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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.53 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2019

 

SUICÍDIO

 

O ser na escuridão: um estudo sobre o suicídio

 

Being in the darkness: a study on suicide

 

El ser en la oscuridad: un estudio sobre el suicidio

 

L'être dans l'obscurité: une étude sur le suicide

 

 

Alfredo Menotti Colucci

Membro efetivo e didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

Através de três fatos clínicos psicanalíticos, propõe-se a conjunção constante da mente suicida. O autor utiliza-se de pesquisa da gestação e do perinatal, em que estuda as condições da instalação da reverie de vida e do destino da pulsão de morte pela reverie de morte.

Palavras-chave: pulsão de morte, suicídio, reverie de vida, reverie de morte, traumas, ontogênese, filogênese


ABSTRACT

Through three psychoanalytical clinical facts, the constant conjunction of the suicidal mind is proposed. The author uses pregnancy and perinatal research where conditions for the installation of life reverie and the fate of death drive through death reverie are studied.

Keywords: death drive, suicide, life reverie, death reverie, trauma, ontogenesis and phylogenesis


RESUMEN

A través de tres eventos clínicos psicoanalíticos se propone la conjunción constante de la mente suicida. El autor utiliza la investigación de la gestación y del perinatal donde estudia las condiciones de la instalación de la reverie de vida y del destino de la pulsión de muerte por la reverie de muerte.

Palabras clave: pulsión de muerte, suicidio, reverie de vida, reverie de muerte, traumas, ontogénesis y filogénesis


RÉSUMÉ

On propose la conjonction constante de l'esprit suicidaire par l'intermédiaire de trois faits cliniques psychanalytiques. L'auteur se sert de recherches sur la grossesse et la périnatalité au moyen desquelles il étudie les conditions d'installation de la rêverie de vie et le sort de la pulsion de mort par la rêverie de mort.

Mots-clés: pulsion de mort, suicide, rêverie de vie, rêverie de mort, traumatisme, ontogenèse et phylogenèse


 

 

Introdução

Considero o suicídio um ato com característica individual. Cada suicídio tem seu momento histórico, suas condições sociais, seus traumas familiares e pessoais, mas há entre eles um denominador comum, que será objeto deste ensaio.

É um ato que mobiliza um envolvimento emocional e uma identificação inevitável que se sente diante de uma vivência suicida, pois estimula a atração que temos pela morte.

O analista, ao se identificar com o suicida, "pode interpretar a partir de vislumbres nebulosos, desde que esteja livre para se entregar a pesadelos e não estar confinado à pálida iluminação da luz do dia" (Bion, citado por Williams, 2018, p. 15).

A questão da identificação inevitável reveste o tema de grande reverência e hesitação - tema que é explorado de forma técnica e fria, ora colocando-se o peso sobre o indivíduo que se suicidou, ora sobre a família, ora sobre

Alfredo Menotti Colucci uma doença mental, a qual, responsabilizada pelo ato, amortece a vivência de angústia, criando uma omissão generalizada.

Na mitologia grega, o tema está presente, destacando-se o de Jocasta em Édipo rei e a cegueira (morte) de Édipo, antecedidos pelo ato filicida/homicida. Esse é o centro das reflexões que desenvolverei através de relatos, ou reconstruções, que chamo de fatos clínicos psicanalíticos.

No decorrer dos séculos, a religião assumiu o papel de reprimir o suicídio por meio da ideia de pecado mortal. Na Renascença, nasce o conflito: ser ou não ser. Ou, em outras palavras, ser ou preferir existir para não ser.

No século XIX, o suicídio é estudado por Émile Durkheim pelo vértice sociológico. O ser ou não ser é substituído pelas tensões sociais, as quais são vistas como motivos para que os suicídios aconteçam. Iniciam-se estudos estatísticos. Aproxima-se o suicídio de uma doença social.

No século XX, a ciência se apropria do estudo do suicídio. É quando a psiquiatria correlaciona estatisticamente que, no grupo de suicidas, predominam duas psicopatologias: a psicose bipolar e a esquizofrenia. É possível adicionar ao grupo suicida as adições, a obesidade mórbida (uma forma de morte lenta), os acidentes de trânsito, os modos de vida destrutivos e outros que ampliam as causas de suicídio.

Em 1910 ocorre na Sociedade Psicanalítica de Viena um simpósio sobre o suicídio no qual Stekel formula a frase: "Ninguém que nunca tenha sentido vontade de matar outra pessoa, ou pelo menos desejado a morte de outra pessoa, se mata" (citado por Alvarez, 1999, p. 111). Freud, cauteloso, propõe o aprofundamento do estudo relacionado ao luto e à melancolia, escrevendo em 1915 o texto que permanece atual até hoje.

