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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.3 São Paulo jul./set. 2020

 

PANDEMIA

 

A psicanálise dos sonhos durante a pandemia

 

The psychoanalysis of dreams during the pandemic

 

El psicoanálisis de los sueños durante la pandemia

 

La psychanalyse des rêves pendant la pandémie

 

 

Barbosa Coutinho

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Psicanalítica de Fortaleza (SPFOR)

Correspondência

 

 


RESUMO

O artigo traz relatos de sonhos de pacientes em análise, ou não, durante a pandemia. Apresenta a interpretação de sonhos da pandemia de covid-19, segundo o modelo clássico da interpretação psicanalítica de sonhos, e destaca a simbolização como recurso desse tipo de interpretação.

Palavras-chave: sonhos, restos diurnos, sonhos típicos, desejo, inconsciente


ABSTRACT

Dreams reports of patients being analyzed, or not, during the pandemic. Dreams interpretation of the covid-19 pandemic, according to the classic model of psychoanalytic dreams interpretation. Symbolization as a resource for psychoanalytic interpretation of dreams.

Keywords: dreams, daytime remains, typical dreams, desire, unconscious


RESUMEN

Informes de los sueños de los pacientes analizados o no durante la pandemia. Interpretación de los sueños de la pandemia de covid-19, según el modelo clásico de interpretación de los sueños psicoanalíticos. Simbolización, como recurso para la interpretación psicoanalítica de los sueños.

Palabras clave: sueños, restos diurnos, sueños típicos, deseo, inconsciente


RÉSUMÉ

Rapports de rêves de patients analysés ou non pendant la pandémie. Interprétation onirique de la pandémie de covid-19, selon le modèle classique de l'interprétation psychanalytique des rêves. Symbolisation comme ressource pour l'interprétation des rêves.

Mots-clés: rêves, restes diurnes, rêves typiques, désir, inconscient


 

 

O que dizer de sonhos, cujos restos diurnos surpreendem a teoria psicanalítica, na medida em que estes sempre são da vivência própria do sonhador, nunca se mostrando iguais aos de um outro qualquer, agora que os sonhos estão sobre um mesmo solo, onde os "empresários" - os restos diurnos - são iguais para todos, já que são sonhos sonhados durante a pandemia de covid-19, que como fenômeno universal implica a todos os sonhadores?

No início do isolamento imposto pela covid-19, li em jornais sonhos de leitores que estavam em quarentena. O que me surpreendeu, à primeira vista, foi exatamente a uniformidade dos restos diurnos nos sonhos relatados, muito embora tal fato não fosse uma novidade, pois tenho conhecimento de sonhos documentados em livros, relatados por aqueles que sofreram os horrores do Holocausto, de guerras, de terremotos e mesmo de outras pandemias no passado. Na recente tragédia brasileira de Brumadinho, crianças sonhavam e desenhavam as angústias sofridas com o desastre. Recordo o sonho de uma criança que jogava futebol num campo enlameado; por mais que chutasse, a bola não se movia.

Quando recentemente, durante a atual pandemia, retornei ao atendimento online de pacientes em análise, percebi nos relatos dos sonhos a mesma constância de material abundantemente relacionado à covid-19. Entretanto, nesses casos, o tema do isolamento e o medo da doença que aparecia no relato do sonho não se encaixavam nas associações livres do sonhador. Quase sempre a referência ao vírus era secundária na construção do pensamento do sonho, e nem mesmo fazia parte das associações do dia. Foi uma avaliação apressada desconfiar da importância e sobretudo da natureza dos restos diurnos na construção de sonhos. Com certeza, não há contradição alguma entre os sonhos durante a pandemia e a teoria tradicional dos sonhos trazida pela psicanálise.

Para desfazer o primeiro impacto dos "sonhos sem restos diurnos" - aqueles sem participação das associações do sonhador, mas em cujo relato havia invariavelmente imagens relacionadas à pandemia - foi preciso estabelecer uma distinção entre sonhos sem a participação do sonhador, para os quais a interpretação psicanalítica usa o recurso da simbologia, e sonhos com a participação do sonhador, exatamente aqueles cujos restos diurnos serão conectados com o produto onírico manifesto.

