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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.55 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2021

 

REFLEXÕES TEÓRICO-CLÍNICAS

 

Poderá não haver poetas; mas sempre haverá poesia

 

There may be no poets, but there will always be poetry

 

Podrá no haber poetas; pero siempre habrá poesia

 

Peut-être il n'y aura plus de poètes, mais il y aura toujours de la poésie

 

 

Marta Úrsula Lambrecht

Membro efetivo e didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Analista de crianças e adolescentes. Jundiaí / artaursula@gmail.com

 

 


RESUMO

Diante dos impactos da pandemia, a autora reflete sobre invasores impiedosos e invisíveis que penetram com veemente violência, como as cenas do inconsciente não recalcado, da mais tenra infância, que deixam restos de memória celular que se configuram como traumatismos internos e costumam se manifestar em face de traumas externos, como notaremos na clínica comentada no texto. O conceito de nachtraglich, entendido como o efeito retardado de uma lembrança traumática, fundamenta este escrito. Ilustrações clínicas de atendimentos pontuais de escuta psicanalítica por videochamada são apresentadas, a fim de abordar a vital importância, para sua sustentação, do setting interno do analista.

Palavras-chave: après-coup, setting interno, escuta psicanalítica, videochamada


ABSTRACT

Due to the impact caused by the pandemic, the author reflects on the merciless and invisible invaders that come violently, as the scenes from the nonsuppressed unconscious, from the early childhood - the ones left in cellular memories that are classified as internal traumas and commonly manifest when external trauma happens, as we will notice in the clinical comments in the text. The nachtraglich concept, understood as late effect from a traumatic memory is the bases for this writing. To support this idea, certain specific counseling examples are given, as the ones done by video call, in order to show the vital importance of the analyst's internal setting.

Keywords: après-coup, internal setting, psychoanalytic, listening, video call


RESUMEN

Frente a los impactos de la pandemia, el autor reflexiona sobre los invasores despiadados e invisibles que penetran con vehemente violencia, como las escenas del inconsciente no reprimido de la tierna infancia que dejan restos de memoria celular que se configuran como traumas internos y generalmente se manifiestan frente a traumas externos, como notaremos en la clínica comentada en el texto. El concepto de nachtraglich, entendido como el efecto retardado de un recuerdo traumático, subyace a este escrito. Se presentan ilustraciones clínicas de consultas puntuales de escucha psicoanalítica por videollamada con la finalidad de abordar la vital importancia que le otorga el encuadre interno del analista.

Palabras clave: après-coup, encuadre interno, escucha psicoanalítica, videollamada.


RÉSUMÉ

En face des impacts de la pandémie, cette auteure réfléchit sur les envahisseurs impitoyables et invisibles qui s'introduisent d'une façon impétueuse et violente, comme dans les scènes de l'inconscient non refoulé, celles de la toute petite enfance, lesquelles laissent des restes de mémoire cellulaire qui se configurent comme des traumatismes internes et qui ont l'habitude de se manifester face aux traumatismes extérieurs, comme l'on observera dans la clinique commentée dans le texte. Le concept de nachtraglich, pris comme l'effet retardé d'un souvenir traumatique, c'est le fondement de cet écrit. On présente des illustrations cliniques de séances ponctuelles d'écoute psychanalytique via des appels vidéo, afin d'aborder l'importance vitale du setting interne de l'analyste pour son étayage.

Mots-clés: après-coup, setting interne, écoute psychanalytique, appel vidéo


 

 

Mientras la ciencia a descubrir no alcance/las fuentes de la vida, y en el mar o en el cielo haya un abismo/que al cálculo resista, mientras la humanidad siempre avanzando/no sepa adonde camina, mientras haya un misterio para el hombre,/¡habrá poesía!1 Gustavo Adolfo BÉCQUER, "Rima IV" (fragmento)

Não é mais possível menosprezar a perplexidade em que a nova realidade epidêmica nos impôs viver. Seria utópico negar que nos encontramos sob a égide de um estado de ameaça da continuidade da vida, que demanda sensatez para não nos entregarmos à mercê dos sortilégios.

