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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2019

 

SUICÍDIO

 

O suicídio na era do espetáculo: a respeito dos massacres nas escolas

 

Suicide as part of the show: on school massacres

 

El suicidio en la era del espectáculo: sobre masacres escolares

 

Le suicide dans l'âge du spectacle: à propos des massacres dans les écoles

 

 

Augusta GerchmannI; Cesar Augusto AntunesII

IPsicóloga. Psicanalista. Membro titular, em função didática, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPdePA)
IIMédico. Psicanalista. Membro titular da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPdePA)

Correspondência

 

 


RESUMO

O texto aborda a problemática do suicídio a partir da aproximação conceituai entre o narcisismo e a segunda teoria pulsional, pulsão de vida e pulsão de morte. Procuramos aproximar a conduta suicida de comportamentos homicidas específicos, massacres em escolas em vários países, enquanto atitudes que aparentam ausência de fatores predisponentes religiosos ou ideológicos como causa ou justificativa para condutas extremamente cruéis. Consideramos estar vivendo em um momento social de intensa fragmentação, em que o coletivismo e o individualismo, em vez de se complementarem, tornam-se antagônicos. Em uma sociedade adversa, jovens confusos, com pais deslegitimados, buscam na espetaculização do ato uma forma de validação de sua existência. A ideia de diferenciar-se da massa, mesmo à custa da própria vida, narcisismo de morte em estado puro, encontra, nas mídias sociais, as razões de ser. O desejo de diferenciação, de deixar "neste mundo" a marca pessoal, aproxima o suicídio do homicídio midiático, seja pela transmissão do próprio ato suicida, seja por massacres que antecedem o ato de pôr fim à própria vida.

Palavras-chave: suicídio, espetáculo suicida, massacres em escolas, narcisismo de morte, consumo do ser


ABSTRACT

The text addresses the problem of suicide from a conceptual rapprochement between narcissism and the second drive theory, life drive and death drive. We seek to approximate suicidal conduct with specific homicidal behaviors: school massacres in various countries, as attitudes that appear to lack religious or ideological predisposing factors as the cause or justification for extremely cruel act. We consider ourselves to be living in a social moment of intense fragmentation where collectivism and individualism, instead of complementing each other, become antagonistic. In an adverse society, confused young people with disenfranchised parents seek in the making a show out of the act a way of validating their existence. To differ from the masses, even at the expense of their lives, death narcissism, in its pure state, finds its raison d'être on social media. The desire to differentiate, to leave an "imprint" in this world, brings suicide closer to news media homicide, either through the transmission of the suicidal act itself or through massacres that precede taking their own lives.

Keywords: suicide, suicidal spectacle, school massacres, death narcissism, consumption of being


RESUMEN

El texto aborda el problema del suicidio a partir de una aproximación conceptual entre narcisismo y la segunda teoría pulsional, la pulsión de la vida y la de la muerte. Buscamos aproximar la conducta suicida con comportamientos homicidas específicos: masacres en escuelas en varios países, como actitudes que parecen carecer de factores predisponentes religiosos o ideológicos como causa o justificación de una conducta extremadamente cruel. Consideramos que estamos viviendo en un momento social de intensa fragmentación donde el colectivismo y el individualismo, en lugar de complementarse, se vuelven antagónicos. En una sociedad adversa, jóvenes confundidos, con padres sin legitimación, buscan en el espectáculo del acto una forma de validar su existencia. Diferenciarse de las masas, incluso a expensas de sus vidas, el narcisismo de la muerte, en su estado puro, encuentra, en las redes sociales, su razón de ser. El deseo de diferenciarse, de dejar la "marca personal" en este mundo, acerca el suicidio al homicidio mediático, ya sea a través de la transmisión del acto suicida en sí mismo o mediante masacres que preceden el suicidio.