Para Freud, nenhum sonho tem garantida uma interpretação psicanalítica correta se não contar com a colaboração do sonhador. Essa tarefa, quando bem executada, quase dispensa saber que desejo inconsciente foi realizado no sonho. De fato, estabelecer as vinculações entre acontecimentos do estado de vigília e o sonho relatado é meio caminho andado - exagero à parte, tanto na minimização da centralidade do desejo inconsciente, que dispensa comentários, quanto no que se refere à colaboração das associações ao sonho, uma vez que Freud irá destacar e validar, a partir da edição de 1914 de A interpretação dos sonhos, os símbolos e os simbolismos dos sonhos.

Ainda sobre os desejos inconscientes nos sonhos, é bom dizer que sonhos são a "via régia para o inconsciente", mas seria um erro grosseiro imaginá-los como o inconsciente a céu aberto. Sonhos são claramente um relato consciente. O que vem a ser o inconsciente do sonho há de ser encontrado no trabalho do sonho, depois do longo trajeto de desvelamento dos elementos do sonho, do pensamento do sonho, que a censura se encarregou de modificar, através dos deslocamentos de afetos para as representações secundárias, ou da condensação de múltiplos elementos psíquicos em uma só imagem, ou ainda de regressões tópicas ou funcionais, sem esquecer as artimanhas da censura onírica de apresentar cenas ao contrário. Os frenéticos movimentos da cena primária no sonho do Homem dos Lobos aparecem nesta imagem: as janelas se abriam "lentamente".

As leis que Freud estabeleceu para traduzir o sentido dos sonhos não lhe chegaram sem que antes ele houvesse traduzido o sentido dos sintomas neuróticos, quase usando o mesmo método. É bom lembrar que foram as pacientes histéricas que deram a Freud o caminho que lhe permitiu associar seus sintomas aos traumas sexuais da sedução. O sonhador, com suas lembranças em vigília, tal qual as histéricas, dá o roteiro para a tradução dos pensamentos dos sonhos. Acrescento ainda, com o mesmo propósito pretensioso de destacar a história do desenvolvimento dos conceitos freudianos, que Hans é o teórico de Freud, como nos lembra Laplanche. Com o complexo de castração em Hans, Freud desvenda o enigma das diferenças de sexo. Vem também de Hans ("Análise de uma fobia em um menino de cinco anos") a inspiração para o texto "Sobre as teorias sexuais das crianças".

Voltando ao tema e novamente aos restos diurnos: qual ou quais preocupações do dia anterior produzirão um sonho? Na metáfora econômica de Freud, qual será o "empreendedor" do sonho? Mantendo ainda essa metáfora, de onde virá o "capital" sem o que o empreendimento de sonhar não se realiza? Do desejo sexual inconsciente não realizado, dirá Freud nas primeiras edições do livro dos sonhos.

Em desenvolvimentos posteriores da teoria freudiana, essa exclusividade de ser um desejo sexual perde força para desejos de qualquer natureza. Questão polêmica, talvez inconsistente - afinal, é sobre as representações sexuais que o recalque incide. Mesmo nos sonhos de criança, os chamados sonhos inteligíveis, sonhos em que o desejo se confunde com a necessidade, as excitações pulsionais não podem ser afastadas.

Reforço o que já se sabe: os elementos do dia são encontrados no relato do sonho, e as associações livres do sonhador estarão sempre em conexão com o desejo inconsciente que se realiza no sonho. Os restos diurnos nas associações do sonhador nem sempre se ligam a preocupações fundamentais, preferindo às vezes articular-se com lembranças aparentemente banais.

Os relatos de sonhos durante a pandemia de covid-19, publicados em jornais, não garantem que o indutor do sonho seja verdadeiramente a pandemia. Os restos diurnos são tanto externos ao sonho, pois fazem parte dos pensamentos e circunstâncias da vida em vigília, quanto internos, pois compõem o relato do sonho.