De maneira inédita, testemunhamos a cada instante nossa condição de inexperientes. Com vivências da realidade, elaboramos histórias próximas do ficcional. Recorremos a sonhos diurnos e pensamentos oníricos, próprios e de outrem, como porta-vozes do indizível. Urge manter a mente pensante oxigenada, viva, criativa e produtiva, para assim evitar sucumbir. Procuramos, freneticamente, recursos que deem sentido ao que estamos vivendo. Embarcamos em viagens mirabolantes no interior de romances, contos, poemas e filmes que nos permitam superar, ainda que minimamente, o desamparo em que estamos mergulhados.

Somos ameaçados por um invasor impiedoso, que nos penetra e subtrai o que é vital para nossa sobrevivência, e a qualquer custo temos de nos proteger dele.

Constatamos na clínica e em nós mesmos que a vivência da atual epidemia é experimentada de modo peculiar, privado e particular por estabelecer conexões com acontecimentos passados, encarnados, que não foram passíveis de significação. O horror do momento presente remete àqueles fragmentos primevos de memória, despojados de sentidos e, obviamente, de palavras.

Acredito que refletir sobre um desconhecido invisível se equipare a querer saber daquelas cenas da mais tenra infância que se intrometem e se inscrevem com veemente violência, sem serem reprimidas, mas deixam restos de memória - celular - que se configuram como traumatismos internos (Laplanche, 2006/2012). A célebre carta de Freud do dia 6 de dezembro de 1896 dialoga com essa questão, de que a memória não se faz presente de só uma vez e está sujeita a rearranjos de acordo com as novas circunstâncias (Freud, 1986b).

Sutis lembranças de novos acontecimentos que porventura remetam àquelas cenas arcaicas da infância desencadearão uma reação exacerbada. São as lembranças daquelas primeiras cenas as que traumatizam a partir do interior. Definitivamente, o traumático não será a nova cena em si, mas as primevas.

A primeira consciência é a consciência perceptiva, que deixa marcas no corpo. As fantasias remontam às vivências que as crianças "entreouvem em idade precoce e só compreendem numa ocasião posterior. A idade em que captam essa espécie de informações, estranhamente, é a partir dos 6 ou 7 meses" (Freud, 1986a, p. 235).

Tanto ontem como hoje são evocados diques de contenção funcionando como defesas contra lembranças desencadeantes de sofrimento mental. É precisamente no Manuscrito k, anexo à Carta 39, de 1.° de janeiro de 1896, que Freud formula o conceito de nachtraglich, como o efeito retardado de uma lembrança traumática - de conotação sexual (Freud, 1986c). Essa lembrança desperta "um afeto que, como vivência, não tinha sido despertado, porque entrementes a alteração da puberdade possibilitou outra compreensão do recordado" (Freud, 1950[1895]/1986d, p. 403).

 

Edmar

Como ilustração, acode à minha memória um atendimento virtual realizado nestes dias de isolamento. Trata-se de uma escuta psicanalítica esporádica, de um jovem de menos de 20 anos, Edmar, que pede socorro terapêutico por ter sido tomado de muita angústia ao sair do isolamento devido a uma emergência. Sente o corpo paralisado e relata imagens sensoriais cenestésicas difusas, que parecem estar vinculadas a um tempo precoce. Entrega-me, de mão beijada, algo que remete a impressões sensoriais vividas quando tinha 3 anos, ao deixar um serviço de terapia intensiva após um procedimento cirúrgico nos genitais.

Passo a detalhar o acontecido de acordo com seu relato.