Palabras clave: suicidio, espectáculo suicida, masacres en escuelas, narcisismo de la muerte, consumo del ser


RÉSUMÉ

Le texte aborde la problématique du suicide en approchant le concept de narcissisme et la théorie de la seconde pulsion: pulsion de vie et pulsion de mort. On cherche à rapprocher les comportements suicidaires des comportements homicides spécifiques : massacres dans des écoles en plusieurs pays, qui sont vus comme des attitudes où l'absence de facteurs qui aient une prédisposition religieuse ou idéologique serait la cause ou la justification d'un comportement extrêmement cruel. On considère que nous vivons dans un moment social de fragmentation intense dont le collectivisme et l'individualisme, au lieu de se compléter, deviennent antagonistes. Dans une société adverse, des jeunes confus ayant des parents sans légitimité cherchent, en transformant l'acte en un spectacle, un moyen de valider leur existence. Pour se différencier des masses, même au détriment de leurs vies, le narcissisme de la mort, à l'état pur, trouve ses raisons d'être sur les médias sociaux. Le désir de se différencier, de laisser une marque personnelle "dans ce monde", rapproche le suicide de l'homicide médiatique, soit par la transmission de l'acte suicidaire lui-même, soit par des massacres qui précèdent l'acte de mettre fin à sa vie.

Mots-clés: suicide, spectacle suicidaire, massacres dans les écoles, narcissisme de la mort, consommation d'être


 

 

No futuro, todos terão 15 minutos de fama.

ANDY WARHOL

 

Introdução

Ao contemplarmos as manifestações do ser humano na sociedade contemporânea, não podemos evitar a reflexão de estarmos atravessando um período em que o tecido social, o conjunto de atitudes e ideias do ser em sociedade, se encontra de tal forma esgarçado que se aproxima rapidamente da possibilidade de ruptura e fragmentação. As atitudes e condutas humanas refletem expressões de intenso individualismo e indiferença para com o outro.

O ser assim constituído se apresenta mais como um eu do que como um sujeito. Suas normas carregam as marcas das regras próprias, e não das regras da sociedade. Leis do indivíduo, e não da comunidade, se expressam em relacionamentos narcísicos e não objetais. Importa mais o que se ganha do que o que se oferece, produzindo-se o que será chamado de cultura do narcisismo (Lasch, 1979) em uma sociedade do espetáculo (Debord, 1967/2003). Um eu não sujeito, não atravessado pelo recalque. Um eu que não construiu sua subjetividade, que não porta uma posição de sujeito da cultura, sentindo-se incapaz de interagir genuína e criativamente com o próximo.

Em um trabalho anterior, "O ódio primário e os processos de individualização" (Antunes & Gerchmann, 2019), ressaltamos a importância dos investimentos narcísico-objetais maternos para a ativação de uma pulsão de vida que se encontra em estado quiescente no recém-nascido. Graças a esses investimentos iniciais, a pulsão de vida vai capturando expressões de destruti-vidade primária através da ação específica e dando sentido a uma angústia sem representação - nas palavras de Winnicott (1974/1991), agonias primitivas.

Nosso intuito, naquele momento, era destacar a importância de conflitos entre forças conjuntivas e disruptivas na construção dos processos de identidade e individualização. Entretanto, essas mesmas expressões pulsionais, principalmente a individualização, vão desvelar o que há de mais primitivo e mortal no ser humano: a vontade de retornar ao mundo inorgânico. Dessa maneira, o investimento materno é condição indispensável para que haja a ligação de uma pulsão parcial, prazer de órgão, para a constituição de um eu narcísico, que será o arcabouço da identidade e representará, de fato, o último bastião contra as forças indomáveis, tanáticas, que buscam a fragmentação do ser. Esse investimento narcísico materno, que constrói o narcisismo inicial do bebê, produzindo os processos de identificação, se expressará por: "Sou igual à minha mãe, igual ao meu pai. Sou humano".

O passo seguinte, marcado pela frustração e o ódio ao objeto, causará uma ruptura na identificação com os objetos primários, enquanto processo necessário para a organização do indivíduo e da individualidade. Dependendo do grau e da força do investimento narcísico, esse procedimento poderá resultar numa individualização alienante, revelando então um narcisismo de morte, ou seja, a desobjetalização do outrora semelhante.