Numa ocasião, foram apresentados a Freud os sonhos de Descartes, que tinha por hábito documentá-los. Freud, contudo, alegou a impossibilidade de interpretação daqueles sonhos, por não ter como acessar as associações do sonhador. Esse é um princípio canônico que se abre em possibilidades mais flexíveis quando, como já disse, Freud, na edição de 1914 do livro dos sonhos, faz ampla defesa da importância da interpretação com os recursos do simbolismo nos sonhos.

A interpretação simbólica dos sonhos, segundo Lacan, estaria totalmente ausente na primeira edição do livro dos sonhos (1900). Entretanto, em desacordo com Lacan, entendo, com auxílio de Laplanche, que mesmo na edição de 1900 o caminho do simbolismo nos sonhos está traçado, sendo confirmado pelos assim considerados "sonhos típicos". Na edição de 1900, dois sonhos são detalhados como típicos: os de nudez e os de morte de pessoas queridas. Freud reduz ambos ao papel das fantasias infantis. Os sonhos de nudez indicam o exibicionismo da criança frente aos adultos, enquanto nos de morte de familiares, como se sabe, foi onde a teoria freudiana, pela primeira vez, estabeleceu o Édipo como estrutura universal. Os sonhos de morte de pessoas queridas vividos sem angústia indicam que o conteúdo do sonho não tem o sentido do sonho relatado, enquanto os vividos com angústia são universalidades das fantasias infantis de desejo de morte do irmãozinho recém-nascido, ou principalmente das múltiplas variâncias dos desejos edípicos. Segundo Freud, sonhos que representam a morte de um parente amado, e são acompanhados de afetos dolorosos, têm o sentido de seu conteúdo, traem o desejo de ver morrer a pessoa amada.

Para finalizar, apresento sonhos publicados pela imprensa, sem as associações necessárias do sonhador, e sonhos com associações livres do sonhador, cuja divulgação foi devidamente autorizada pelos pacientes em análise, com os cuidados de sigilo e preservação de identidade. Antes, porém, gostaria de recordar e corrigir mais uma vez a impressão apressada de estranheza, do início do trabalho, diante de sonhos com restos diurnos iguais. Constatei, em grande número de casos, referências à covid-19 no relato do sonho, mas os restos diurnos eram variados e circunstanciais. Por fazer a seguir uma interpretação exclusivamente simbólica de alguns sonhos, gostaria de lembrar que, para Freud, os sonhos típicos estão de acordo com sua teoria central, como realizações de desejos. De acordo com Freud, os desejos recalcados dos pensamentos dos sonhos de morte de pessoas queridas escapam da censura e aparecem sem qualquer mudança. Duas hipóteses para esses sonhos: ou a censura estaria desarmada para tamanha monstruosidade em nós, ou então, segundo Freud, esses desejos recalcados, de cuja existência não suspeitamos, associam-se com restos diurnos sob a forma de preocupações com a vida da pessoa amada.

Eu, minha irmã e algumas pessoas estávamos a bordo da SpaceX, para ir morar na Lua e fugir do coronavírus. No meio do caminho, tivemos que voltar para a Terra, mas conseguimos ir para a Lua de novo usando a Apolo 11. A parte boa é que na segunda viagem conseguimos levar minha mãe. E todos ficamos morando na Lua para escapar do coronavírus. (Mantovani et al., 2020)

Parece um sonho de criança, onde o desejo se expressa sem censura. O conflito edípico está naquilo que diz ser a parte boa do sonho. Há relutância em levar a mãe. Ela só vai na segunda viagem.