Freud vive a destruição com a guerra de 1914-1918 e sente os efeitos da Revolução Russa de 1917. Em "Análise terminável e interminável" (1937/1984a), amplia a ideia do instinto de morte dentro do ser humano, que o conduz a resistir à saúde, ao progresso e ao bem-estar. Desde então, a compreensão e aceitação dessa força destrutiva passou tanto a ser questionada quanto investigada.

Entretanto, as teorias psicanalíticas sobre o suicídio mostram que o que leva uma pessoa ao suicídio são fatores no mínimo tão complexos quanto pouco convincentes.

Procurei neste ensaio valer-me de experiências suicidas para olhar a linha do tempo e ampliar o texto de Édipo Rei. Utilizarei três fatos clínicos psicanalíticos.

1. Alvarez foi ator e autor de uma tentativa de suicídio, e a narração dos fatos e sensações que viveu nos ajuda a levantar algumas hipóteses, uma vez que possamos usar suas vivências como um fato clínico psicanalítico.

Na quinta parte do livro O deus selvagem, Alvarez cunha uma expressão interessante para designar sua vivência suicida: deixar-se ir. Transcrevo para ser mais fiel às suas palavras:

Talvez foi por isso que depois de adulto, quando as coisas ficavam particularmente ruins, eu ficava repetindo vezes a fio para mim mesmo ... eu queria morrer, eu queria morrer. Era um eco do passado, que me unia à minha infância tempestuosa. Eu sussurrava essas palavras sem pensar, tão automaticamente como um padre católico recita seu rosário. Era o meu ritual mágico particular de espantar os demônios, um tique nervoso verbal. ... Euqueriamorrer. Euqueriamorrer. Euqueriamorrer. ... Até que um dia percebi o que estava dizendo. Eu estava caminhando ao longo de Hampstead Heath depois de uma típica briga doméstica e, de repente, ouvi a frase como que pela primeira vez. Parei de andar para prestar atenção nas palavras. Repeti a frase lentamente, ouvindo cada palavra. E percebi que estava falando sério. Parecia tão óbvio; era uma resposta que eu já sabia há anos e nunca tinha me permitido reconhecer. Não conseguia entender como eu podia ter sido tão burro por tanto tempo. ... Tinha entrado no mundo fechado do suicídio e minha vida estava sendo vivida à minha revelia por forças que eu não podia controlar. (1999, p. 262)

Foi quando, num dia de Natal, Alvarez atentou seriamente contra a própria vida. Ao ser internado, considerou-se sua sobrevivência pouco provável. Depois de dias lutando com a morte física, sobreviveu. Na noite do dia 30, quando já estava fora de perigo, teve dois sonhos, os quais me parecem paradigmáticos por mostrarem as forças destrutivas que continuavam dentro dele. Também é paradigmático que a tentativa de suicídio tenha ocorrido no dia de Natal, que simboliza o nascimento. Transcrevo esses dois sonhos, que só puderam ser sonhados pela vivência da morte, a qual mobilizou os traumas que estavam forcluídos desde o seu nascimento:

Eu estava dançando uma dança selvagem e frenética com a minha esposa, cheia de raiva e ameaças mútuas. Aos poucos, os movimentos foram se tornando cada vez mais violentos, até que cada nervo e cada músculo do meu corpo parecessem estar retesados e vibrando, como se estivessem ligados a alguma máquina elétrica cruel e desgovernada que fosse me dilacerando, pedaço por pedaço. Quando acordei, eu estava molhado de suor, mas meus dentes batiam, como se eu estivesse morrendo de frio. Tornei a adormecer quase imediatamente e tive outro sonho parecido: desta vez, eu estava sendo caçado; quando a criatura, ou fosse o que fosse, me agarrou, ela me sacudiu como um cachorro sacode um rato, e mais uma vez eu tive a sensação de que cada junta, cada nervo e cada músculo do meu corpo estavam se despedaçando violentamente. Quando despertei de todo, fiquei olhando para as cortinas, com os olhos arregalados, tremendo de medo. Senti ter experimentado nos meus sonhos a morte que me tinha sido negada no coma. ... Nunca me senti tão sozinho. ... A verdade é que, de alguma forma, eu tinha morrido. (pp. 270-274)

A experiência de Alvarez de viver a marca da morte e sobreviver permitiu o acesso a essas vivências primitivas.