Em 1914, Freud resgata um conceito que até então era secundário em sua obra, o narcisismo, para torná-lo personagem central de uma teoria que renuncia a conceitos como pulsão de autoconservação e pulsão sexual em direção a um sistema falsamente binário, dividindo o aparelho psíquico em libido narcisista e libido objetal. Ressaltamos que Freud foi levado a essa conceituação por encontrar na clínica certas manifestações, como a reação terapêutica negativa e a compulsão à repetição, que puseram a terapêutica psicanalítica em dúvida. Ao estruturar o conceito de libido narcisista, ele procurava encontrar outro sentido para esses impasses terapêuticos. Dizia ele então que estruturas intensamente narcisistas não seriam capazes de estabelecer relações transferenciais e, portanto, não seriam estruturas acessíveis à psicanálise. No entanto, a solução engendrada não era de todo satisfatória a Freud, pois se aproximava muito de uma teoria monista. Somente em 1920, com Além do princípio do prazer e a percepção de duas forças pulsionais imbricadas - pulsão de vida e pulsão de morte -, Freud sente-se retornando aos trilhos de uma teoria binária. O narcisismo passa a ser uma expressão ligada a esses dois componentes, sincrônico/diacrônico, da pulsão (Green, 2010/2014).

A partir de 1983, André Green desenvolve uma aproximação entre o conceito de narcisismo e a segunda teoria pulsional de Freud. Segundo ele, haveria, de um lado, uma pulsão objetal e, de outro, uma pulsão narcísica, que se dividiria em narcisismo de vida e narcisismo de morte. Entendemos o narcisismo de vida como o desejo por um objeto semelhante ao eu, e portanto narcísico, e o narcisismo de morte como a ausência de um objeto, ou seja, o eu não carece de objeto, visando portanto a inércia pulsional.

 

O mundo narcísico e a sociedade do espetáculo

Desde muito cedo, Freud deixou claro que o drama humano ocorre em dois territórios: mundo interno, através da luta entre as pulsões de vida e as pulsões de morte, e mundo externo, através do mal-estar na cultura, desacordo entre o coletivo e o individual. Assim, podemos dizer que as lutas às quais nos referimos, entre os processos de identificação e os processos de individualização, vão se expressar na sociedade entre as tendências coletivistas, que dizem respeito a manifestações de repúdio às diferenças e abolição das hierarquias, e as forças que lhes são antagônicas, resultantes de um narcisismo secundário. Não nos parece casual que, na década de 1970, Lasch tenha identificado na sociedade ocidental condutas intensamente individualistas, como reação ao coletivismo das manifestações de maio de 1968.1 O autor denunciou o surgimento progressivo de um agir social que foi pouco a pouco se estruturando em condutas egoístas, possessivas e arrogantes, nas quais a posse e a ostentação rompiam com tudo que fora reivindicado nas revoltas de 68. Esses processos serão os indicadores do que ele vai designar como cultura do narcisismo.

Na mesma época, Guy Debord desenvolve a ideia de uma sociedade em que os meios de produção constroem, no interior do indivíduo, desejos constantemente renováveis por objetos transitórios, numa irrefreável acumulação de bens, produzindo em consequência mais frustração do que realização de desejos. A esse processo vai cunhar o nome de sociedade do espetáculo. Segundo o autor, "o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens" (1967/2003, p. 9). Nesse contexto,

o espetáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de toda vida humana, socialmente falando, como simples aparência. Mas a crítica que atinge a verdade do espetáculo descobre-o como a negação visível da vida; uma negação da vida que se tornou visível. (p. 11)

Parece-nos que esses conceitos, no mundo dos smartphones e das mídias sociais, são cada dia mais atuais. Quando juntamos as expressões do narcisismo secundário à necessidade, quase desumana, de ter seus 15 minutos de fama, encontramos as raízes de uma sociedade entregue à frustração, ao fracasso e ao desejo de não viver. Só existe lugar para vencedores.

Como, então, sobreviver em um mundo de vencedores? Como tolerar o fracasso e a frustração sem desistir? O desejo de não existir, passivo em sua essência, e o de dar fim à vida, ativo antes de tudo, poderão se articular com a era do espetáculo?

 

Sobre o suicídio

Freud faz uma breve digressão sobre o suicídio em 1910, mas faltam-lhe os argumentos que provavelmente acrescentaria depois de escrever "Luto e melancolia" (1917[1915]), Além do princípio do prazer (1920), "O problema econômico do masoquismo" (1924), "A cisão do eu no processo de defesa" (1940[1938]), e ainda o item "Teoria das pulsões", inserido em Compêndio de psicanálise (1940[1938]), publicado após sua morte. Por isso, no texto de 1910, questiona como se poderia submeter a poderosa pulsão de vida ao suicídio, se pelo auxílio de uma libido decepcionada ou pelo fato de o eu renunciar à afirmação de si mesmo por motivos intrínsecos ao eu.