Apressado, Edmar tomou o elevador e, dentro dele, olhou-se no espelho. Ajeitou as calças mal passadas. Sem muito cuidado, deslizou o pente para arrumar os rebeldes cabelos despontados. Apesar de uma estranha sensação no corpo de que algo não estava certo, continuou a viagem - nesse momento, pelo exterior do condomínio. As pessoas que passavam a seu lado olhavam-no inquisidoramente, afastando-se dele, como quem se desvia de um fugitivo que cometeu um crime hediondo. Fixou a atenção nos transeuntes e, confuso, sentiu que ele próprio não estava de máscara. Apalpou o rosto e flagrou-se nu, como que despojado de suas roupas íntimas. Tomado pela vergonha e temeroso de se contaminar, deteve a marcha e voltou, a passos ágeis, para o interior do apartamento, onde ficou confinado. Foi então surpreendido por imagens turvas de um passado outro, fragmentos ofuscados que beiravam lembranças desmembradas do novelo de sua história: ele, perto dos 3 anos de idade, numa maca de uri, confuso e obnubilado, imaginando-se descrente de voltar à vida. Tinha acordado de uma intervenção cirúrgica, que mais tarde soube tratar-se de fimose. Entreabriu os olhos e, por essa fresta, se viu rodeado de pessoas mascaradas vestindo branco. Tempos depois, viu que o pai o segurava de um lado, enquanto a mãe, do outro, manipulava o pênis cortado, em carne viva, para fazer a higiene. Sentia uma dor abafada, dentro dos esparadrapos ensanguentados. Lembra que estava com as pernas abertas, como que crucificado, e ao erguer a cabeça deu de cara com aquilo inchado, grande entre as pernas, enorme, latejando de dor.

Outrora, sentimentos sem palavras, pensamentos sem linguagem. A dor queimando por trás de panos brancos que mascaravam um amputado. Hoje, a puberdade ficou para trás, e aquele tempo dos 3 anos ingressa na cena permitindo a Edmar a consciência da dor e a constatação da "fantasia" sentida como trauma real: a mutilação do pênis, inferida por uma cena insólita, de rostos solapados, disfarçados, enquanto ele se vê, sem roupa - sem máscara -para cobrir os orifícios que comunicam com seu interior. A pandemia irrompe com a revelação de um conceito: despedaçamento. O cerceamento o condena, prostrado, numa maca de uri, vendo lampejos de luz por uma fresta, a de seus olhos semiabertos, hesitando sobre a continuação da vida - vida essa que passou a ser apavorantemente vivida a partir de seu interior, o dele mesmo, deixando entrar a ameaçadora realidade pela mesma fresta da janela semia-berta de seu quarto estéril. Imóvel em seu leito, como aos 3 anos na maca cirúrgica, mergulhado num desespero sem nome, deixa um recado virtual pedindo ajuda, apavorado, porque a uri de referência de covid-19 estaria à sua espreita.

Para Edmar, os olhares inquisidores com máscaras brancas ativaram as lembranças sensoriais das experiências infantis de cuidado vividas como angustiantes. Estamos diante do trauma em dois tempos (Laplanche, 2006/2012), em que uma lembrança se torna trauma après-coup. Por meio de uma associação, ele pôde resgatar do inconsciente não recalcado uma cena de registro sensorial de seu mundo infantil, e no presente, curiosamente, incluí-la na rede simbólica e superar o trauma pela via da palavra, o que é mediado por um processo de tradução na medida em que exista um código, tramitado pela linguagem. Esse processo tradutório está marcado pela passagem de um primeiro tempo (o tempo do horror ou tempo zero) para outro tempo (o tempo das palavras).

Não seria descabido conjecturar - fazendo a ressalva de não ser esse um processo de análise - que as partes desmembradas da mente de Edmar que ele evacua em meu interior foram resgatadas pela escuta atenta que integra minha função analítica da personalidade, veiculada mediante um pedido de ajuda feito por ele, para salvaguardá-lo de sua angústia psicótica agravada pela pandemia. Ele se permite ser resgatado do pavor que progride, do pavor da morte psíquica ao pavor da morte física, às quais teme sucumbir. O ego infantil desse rapaz foi exitosamente defendido de suas ansiedades intoleráveis por meio da excisão e da projeção de impulsos e sentimentos indesejáveis para dentro de um objeto (O'Shaughnessy, 1990), representado no presente por mim.