2. O documentário Elena (Costa, 2012) narra a trajetória da vida de Elena Andrade até sua morte por suicídio. Por se tratar de uma história de vida, posso considerá-la, como fiz com os sonhos de Alvarez, um fato clínico psicanalítico.

A mãe de Elena, descrita como filha de uma tradicional família mineira, aos 16 anos mostra sua tristeza profunda num desenho. Encontra o pai de Elena, que, recém-chegado dos eua, traz em sua bagagem não as propostas americanas de um amor romântico, mas as ideias revolucionárias de Che Guevara. A jovem deixa o colégio de freiras aos 16 anos. Também faz uma tentativa de suicídio. A mãe é jornalista e socióloga por formação; o pai, político. Engravidam de Elena e atuam como revolucionários contra o regime militar. Muitos são mortos. A mãe, grávida de seis meses de Elena, é poupada. Petra Costa, diretora do documentário e irmã de Elena, pergunta: "Como será que esse tempo ficou na sua memória e no seu corpo?". Ou seja, seus exílios e a presença de um campo persecutório marcaram Elena de vivências de morte intra e extrauterinas.

Comparando essa experiência com os sonhos de Alvarez, podemos conjecturar que Elena vivenciou traumas de morte em níveis onto e filogené-ticos que não encontraram espaço onírico para serem elaborados.

3. Amplio com uma sessão trazida por uma supervisionanda. Eduardo, um garoto de 15 anos e o mais velho de três filhos, está na 8.ª série. Por ser frequentemente agredido pelo pai, mudou-se para a casa dos avós paternos. A mãe parece ser portadora de psicose bipolar, tendo já realizado várias tentativas de suicídio, uma delas por ocasião do nascimento de Eduardo, quando tentou jogar-se da janela da maternidade. Apresento essa sessão para mostrar, através da fala de Eduardo, o clima de morte e renascimento que foi vivido.

Num dia anterior, ele tinha colado vidros para um novo aquário. Entra e diz: "Coloquei água no aquário, e ele não vazou. Pus os filhotes de lebiste, mas, como a água ainda tinha cloro, morreram todos. Meu irmão é que me apressou a colocar logo os filhotes lá".

A seguir, começa a relatar como teve acesso ao armário do pai, onde descobriu um revólver, que "era uma arma boa, mas não tinha balas, servia para caçar animais racionais". Continua: "Eu não mato nem passarinho. Meu periquito morreu, mas não fui eu quem o matou... Eu tenho cada ideia louca! Um dia tomei os comprimidos da minha mãe, outro dia tomei uma garrafa de vinho e comprei um canivete".

A terapeuta sente o clima de desafio e procura não assustar-se com as provocações.

Tenho a arma aqui. Eu a trouxe para me dar coragem na rua. Mas não adiantou. Eu mostrei a arma para o meu irmão, e ele se assustou... Estou nervoso... Posso pegar a arma? Estou suando. [Tira a arma que está na cintura, presa ao cós da calça.] Preciso enxugá-la. Se enferrujar, meu pai me mata... A senhora não está com medo? [Fica enxugando a arma, passando-a de uma mão para a outra, mostrando-a.] Mulher tem medo de arma!

Eduardo pega a arma. A terapeuta se aproxima, põe a mão sobre a dele e diz: "Nós dois estamos nervosos, mas não é isso que você quer fazer, nem comigo nem com você. Você está assustado e eu também. Vamos guardar a arma".

Essas vivências só foram possíveis pelos laços de confiança construídos entre a terapeuta e Eduardo. O desfecho da situação corroborou a hipótese de que o desejo dele era mostrar o sofrimento e a marca do que estava vivendo. Hoje é um rapaz saudável, casado e com uma profissão estabelecida.

Eduardo, com a dramatização, testa a capacidade da terapeuta de viver a função-pai (Colucci, 1997), isto é, de conter a pulsão que o conduz ao nada (Bion, 1965), uma vez que não encontrou reverie no ambiente doméstico. Eduardo dramatizou a vivência do vazio da morte. Com isso, pôde reeditar seu trauma e reencontrar a vida.

Criou-se um vínculo que permitiu conter esse retorno ao nada, introduzindo-o numa relação de crescimento graças à possibilidade de encontrar um continente de reverie de morte.