Desejar morrer tem um significado distinto para cada ser humano que tenta o suicídio ou, antes, que tenta dar cabo de seu sofrimento. Esse fato revela-se como um roteiro que aprisiona e desorienta o ser alienado de si mesmo. Sem objeto e sem objetivo, a pulsão é pura força e intensidade, e a vontade de dar cabo dessa magnitude expressa um momento regressivo que remete ao desamparo inicial.

No caso de adolescentes, os recursos libidinais ainda incipientes não encontram representações suficientes para dar conta, através de sua criatividade, do labirinto de suas paixões extremas. Sendo um período predominantemente caracterizado por uma guerra no interior do ser, de neurônios versus hormônios, a história anterior, o período infantil desde a situação de nascimento, colabora em grande monta para que os recursos evoluídos do eu não consigam equilibrar uma balança que pende mais para a descarga em atos.

Baseando-nos principalmente em Green (2010/2014), acrescentamos a esses fatos que, no suicídio,

• a agressão, na maior parte das vezes, se dirige mais a outras pessoas do que ao indivíduo;

• a figura mais evocada no processo é o pai e sua autoridade;

• a ideação suicida se sustenta, predominantemente, mais em dar fim ao sofrimento do que à própria vida;

• o desejo é atacar o futuro, mais do que a vida presente.

Para Green, o suicídio é afetado pelo narcisismo - "daí a sensação de insuficiência, de fracasso, de desvalorização, e, em primeiro lugar, a perda da esperança de modificar a situação" (2010/2014, p. 131). Essas são expressões da pulsão de morte numa sociedade desesperançada.

Mesmo o que em nossa história parecia ser forças de construção - forças de vida -apresenta-se agora solapado, minado pelas forças de morte. Já não se coloca mais a alternativa revolucionária socialismo ou barbárie, descobre-se a barbárie nas células do socialismo. O mundo industrial não ousa mais celebrar sua expansão, inquieta-se antes com seus dejetos e se pergunta, como um personagem de Ionesco: "Como se livrar disto?", o que deve ser escutado: como se livrar dos homens, todos eles "dejetos" diante das exigências de qualquer máquina social que só quer gerar e se autorregular. (Pontalis, 1977/2005, p. 261)

Quando Freud desenvolve a ideia de melancolia, esclarece que o sujeito sabe que perdeu algo ou alguém, mas não o que perdeu neles, tornando a inibição melancólica enigmática, ao associar-se ao demasiado rebaixamento da autoestima e ao empobrecimento do eu. O extremo a que esse quadro chega é um delírio de tal insignificância que promove uma abolição da pulsão que faria o sujeito se apegar à vida (Freud, 1917[1915]/2010b).

Associando os quadros de melancolia ao masoquismo secundário, estudo que Benno Rosenberg desenvolve com profundidade, encontramos sentido para o que esse autor chamou de masoquismo mortífero, um masoquismo voltado contra o próprio eu, em que amor e ódio não são mais sentimentos relevantes; esse eu torna-se indiferente a ele mesmo e ao mundo. Uma vez que a melancolia está intimamente ligada a uma escolha narcisista do objeto, tingida pela intensa voracidade da fase oral sádica e canibalística, o objeto incorporado implica o investimento em si mesmo através do objeto. É como "investir-se a si mesmo no espelho do objeto". Quando ocorre a perda do objeto, o eu narcísico tem que desinvestir de si mesmo. Assim, "a melancolia experimenta a perda do objeto como uma perda de si, como um desin-vestimento narcisista de si" (Rosenberg, 1991/2003, p. 129).

Para Freud, o enigma da inclinação ao suicídio encontra no sadismo sua solução, quando a melancolia expressa a ausência de esperança. Nesse momento, o masoquismo primário, guardião da vida, silenciosamente se transforma em masoquismo mortífero.

Freud entende que não é possível abrigar ideias suicidas que não se façam acompanhar por impulsos homicidas, e que só podemos atribuir à intensidade do jogo de forças que uma intenção se torne um ato, pela absoluta desimbricação pulsional. Assim, tanto o eu quanto o objeto serão tratados com total indiferença.