Estávamos imersos em um dispositivo interno ou condição mental que emana da Gestalt do ego. Propõem-se para isso o nome de setting, estando implícitas nele as regras de livre associação de ideias, abstinência e atenção flutuante e as funções operatórias psíquicas do analista.

Ao sustentar que o setting é uma condição mental do analista (Ferro, 1998), este, em última instância, será convocado como o guardião encarregado da manutenção, reinstalação e garantia de funcionamento dele.

O atendimento de Edmar condensa algumas formulações referentes à primazia de um encontro: não obstante virtual, é análogo a uma clássica construção do setting - função do analista exercendo a assimetria da relação, pedra de toque que abriga os aspectos regressivos ou indiferenciados da organização mais primitiva, passíveis de serem incluídos no mundo de representação por meio da análise. Não passa despercebido por mim, e considero importante enfatizar, que o relato não corresponde a um processo analítico convencional. Como disse, fui solicitada para um atendimento pontual, por videochamada, em plena pandemia. Munida de meu equipamento terapêutico analítico, eu o acompanho e o acolho num episódio disruptivo, agudo.

Em meu entender, o setting propicia convocar as dimensões inconscientes que se apresentam de maneira mais ou menos plásticas e flexíveis - e ao analista cabe ter muita firmeza conceitual para manter a elasticidade do enquadre, de modo que seja capaz de se flexibilizar sem perder suas características.

Não é preciso dizer que, indefectivelmente, teremos de optar por aumentar o grau de visão - ao estilo de uma microscopia do enquadre - e contemplar aqui o setting do analista. O presente atendimento, ainda que à distância, é passível de continuidade mediante uma variação do enquadre, sempre que o setting interno for mantido incólume.

Notaremos que este apresenta um homomorfismo com as envolturas psíquicas (Anzieu, 1986, citado por Houzel, 1990). Anzieu aborda a experiência a partir de um ângulo próprio, vista do interior, a pele dentro da qual vivemos: a pele psíquica. Essa envoltura conexa e permeável define o espaço psíquico interno, o perceptivo e o espaço psíquico do outro.

Por sua vez, ao contextualizar o setting interno do analista, Bolognini (2008) outorga ao termo o sentido de uma arte do contato que os psicanalistas cultivam com o próprio mundo interno e com o das outras pessoas. Assim como com o tato físico se experimenta e se apalpa, com o contato psíquico se observa, se sente, se estuda a disposição dos outros, articulada e condicionada pela vulnerabilidade individual.

Como se observa, no setting interno do analista há que considerar vários eixos condensados. Green (2012) demarca o que seria a criatividade e elasticidade na postura analítica quando o enquadre clássico é posto em xeque, tendo o analista que se deixar afetar com especial intensidade para poder alcançar o alvo, que é o inconsciente do paciente. A introjeção do setting interno garante a maturidade, a criatividade, a liberdade para sair das normas do estabelecido, examinar-se e dialogar consigo mesmo e, se necessário - para não perder a condição interna de sua função analítica -, restabelecer o setting.

Para além das constantes, o enquadre traz consigo a possibilidade de um resgate de aspectos arcaicos da mente, cujo facilitador é o setting interno do analista, que está em trabalho de sonho alfa, no exercício de sua função continente. No dizer de Lisondo,2 é a matriz criadora de significados: "A atividade psicológica de reverie representa formas simbólicas e protossimbóli-cas (baseadas em sensações) atribuídas à experiência não articulada. ... Elas ganham forma na intersubjetividade do par analítico: o terceiro analítico -construção assimétrica criada no setting" (2010, p. 80).

