém fiel às categorias psicanalíticas. É possível extrair das elaborações do conceito de compulsão à repetição, exposto minuciosamente neste segmento, elementos para uma crítica psicanalítica à cultura contemporânea. Nas entrelinhas do texto de Rocha não faltam recomendações ao leitor de procurar seguir o exemplo de Freud, um analista que jamais ignorou a política de seu tempo.

A importância da experiência interdisciplinar na obra de Rocha aparece com vigor na última janela do livro, "Psicanálise e arte". Destaco aqui um verso de Mario Quintana citado pelo autor, "Quem escreve poesia resgata um afogado", pois me remete ao próprio afogar da psicanálise, quando um analista se limita a aplicar conceitos psicanalíticos à literatura ou à arte propriamente dita. Na contramão dessa vertente, Rocha segue o conselho de Freud de "depor as armas" diante do artista e do escritor, e relança algumas questões a partir do que lhe é possível encontrar na arte, concebida como forma privilegiada de acesso ao inconsciente. Assim, o autor se inclina sobre a essência musical para traduzi-la em forma visível; toma a música como campo de investigação, enquanto textualidade, recurso que lhe permite dizer algo sobre o real que não alcança dizer com os elementos da teoria. Em termos de acréscimo à teoria psicanalítica, trata-se de um trabalho próximo ao real da clínica, momento em que o analista tem condições de fazer progredir a teoria. Nesse ponto, a expressão janela para o real, criada por Lacan para designar a fantasia que recobre o real inassimilável - aquilo que se traduz clinicamente através da angústia e do trauma -, seria ideal para distinguir entre a aplicação fantasmagórica da teoria à arte e a modalidade de leitura à letra, que visa possibilitar a emergência de um não dito. Não é em vão que, no último capítulo, Rocha se debruça sobre a questão do ciúme paranoico, maneira pela qual reivindica o interesse de seus leitores, psicanalistas e de outras áreas, pelo estabelecimento de relações inesperadas entre psicanálise, literatura e arte.

Para finalizar, retorno à problemática da transmissão, desta vez reiterando o fato de que a psicanálise detém a gloriosa apreensão do tempo, para fazer conviver passado e presente no mesmo lugar, o que assegura que o humano é impregnado pela "dívida simbólica" provinda das gerações precedentes. A defesa do autor pela noção freudiana de temporalidade psíquica na apresentação de seus casos clínicos e dos conceitos lacanianos de desejo do analista e de sujeito suposto saber resume de forma definitiva sua adesão à máxima de Goethe registrada por Freud em Totem e tabu: "Aquilo que herdaste de teus ancestrais, conquista para fazê-lo teu". Assim, ainda que de modo oblíquo, o livro se torna o retrato do desejo de Rocha de conjugar a complexidade psicanalítica à reescritura do que vêm a ser as noções psicanalíticas de transmissão, clínica e paternidade, e a seu percurso reflexivo dos estudos interdisciplinares entre a psicanálise e a arte.

 

Referências

Barthes, R. (1988). Jovens pesquisadores. In R. Barthes, O rumor da língua (M. Laranjeira, Trad., pp. 96-102). São Paulo: Brasilense.         [ Links ]

Rocha, F. (2011). Entrevistas preliminares em psicanálise. São Paulo: Casa da Palavra.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Betty Bernardo Fuks
Avenida Rui Barbosa, 500, ap. 602
22250-020 Rio de Janeiro, RJ
betty.fuks@gmail.com

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