 

Considerações

Em "Traços arcaicos e infantilismo do sonho", Freud afirma:

A pré-história à qual a elaboração onírica nos faz retroceder é de duas espécies - de um lado, a pré-história do indivíduo, a infância; de outro lado, na medida em que cada indivíduo de alguma maneira recapitula, de forma abreviada, todo o desenvolvimento da espécie humana, também a pré-história filogenética. (1916[1915]/1984d, p. 182)

Freud insiste, construindo uma hipótese especulativa em "Neuroses de transferência":

Onde conta o fator constitucional da fixação, não está com isso posta de lado a aquisição (herdada); esta retrocede apenas a uma época prévia mais remota, já que se pode afirmar com justeza que as disposições herdadas são restos da aquisição dos antepassados. Com isso, esbarra-se no problema da disposição filogenética por trás da disposição individual ou ontogenética, e pode-se não achar nenhuma contradição se o indivíduo acrescenta à sua disposição herdada novas disposições a partir de (sua) própria vivência. (1915/1987, p. 5)

Esse rascunho de Freud, por conter apenas especulações (que chamaremos de hipóteses abdutivas), não é incorporado em suas obras completas, embora seja importante para a compreensão das neuroses, além de complementar seus trabalhos metapsicológicos. Sua hipótese de que as experiências ambientais das quais resultaram traços e marcas no self são transmitidas às gerações seguintes é o objeto deste meu texto. Essa hipótese de Freud é estranha para a ciência da época, em que predominam as ideias evolucionistas de Darwin. Entretanto, Freud e Ferenczi a mantêm. O primeiro em Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci (1910/1984e), "Construções em análise" (1937/1984b) e Moisés e o monoteísmo (1939/1984c). O segundo em Thalassa (1924/1990) e "A criança mal acolhida e sua pulsão de morte" (1929/1992), em que encontramos essa hipótese formulada de maneira útil para os argumentos deste texto. Com essa hipótese, amplia-se o domínio do inconsciente como o portador das experiências de desenvolvimento e evolução do homem. O estudo dos pictogramas e dos desenhos rupestres, modo de representação das experiências de comunicação primitivas, e de seus próximos passos, o ideograma e o fonograma, mostra que o inconsciente evolui nas gerações em sua capacidade de organizar por afinidade as vivências em direção a um pensamento, superando o individual, tanto no espaço como no tempo.

Alvarez, com seus sonhos, abre um campo de estudo para além da proposta de Freud da realização de desejos, entendendo-os também como uma forma de diminuir a intensidade das tensões produzidas por traumas muito precoces. Há um disfarce dos conflitos infantis reprimidos pelo trabalho do sonho (Bion, 1996).

Os traumas procuram se reeditar para serem elaborados, e só podem vir à luz diante da reativação desses traumas de vivência de morte, como mostram as estatísticas de tentativas de suicídio, das quais somente poucas chegam ao óbito. Isso permite dizer que a reativação da vivência de morte é importante. Podemos pensar que choques insulínicos, choques elétricos, cardiazol e outros foram usados empiricamente como produtores dessa vivência de morte e como medidas heroicas preventivas de suicídios.

Sabemos hoje no estudo do psiquismo fetal que vivências de morte estão presentes desde a fecundação. A gravidez é um caldo de cultura em que se amplificam as pulsões de vida e de morte. Soma-se a isso o fato de que, desde o início, o ovo, o embrião e o feto percorrem um trajeto tortuoso, com vivências de intensidades e qualidades infinitas de vida e morte. Quando essas vivências de morte não são capazes de ser metabolizadas (Colucci et al., 2006), permanecem em estado original (marcas ontogenéticas) e, pela intensidade, provocam dificuldades na organização e na evolução do desenvolvimento mental.

Podemos usar como modelo uma lesão no sistema nervoso central durante a gestação, e/ou no parto, que compromete o desenvolvimento. O ser vivo, em particular o humano, tem uma história filogenética de centenas de milhares de anos. Esse acervo contém vivências de morte, mas também a capacidade para se reconstruir.

Em outras palavras, ao anular o contínuo (cesura) na ausência da função - pai, instala-se um processo de experiências primitivas que se expressam bidimensionalmente e psicossomaticamente. Pelas características não simbólicas, não são possíveis de serem interpretadas como evoluídas e com capacidade interpretante. São antes uma marca ou traços como tatuagens, sem possibilidade de evolução, resultado de situações traumáticas no desenvolvimento do bebê, desde sua fecundação. Somente se expressam, e não há transformação e evolução, a não ser que na relação analítica se possa organizar uma fronteira, como se processa com o bebê, permitindo-se uma vivência de reverie com a mãe à custa da função-pai do terapeuta.

Podemos dizer que na situação analítica, guardada sua especificidade, o par deve encontrar as condições propícias para que uma unidade se estabeleça, permitindo-se que na fala ou no silêncio aflore aquilo que não consegue de outro modo se expressar, e que o presente assuma a proeminência sobre as imposições do passado e sobre as inseguranças futuras, superando as separações, frequentes no trabalho analítico.