Saber o que e o porquê do que estamos fazendo e sentindo nos possibilita batalhar contra um inimigo comum, tanto de um passado presentificado como de um presente incerto. Evocar e ter fé3 no método introjetado e encarnado ao longo dos anos de formação psicanalítica nos induz a compartilhar o que recebemos de nossos mestres e da instituição como um todo. Conclama à gratidão e à compaixão pelo outro que sofre a dor. Dele nos aproximamos com gestos de solidariedade, a fim de lhe transmitir conforto e incentivar a esperança, resgatando a força no pensar criativo, para assim fomentar o desenvolvimento individual e grupal.

 

1920/2020

Não estamos internamente a sós quando vasculhamos a bibliografia psicanalítica na tentativa de encontrar ferramentas para nomear o inefável e modelos para lidar com o indizível. Para esta seção, recorrerei ao livro Vida e obra de Sigmund Freud, de Ernest Jones (1979), especialmente ao sombrio capítulo 26, "Reunião".

Dentro da linha do tempo, procurarei reunir algumas possíveis analogias entre 1920 e 2020, enfatizando a vivência de experiências mudas que adquirem voz com posterioridade, como no conto de fadas da noite de Natal (Freud, 1986c). Salvando-se as diferenças, à luz da tragédia epidêmica em que estamos imersos em 2020, as guerras e calamidades do passado longínquo adquirem um tom mais lúgubre com as nuanças da desgraça viral que nos invade sem sessar.

Demandara-se um espírito forte para persistir em face do rigor do inverno de 1920 e energia bastante para arquitetar novas ideias e redigir novos trabalhos. A situação econômica era tão sombria quanto possível, e a perspectiva de futuro se encontrava no mesmo plano. Essa atmosfera revive, indene, em pleno 2020, tanto no manuseio diário quanto na remota distância de um amanhã incerto. O familiar tornou-se um estranho, e fomos abruptamente despojados dos costumeiros invólucros familiares e sociais em que nos aninháramos.

Mais do que nunca, daremos um sentido ímpar aos traumas dos mestres do passado nos difíceis tempos do pós-guerra que levaram Viena à inércia. Vivenciamos em nossa alma as peripécias desoladoras de um inimigo em comum, que se arremessa como mísseis, a partir do exterior, com grotesca violência, em nossa direção, furtando o ar que garante a vida e nos lançando ao abrigo - imprescindível - do interior, frequentemente aumentando a dor.

Entretanto, a força que nos propulsiona a cultivar o sentido da existência e continuidade da vida demanda muitas vezes que nos amparemos em nossos redutos fortificados, à prova de "projéteis de guerra", ao estilo de um bunker, e a partir daí damos proteção e semeamos esperança entre nossos íntimos e acudimos a quem precisa de ajuda com atenção qualificada, no intuito de agasalhar através do alcance das ferramentas da escuta psicanalítica.

Para Freud, nos anos 20, e para alguns de nós, também nos anos 20 - um século depois -, a "única esperança de sobrevivência achava-se na possibilidade de ter pacientes em análise". Venturosamente, o mestre obteve um grande volume de trabalho; em compensação, enfrentou "sérias dificuldades de comunicação. Após seis horas de esforço para atender tais pacientes, mostrava-se completamente exausto" (Jones, 1979, pp. 576-577), exaustão essa que, atualmente, nos acomete e nos acompanha até o final da jornada.

Nós nos sentimos intempestivamente compelidos, por uma força de vida, a emigrar dos postos e modalidades de trabalho. Somos privados do contato sensorial. A voz é escutada à distância e o olhar intermediado por uma fina película. Também Freud permaneceu em seu posto tanto quanto possível, para finalmente emigrar e, assim, encontrar seu lugar. Mesmo em tempos de pessimismo e penúria, não abandonou seu objetivo de investigar e ajudar. Ele nos deixou um legado perpétuo de alento: "Não posso lembrar-me de outro horizonte na minha vida que fosse tão sombrio. Em tempos difíceis a ciência é um alto poder capaz de nos aprumar o pescoço" (Jones, 1979, p. 577).