No artigo "Sobre a psicogênese de um caso de homossexualidade feminina", Freud afirma:

Talvez ninguém encontre a energia psíquica para se matar se, primeiro, não estiver matando também um objeto com o qual se identificou e, em segundo lugar, se não estiver dirigindo contra si mesmo um desejo de morte que era voltado para outra pessoa. (1920/2011b, p. 136)

Segundo ele, no inconsciente dos vivos reside um pleno desejo de morte, também com relação a quem se ama.

Albert Camus diz: "Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia. ... Um homem sem esperança e consciente de sê-lo não pertence mais ao futuro" (1942/2019, pp. 19 e 42). Ao aproximarmos reflexões filosóficas de conceitos psicanalíticos, podemos pensar que, para o filósofo, mesmo quando a questão do suicídio implica um dilema de consciência, serão as expressões da pulsão de morte que decidirão o rumo que um homem sem esperança vai tomar.

 

Sobre a sociedade do espetáculo

É preciso ressaltar que a sociedade do espetáculo não é um espetáculo, pois carrega em seu interior todo o vazio de uma existência sem sentido.

Quando o pai goza demasiadamente de impor limites a uma criança, tornando-lhe presente esse incontornável corte, substitui a tarefa de transmitir a lei, comum a todos, pela satisfação de impor a sua única lei própria e provoca, consequentemente, a recusa da criança, mergulhada por sua vez na confusão de não poder distinguir a submissão à lei da submissão àquele que a impõe. (Lebrun, 2008, p. 30)

O narcisismo daquele que deveria ser o representante da autoridade, o transmissor dos limites necessários à vida em sociedade, se transforma em imagem autoritária de uma sociedade sem limites ao gozo. Quando alguém é ensinado, pelo discurso autoritário, a respeitar os mais velhos, percebe pelos atos que acompanham a preleção que o respeito aos pais não é sucedido pelo respeito aos filhos, aprende que a fala é vazia e que o que importa na relação assim constituída é "ganhar no grito". A partir de então, investe em uma conduta narcísica potencializada pela ausência da figura terceira, o direito de outrem. Ora, quando o narcisismo autoritário paterno se defronta com o narcisismo reativo dos filhos, as diferenças se desfazem e a encruzilhada edípica se revela com toda a força sinistra do herói grego, sabemos, pela história e pela mitologia, que algo vai perecer. Mas quem morre nesse encontro?

A resposta que nos ocorre é: quem morre é o recalque, o logos, a consciência e a vida em sociedade. Bion (1967/1988) adverte que a morte do direito do outro conduz a um tipo de pensar arrogante, expressão da pulsão de morte, acompanhado por curiosidade e estupidez. A sociedade resultante do encontro que não cede passagem ao outro, encontro trágico de dois narcisismos, constitui um individualismo patológico, em que a lei será flexível o suficiente para acomodar a vontade dos mais poderosos, uma sociedade narcísica e espetaculosa. Os discursos não se aterão às leis, mas sim à mídia, criando heróis e demônios.

A cultura do narcisismo (1979), de Lasch, é um daqueles livros que marcam época e que parecem mais atuais na medida em que os anos passam. Apoiado nos conceitos freudianos sobre o narcisismo, o autor aborda a transformação social caracterizada pelo fim da ideia de sociedade grupal e pelo nascimento do individualismo.

O individualismo e o fracasso dos ideais coletivistas do marxismo, na entrada do século XXI, vão agravar um comportamento egocêntrico marcado pelo consumismo, desfazendo a maior parte dos investimentos no semelhante. A busca por objetos de ostentação de um poder que não se tem na realidade carregará os indicativos de um mais-gozar, império do prazer voltado para a satisfação de órgão que prescinde do investimento amoroso, tornando obsoleto o reconhecimento do objeto necessário para a satisfação. O eu, intensamente investido, não deixa espaço para o sujeito. O objeto é então coisificado. Daí em diante, o eu se encontra alienado do objeto.