Qual seria a configuração mental para compreender a vivência de Alvarez antes descrita? Como ele diz, havia consciência da presença da morte desde sempre em sua vida, não apenas como uma percepção fraca, mas como uma sensação forte. Ao se aproximar de Sylvia Plath,1 mostra que o vínculo entre os dois se dava pela morte:

Ela falava sobre suicídio assim como falava de qualquer outra atividade arriscada ou custosa: com urgência, talvez até com ânsia, mas sem um pingo de autopiedade. Parecia ver a morte como um desafio físico que havia, mais uma vez, superado. (Alvarez, 1999, p. 32)

Ambos têm uma forma de pensar repetitivamente que podemos chamar de pensamento circular, e que identificamos como uma mente bidimensional, e num tempo circular. Em outras palavras, há uma mente com funcionamento binário, semelhante ao do computador: apenas dois dígitos, 0 e 1.

Ele se descreve como narcisista. Narciso se via no espelho d'água, no plano, e com o pensamento circular de só buscar a sua imagem. Ao dizer "Euqueriamorrer", Alvarez expressa esse pensamento bidimensional. Colucci e Silveira (2009) estudam a relação mãe-bebê na constituição mental narcisista.

Freud nos ensinou que, na possibilidade suicida, há também um componente masoquista; que, com a "perda" (um motivo ínfimo), forma-se uma configuração que poderia ser expressa pela conjunção constante: narcisismo (pensamento binário) + masoquismo (agressão contra si) + perda (dor mental).

Usando o eclipse solar ou lunar como modelo, podemos dizer que, na condição mental, a conjunção produz uma escuridão em que a morte presente pode ser atuada. Ou, então, minimiza-se essa pulsão de morte através da continência da função-pai (Bion, 1996; Colucci 1997).

Pode-se ter uma ideia da intensidade desse processo através do fenômeno couvade, no qual o pai, por sua função-pai, absorve e metaboliza somaticamente, de forma dramática, a angústia de morte, permitindo parcialmente sua elaboração. Soma-se a isso o reviver do próprio nascimento, em que se mobilizam emoções primitivas, sendo necessário que alguém as assuma, evitando que o útero funcione como uma caixa de ressonância das vivências pré e neonatais ou assumindo os riscos dessa falta.

Temos dois pontos a refletir.

1. Como ter acesso às marcas filo-ontogenéticas.

De modo distinto acontece com o objeto psíquico, cuja pré-história o analista quer estabelecer. Aqui se alcança de maneira regular o que no objeto arqueológico só ocorre em felizes casos excepcionais, como os de Pompeia e da tumba de Tutancâmon. Todo o essencial se conservou, inclusive o que parece esquecido por completo; ainda está presente de algum modo e em alguma parte, mas soterrado, inacessível ao indivíduo. Como se sabe, é lícito pôr em dúvida que uma formação psíquica qualquer possa realmente sofrer uma destruição total. É só uma questão de técnica analítica que se consiga ou não trazer à luz de maneira completa o escondido. (Freud, 1937/1984b, pp. 261-262)

Para trazer à luz essas marcas, usamos a imagem do palimpsesto, em que a passagem por várias deposições permite realizar a leitura em três níveis: da realidade presente, da ontogenética e da filogenética. Desses vértices, pode-se aproximar a mente de sua "verdade", objeto da psicanálise, permitindo-se a construção analítica da identidade do analisando (Colucci & Woiler, 2014).

2. Como adquirir as representações e os significados.

O contato com o potencial suicida exige a ideia de Bion mencionada no início: podemos interpretar a partir de vislumbres nebulosos, desde que estejamos livres para nos entregar a pesadelos e não estar confinados à pálida iluminação da luz do dia. Ou seja, para as vivências de morte, Bion propõe o que chamei de função-pai. Em outras palavras, nos deixarmos levar pela angústia na relação e, na escuridão do fundo do poço, tentar dar significado às angústias vividas precocemente e não significadas do analisando. Essas são as hipóteses que deixo para a reflexão.

 

Referências

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Correspondência:
Alfredo Menotti Colucci
Rua Jesus Montolar Pellisel, 940/03
17519-211 Marília, SP
Tel.: 14 4313- 9343
dr.acolucci@gmail.com

Recebido em 29/10/2019
Aceito em 3/12/2019

 

 

1 "Fiz novamente/ Uma vez a cada dez anos/ Chego lá -/ Uma espécie de milagre ambulante .../ Tenho só trinta anos/ E como o gato tenho nove vidas para morrer" (Plath, citada por Alvarez, 1999, p. 32).

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