Em épocas fúnebres de guerra ou de peste, esquivar-nos da fatalidade nem sempre é possível. Lembremos que, nos primeiros meses dos anos 20, a calamidade atingiu tanto a nós quanto a Freud - na pandemia de gripe espanhola, ele perdeu sua "radiosa criatura", a bela filha Sophie, de 26 anos, grávida do terceiro filho. Como nos tempos atuais, fora circunscrita a possibilidade de derramar lágrimas de adeus. Após poucos dias desse infortúnio, Freud retoma, para concluir, o manuscrito de Além do princípio do prazer, que contém claros indícios de novos quadros estruturais da mente, os quais dominarão todos os seus escritos posteriores (Strachey, 1984). A abundante produtividade literária nesses tempos sombrios foi seu ombro amigo.

 

Um encontro singular na busca de outros caminhos

Dando uma guinada na temática em que estava me apoiando, vou tomar o referencial de Julio Moreno (2010) para exemplificar a excelência do alcance de um atendimento pontual por videochamada, realizado em duas sessões, em dias consecutivos. Neste momento, explicito meu sincero reconhecimento à equipe da Diretoria de Atendimento à Comunidade da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (DAC-SBPSP).

Moreno enfatiza as duas formas de comunicação relacional entre nós e o meio: a conectivo-maquinal e a associativo-simbólica (sonhos, brincar, livre associação), sendo essa última uma ferramenta primordial na clínica psicanalítica, passível de criar e encontrar nos elementos que a compõem o sujeito da associação.

Em relação à lógica conectiva, a lógica das máquinas, externa ao sujeito, seu epicentro é a realidade virtual. Segundo Moreno, o "humano do humano constitui uma franca insubordinação aos poderes da máquina" (2010, p. 31), os quais não promovem outra coisa além de conexões caraterizadas por uma limitação dos sistemas simbólicos. Entrar em contato com essa inconsistência do sistema pode propiciar mudanças. A lógica associativa, coração do método psicanalítico, descobre sentidos através da associação e interfere, como é de supor, na lógica conectiva.

Considerando a evidência de que não somos nativos digitais, mas imigrantes digitais, e que nos constituímos com o amparo da lógica simbólica, não podemos deixar de destacar a importância extrema, na atual conjuntura sanitária, das sessões por videochamada ou por telefone. Essa nova metodologia, de inestimável valor, possibilitou a continuidade de nosso trabalho psicanalítico.

O exemplo clínico a seguir ilustra um auxílio concedido a Maria, que desconhecia esse tipo de escuta e que, precariamente, se mantém conectada ao mundo externo através de seu "móvel".

 

Maria

Num dia de 2020

A tela plana de um dispositivo digital qualquer, de meu uso rotineiro, afunda junto à imagem da poltrona com uma Maria silenciada, gestos enrijecidos, que se afrouxam sutilmente ao encontrar meu olhar, atento ao dela. Consigo vislumbrar a metade superior de seu rosto. Hesito mencionar a visibilidade reduzida de sua imagem. Em definitivo, era aquilo que podia ser mostrado no momento para mim: só e tão só uma parte. Uma tácita pergunta retumbava, indómita, entre dois artefatos remotos; em minha imaginação ela se perguntava a meu respeito: "Quem é e para que veio esse ser estranho a meu encontro?". Um ar de desconfiança penetrava através de meus poros. Perguntei-me se não seria acaso o mesmo tom capcioso que, reiteradamente, eu observava, intrigada, na foto de seu perfil no correio eletrónico, o dela, uma mirada intrigante de soslaio, réplica fiel daquela que captei ao nos cumprimentarmos.