Existiam alguns monstros. Minhas amigas e eu tínhamos que fugir deles. Pegávamos um carro bem antigo e íamos para a estrada. Tínhamos uma sensação de felicidade por viajar, porém estávamos fugindo do monstro, e acabávamos chegando onde mora minha mãe. Fomos ao restaurante, mas o monstro estava lá. (Mantovani et al., 2020)

Um sonho típico. Nenhum veículo é tão antigo para um indivíduo quanto suas primeiras experiências afetivas e pulsionais. A casa onde mora a mãe pode ser também onde mora o pai. Se for, por que foi excluído? O monstro do qual fugia, que impede a felicidade, seria um símbolo do pai, um objeto do desejo edípico, monstruoso?

A covid-19 foi espalhada pela carne que as pessoas estavam comendo, e eu estava testando tudo antes de comer. Também tentava impedir as pessoas de comerem carne quando sabia que estava contaminada. (Mantovani et al., 2020)

Esse sonho tem uma carga de condensação e deslocamento que torna difícil a interpretação por simbolização. De qualquer modo, pergunto, o medo da contaminação do corpo pela covid-19, por si só, produziria um sonho? Ou, ampliando o questionamento e fazendo dele minha interpretação, não será do corpo sexualizado, "contaminado", que verdadeiramente esse sonho está falando?

Sonhei que estava com você numa calçada de rua movimentada, mas que estava sem movimento por causa da quarentena. Ambos faziam cocô, lado a lado. Eu ficava com dúvidas de como ia levantar as calças. Fico com dificuldades de me recompor. Você vestia as calças com mais desenvoltura.

Esse sonho tem a marca da pandemia no relato. A censura pouco fez para deformá-lo. As associações do paciente confirmaram a natureza homossexual do sonho. Ele se lembrou de um filme que tinha visto na noite do sonho. Um professor que tem um caso homossexual com o aluno. Destaco, como ação da censura, "levantar as calças", em vez de "abaixar". No sonho, a solidão da rua sem movimento facilita a execução do desejo homossexual, praticado com desenvoltura por mim, e com dificuldade de se recompor por ele.

Eu encontrava um amigo. Ele me dava uma espada, para me proteger da covid. A espada era muito grande. Eu pensava em dá-la para meu neto.

Nas associações, o paciente lembra que tem uma coleção de espadas e que no dia anterior ao sonho contou para o neto, pelo telefone, histórias de lendas do rei Artur. Esse paciente teve grave crise de pânico no início do isolamento, e viveu situações quase delirantes de que tinha a doença e que havia contaminado a família. Penso que o presente, a "espada", é um claro símbolo fálico e aponta na direção da cura, da superação da castração, condição regressiva fortemente vivida com o pânico da doença viral. Não podemos confundir sonhos com sintomas. Eles não servem como critério para a avaliação de resultados terapêuticos. Essa advertência é de Freud. Mas o sonho de Hans em que ele afirma para o pai que à noite um bombeiro trocou os canos do vaso sanitário, Freud toma como sinal da superação da castração. Nesse sonho de curta duração, fico com a impressão de que o paciente já tem sua espada garantida, e agora seu desejo é transferir para o neto a espada grande que ele já tem.

 

Referências

Freud, S. (1972). A interpretação dos sonhos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vols. 4-5). Imago.         [ Links ]

Laplanche, J. (1988). Castração, simbolizações (A. Cabral, Trad.). Martins Fontes.         [ Links ]

Laplanche, J. (1992). O inconsciente e o id (A. Cabral, Trad.). Martins Fontes.         [ Links ]

Laplanche, J. (1998). A angústia (A. Cabral, Trad.). Martins Fontes.         [ Links ]

Mantovani, F., Benevides, B., Perassolo, J., Alonso, L. & Ferrado, M. (2020, 13 de junho). Monstros, fuga para a Lua, pazes com o ex: sonhos revelam efeito da pandemia sobre mente humana. Folha de S. Paulo. https://bit.ly/3lvvvQs        [ Links ]

 

 

Correspondência:
Barbosa Coutinho
Rua Frei Mansueto, 777, ap. 902
60175-070 Fortaleza, CE
Tel.: 85 99991-8243
barbosacoutinho11@gmail.com

Recebido em 20/7/2020
Aceito em 22/9/2020

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