Numa sociedade narcisizada, as barreiras culturais que deveriam resguardar o princípio do prazer, levando em conta a realidade, são facilmente substituídas pelos mecanismos da Verleugnung, a clivagem do eu. Esse mecanismo, próprio da perversão, conduz ao que denominamos perversão generalizada (Antunes & Gerchmann, 2019), um comportamento caracterizado pela ausência de privacidade, de intimidade, pelo sentimento impiedoso de descarga ou de consumo do corpo alheio. Pensamos numa atitude tão distante do reconhecimento dos direitos e desejos do outro que, parafraseando Hannah Arendt, poderia ser chamada de sexo banal, em que a sexualidade é substituída pela descarga pulsional. Desse momento em diante, apresentam-se as expressões da pulsão de morte, infligindo dura derrota sobre as demandas da vida.

Comportamentos dessa ordem remetem ao que Debord chamou de sociedade do espetáculo, lugar onde o real cede espaço para imagens. Parecer é mais importante do que ser. "A cultura da imagem é o correlato essencial da estetização do eu, na medida em que a produção do brilhareco social se realiza fundamentalmente pelo esmero desmedido na constituição da imagem pela individualidade" (Birman, 2001, p. 167).

Numa realidade virtual atravessada pelas certezas que a perversão confere à percepção, as diferenças se desfazem, e tudo e todos se transformam em mercadorias. O ser, produto do mercado, tolamente acredita que ter de tudo é igual a ser para sempre. Nessa expressão máxima de uma sociedade de consumo, ator e espectador se confundem de tal maneira que aquele que acredita estar vendo é, ao mesmo tempo, visto por outro, num jogo de espelhos e espelhismo que tende ao infinito. Ao desfazer fronteiras e fundir ser e objeto, o sujeito desiste do princípio da constância e encontra o primeiro e derradeiro princípio, a inércia, acreditando ter encontrado o nirvana.

 

O suicídio espetaculoso

Numa rápida pesquisa na internet a respeito de massacres em ambientes públicos e escolas, podemos perceber que, na maioria dos casos, o desfecho de tão trágica ocorrência é o suicídio do agressor ou sua morte por reação policial. Um levantamento de tiroteios em escolas e universidades apontou que 70% dos atiradores eram menores de idade. Adam Lankford, professor de justiça criminal da Universidade do Alabama, diz: "Não há dúvida de que existe uma associação entre a cobertura da mídia, recebida por esses atiradores, e a probabilidade de eles agirem" (Basso, 2017).

A partir desse fato, observamos hoje em dia uma associação trágica entre suicídio e massacre em ambientes públicos e escolas. Em nosso ponto de vista, parece que a necessidade de destaque midiático, de ter seus 15 minutos de fama, aproxima essas duas expressões extremas das forças pulsionais destrutivas da conduta humana.

O eu fracamente constituído, em que o narcisismo primário mal consegue fazer frente às Drang internas da pulsão de morte, vai perceber as exigências de uma sociedade, aparentemente, de vencedores como um convite à desistência e à vontade de dar fim à vida. Ao mesmo tempo, o supereu, construído por ideais grandiosos e inatingíveis, também contribuirá para que o sujeito acredite piamente na sua incapacidade de obter sucesso. A esse indivíduo, parecerá que todos são exitosos e capazes; somente ele seria uma sucessão de fracassos sem fim. Como diz Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa (s.d.),

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

Assim, a descarga em ato, fruto das demandas internas relacionadas ao princípio da inércia, acreditará buscar um nirvana, o qual, na verdade, será a expressão mortal da desistência da procura pela felicidade. O indivíduo fará da frase "Quem nada quer nada perde" seu mantra preferido, confiando que uma vida ascética e humilde será guarida de seus desejos não satisfeitos. Entretanto, as forças da pulsão de morte, apossando-se do que resta da vontade de viver, vão sussurrar ao seu ouvido palavras sedutoras e destrutivas. Arrasado, o ser ouvirá o convite para pôr fim à sua vida através de um ato que lhe parecerá delirantemente heroico. Um último gesto, carregado de significado vão: "Que minha façanha sirva de modelo a toda a terra", dirá no derradeiro instante. Acreditará demonstrar valentia quando, de fato, estará batendo em retirada.

Esses jovens parecem não ter apreço pela vida, nem pela sua nem pela do outro. Não é o ódio que nutre sua conduta - porque o ódio e o amor são sentimentos de expressão objetal -, mas sim uma indiferença quase psicótica, uma desafetação pulsional que revela, sobretudo, a desistência das pulsões de vida de continuar lutando contra as forças desintegradoras da pulsão de morte, expressas na desobjetalização radical, de si mesmo e do outro.