Eu me apresento colocando meu breve nome em palavras e solto ao ar uma pergunta: "Estou aqui. Como posso ajudá-la?" Novamente, um desconcerto toma conta de mim, e o silêncio toma conta da cena. Senti que seria prudente esperar e, introspectiva, aguardei por uma possível intervenção de sua parte:

A Celestina, que me conhece mais do que eu mesma, insistiu para que eu a contactasse, embora esteja bem equilibrada e não tenha nada. Ela fala e eu acato, e temia que se não obedecesse ela ficasse chateada comigo. Ela sempre me acompanhou na depressão. Ela está preocupada porque estou em casa afastada das atividades.

Maria fala sobre seu trabalho numa empresa de mobilidade no interior do estado. Reparo, entretanto, por mensagens não verbais que transcendem a tela plana, que a paralisia estagnante tomou conta de seu corpo, de sua mente e do entorno e, por se tratar de um primeiro contato, terei de marchar por essa sua rota em sua velocidade, com cautela.

Com reservas, e a pequenos passos, vem se aproximando em minha direção, como que tateando o território. Aos poucos, solta-se, depositando em mim suas angústias diante da inutilidade, da solidão e da tristeza, seus temores frente às incertezas do amanhã, seu desconcerto por ter "muito nada a fazer a não ser curtir um vazio"

Ela se emociona e chora ao contar sobre a perda repentina da mãe, a quem era bastante ligada. Mais tarde, padeceu com a morte do pai. Diz que essa foi a parte mais trágica de sua história de vida. Estende-se em detalhes, como uma forma de reviver o acontecido, o qual, por falta de espaço, permaneceu sepultado ao aguardo de palavras que lhe dessem sentido.

No decorrer da entrevista fica patente que a atual conjuntura sanitária e o real temor da morte por contaminação avivaram feridas do passado em relação à perda traumática dos pais.

Relata ainda a tragédia em que vive sua cidade e, ao acordar cada manhã, martela em sua própria cabeça, para que não fique nenhuma dúvida, que precisa fazer de tudo para não ter o vírus e, se porventura sucumbir a ele, fazer de tudo para sair dessa situação.

Com lágrimas nos olhos, mas com entusiasmo e esperança, fala sobre a gratidão que demonstrou ao médico que a acolheu quando estava muito mal, dizendo-lhe que se lembrasse de como Maria tinha entrado em seu consultório e do milagre que ele fizera ao salvá-la.

Mostro a ela sua satisfação por ter encontrado a oportunidade de conhecer aquele doutor, que, junto com ela, formou um par revitalizador, ajudando-a a vivenciar uma experiência de integração: unir e armar os pedaços e se manter coesa.

Finalmente solta uma pérola: "Não é um remédio que salva, senão ter alguém para compartilhar a dor e o sofrimento. Uma limpeza das mágoas da vida".

Concluo o atendimento dizendo que concordo com sua forma de enfrentar a dor, e marcamos um novo encontro para o dia seguinte, no mesmo horário. Aprazível, agradece e acrescenta que foi muito bom para ela ter conversado.

 

No dia seguinte

Maria aparece com um sorriso. Está alumiada, acesa, e o vermelho intenso de sua blusa colore a tela e o encontro todo.

Agradece-me por tê-la acompanhado ontem a visitar suas feridas, em especial "o que passamos e aonde chegamos". Reconhece que sozinha não teria coragem de "abrir a tampa do baú das lembranças e por isso consegui dormir a noite toda, descansei como há tempo não o fazia".

Comenta, surpresa, que depois de tantos anos a vizinha telefonou para ela e tiveram uma conversa afável e, como nunca, afetuosa. Prontificaram-se a mutuamente se socorrer se, por acaso, precisassem de ajuda ou sentissem solidão.

Costurando uma conversa na outra, Maria diz que, antes de eu entrar para a chamada virtual, ela tinha ido ao quintal mexer na terra do vaso de cheiro-verde.

Pergunto-lhe; "Cheiro-verde-esperança?". Ela faz uma pausa em sua fala e olha risonha em minha direção, como que desconfiando do tom sugestivo de minha pergunta. Entretanto, responde com uma anedota:

Enquanto mexia no cheiro-verde notei que tia Dulcineia mandou uma foto de um doce de laranjas amargas e uma mensagem que dizia; "Lembra?". Claro que eu lembro: era o doce que minha mãe fazia - [chora] - e guardava para a sobremesa do Natal em família. As laranjas amargas em calda sempre foram a marca de meus pais e meus irmãos reunidos em volta da mesa nas festas de fim do ano.

Maria continua relatando sobre como as comidas, as frutas e as festas marcaram sua família. É um ritual que preservam como índice de um passado feliz: "Esse não morre".

Enquanto vertiam lágrimas dos olhos de Maria, fui surpreendida por um aperto em meu peito. Temo ter deixado transparecer minha consternação ao me lembrar de mim, pequena, subida na laranjeira de nosso quintal, colhendo laranjas amargas para minha própria mãe - que, há pouco, partiu - cozinhá-las na calda com canela. São as reminiscências do passado que chamam à porta das boas lembranças deflagradas pelas experiências de outras Marias, a de hoje, a de ontem, a de outrora.

Nosso diálogo tornou-se mais íntimo e emotivo. Subitamente, pensativa, mergulhei em meu interior e constatei que o estado de penúria e esvaziamento afetivo nos toca de perto e nos iguala no desamparo que nos assola. Nós, analistas, não estamos isentos do sofrimento. O que nos diferencia são os instrumentos que vêm a nosso encontro e comungam a nosso favor para continuarmos lutando na linha de frente. Maria confidenciou-me vivências despertadas pelo isolamento forçado e pela privação de sua rotina social, que tanto a nutria. Passou a relatar o que sentiu ontem, em nosso primeiro encontro à distância: proximidade. Diz ter sido algo inesperado, uma surpresa que a acordou para a vida.

Eu entendia ser um subterfúgio, no sentido de possibilitar uma forma criativa de expressar aquilo que antes não tinha podido ser experimentado, pensado, representado, colocado em palavras, vivido e sabido. Ela falava sobre a importância de ser vista para existir, sobre sentir-se olhada, descoberta ao me descobrir, achada ao me achar, aludindo a perdas do passado que se tornaram presentes ao poder abrir comigo a tampa do baú das lembranças, fonte de vida psíquica que inauguraria uma brecha para a simbolização.

Como corolário, lanço uma ideia sobre a virulência do presente: partículas nocivas que provêm do real se adentram no interior de células enfraquecidas pela penúria de experiências vividas e não significadas; a dor congelada das perdas irreparáveis petrificam as lembranças do passado; estas, soterradas em jazigos, só podem ser revisitadas em companhia.

O fim é o lugar de onde começamos.

T. S. ELIOT

... poderá não haver poetas;
mas sempre haverá poesia.
Enquanto houver um mistério para o homem
Haverá poesia!
Enquanto alguém chore, sem que o pranto

Surja a embaçar a pupila;
Enquanto o coração e a mente,
Prossigam a batalhar,
Enquanto houver esperanças e memórias,
Haverá poesia!

GUSTAVO ADOLFO BÉCQUER, "Rima IV" (fragmento)

 

Referências

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Recebido em 14/7/2020
Aceito em 19/11/2020

 

 

1 Enquanto a ciência a descobrir não alcance/ as fontes da vida,/ e no mar ou no céu haja um abismo/ que ao cálculo resista,/ enquanto a humanidade sempre avançando/ não saiba para onde caminha,/ enquanto haja um mistério para o homem,/ haverá poesia!
2 Agradeço a Alicia Lisondo por suas contribuições, que lançaram luz sobre minhas ideias.
3 Fé no sentido científico, despojado de conotação religiosa. Acreditar no incognoscível e imperceptível pelos órgãos dos sentidos.

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