Em seu âmago, encontramos traumas precoces, problemas sociais graves e distúrbios familiares, como abandono e violência. Entendemos que os processos identificatórios estruturantes, quando não auxiliam a elaborar o primitivamente vivido, provocam sentimentos de ser perseguido por imagos cruéis e lúbricas. Em determinado momento, esse jovem sente surgir uma força intensa, que o impele a atos impensados para tentar sair das trevas em que se encontra, para se ver finalmente distinguido pela força e coragem de acabar com uma vida mal vivida.

Uma vida que não foi possível ser reconhecida, investida, sucumbe ao fracasso e à melancolia. Por situar-se na sombra de um objeto ausente, o eu não pode passar ao estado de sujeito, pela falta ou fragilidade do outro. Observamos então as mais diversas manifestações desse luto não elaborado do eu, o qual se mostrará ressentido pelo extremo desamparo vivido. A falha no processo de subjetivação e a força do traumático promoverão, nesse eu, um autoengendramento sustentado pelo que Piera Aulagnier (1975/1993) chamou de pictograma do rechaço. Se o auxiliador alheio, o outro, falhou em promover a ação específica continuamente, ele vai ser percebido como não existente. Através da não apresentação do objeto auxiliador, o eu incipiente interpretará como sua a não existência.

Dar fim à vida quase sempre foi um ato constrangido e intensamente reprovado pela sociedade. O suicida retirava-se para seu isolamento terminal, em que envergonhadamente punha fim à vida.

Hoje em dia, observamos, estarrecidos, massacres escolares e percebemos o esforço de estudiosos, alarmados com esse fenômeno, de buscar um entendimento possível para tão recorrente atitude. Acreditamos haver uma associação entre os acontecimentos sociais recentes e a ascensão da sociedade de consumo, o aumento da violência, a intolerância com a frustração e o predomínio de uma sociedade narcísica sobre uma sociedade de relações objetais.

Uma vez que o olhar é o primeiro espelho em que o sujeito se vê, como estabelecer um narcisismo primário que seja o apoio da futura relação com o objeto quando o narcisismo do cuidador olha a si mesmo, e não a criança? Como esse sujeito vai se sustentar no mundo do espetáculo?

Catalina Bronstein assinala:

Em certos adolescentes muito perturbados, a morte pode ser o resultado final de uma ação urgente para se livrar de uma parte de si sentida como representante de características negativas (tal como agredir uma parte de seu corpo sentida como perversa ou má) e uma tentativa de silenciar vozes internas persecutorias que os atormentam. (2009, p. 283)

A questão torna-se perigosa quando o ato de olhar ao redor e ver-se não reconhecido entre seus "iguais" desencadeia absoluto desprezo pela vida, ressentimento por não se sentir como eles. Nesse contexto, é como sentir-se um fracassado num mundo de vitoriosos - sentimento de futilidade, de que não vale a pena viver se não puder ser visto. Como Winnicott pontua ao longo de sua obra, quando a criança não consegue ser reconhecida pelos pais, cria situações de maus-tratos a fim de se sentir existindo para eles. Isso porque, pior e mais mortal que o ódio, é a indiferença.

Os jovens que planejam massacres em escolas se justificam por meio dos mais variados motivos: foram maltratados pelos colegas, não foram suficientemente amados pelos pais, sofreram uma desilusão amorosa etc. Argumentos frágeis de pessoas frágeis. Sabemos que a falha, em primeira instância, reside num eu que não consegue dar conta de si mesmo na sociedade narcísica e espetaculosa.

Em um último esforço, ao que resta de pulsão ativa, juntam-se os aspectos destrutivos dirigidos ao outro, a indiferença por si e pelo objeto, para no derradeiro ato dar fim à vida, mas não sem antes tornar o gesto grandioso e midiático. Morrer num massacre destrói os que perdem a vida nesse acontecimento, mas não poupa os que sobrevivem para contar a história.

 

Referências

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Correspondência:
Augusta Gerchmann
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César Augusto Antunes
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cesaraugustoantunes@gmail.com

Recebido em 18/11/2019
Aceito em 17/12/2019

 

 

1 Movimento político apartidário que pregava a igualdade sexual. Teve início em Paris, inspirado na Revolução Cultural Chinesa de Mao Tsé-Tung.

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