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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.55 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2021

 

TEMÁTICOS

 

Supervisão e a dicção poética do sonho

 

Supervision and the poetic diction in dreams

 

La supervisión y la dicción poética del sueño

 

La supervision et la diction poétique du rêve

 

 

Elizabeth Lima da Rocha BarrosI; colaboração de Pedro E. SangII

IMembro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), fellow da Sociedade Britânica de Psicanálise, DEA em psicopatologia pela Sorbonne. São Paulo / elizabethlrochabarros@gmail.com
IIMembro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Mestre em psicologia clínica pela PUC-SP

 

 


RESUMO

A autora descreve o trabalho de supervisão como escuta da escuta do analista diante de seu analisando. Sugere que essa escuta supervisiva idealmente opera num espaço semelhante a uma atmosfera oniroide. Menciona uma reverie de outra reverie como parte de um processo de descolamento do senso comum, e discute o papel da teoria analítica durante o atendimento e numa supervisão. A presença da teoria é comparada à presença do sangue no corpo humano: nunca deve pesar na relação intersubjetiva do campo analítico.

Palavras-chave: reverie, supervisão, teoria psicanalítica, dicção poética, sensibilidade


ABSTRACT

The author describes the supervisory work as listening to listening of the analyst to his analysand. She suggests that this supervising Listening ideally operates in a space similar to an oneiroid atmosphere. She then mentions the operation of a reverie of another reverie, as part of a radical detachment of the common sense, and discusses the role of analytic theory during the session and a supervision. The presence of the theory is compared to the presence of blood in the human body: it must never weigh on the intersubjective relationship of the analytic field.

Keywords: reverie, supervision, psychoanalytic theory, poetic diction, sensibility


RESUMEN

El autor describe el trabajo de supervisión como de escuchar la escucha del analista frente a su analizando. Sugiere que esta escucha supervisora opera idealmente en un espacio similar a una atmósfera oniroide. Luego menciona un reverie de otro reverie como parte de un proceso de desapego del sentido común y discute el papel de la teoría analítica durante la sesión y la supervisión. La presencia de la teoría se compara con la presencia de sangre en el cuerpo humano: nunca debe pesar sobre la relación intersubjetiva del campo analítico.

Palabras clave: reverie, supervisión, teoría psicoanalítica, dicción poética, sensibilidad


RÉSUMÉ

L'autrice décrit le travail de supervision en tant que l'ecoute de l'écoute de l'analyste face à son analysant. Elle suggère que cette Écoute de supervision idéalement agit dans un espace semblable à une atmosphère presque onirique. La chercheuse mentionne ensuite une rêverie d'une autre rêverie, comme une partie d'un processus de déplacement du sens commun et elle discute du rôle de la théorie analytique pendant la séance et dans une supervision. La présence de la théorie est comparée à présence du sang dans le corps humain : elle ne doit jamais peser sur la relation intersubjective du champ analytique.

Mots-clés: rêverie, supervision, théorie psychanalytique, diction poétique, sensibilité


 

 

O estudo sobre o papel da supervisão na formação de um analista sempre me interessou. Talvez porque pessoalmente senti ter usufruído muito das supervisões que fiz ao longo da minha formação. Poderia dizer que saía inebriada das supervisões com Betty Joseph e Hanna Segal, entre outras. Lembro que dizia para mim mesma e para colegas que a experiência que vivia após cada um desses encontros, durante vários anos, era como sair de um show do Caetano Veloso ou do Chico Buarque. Pode parecer estranho para vocês, leitores, esse meu comentário. Curiosamente senti algo semelhante na conferência de Adélia Meneses (2021) na belíssima comemoração dos 70 anos da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Ela comentou a canção "As caravanas" (2017),1 de Chico Buarque. Nessa análise, mostrou o que não é dito, o que está por trás da poesia da letra, as referências ocultas, as fontes de inspiração e, de certa forma, diria, os impactos da vida sobre a criação poética de Chico. A canção continua a mesma, mas já é outra coisa. O ensaio de Adélia modifica a sensibilidade de quem ouve a canção, e não apenas acrescenta informações.

De um lado, a canção é bela e evoca um maravilhamento estético, uma série de imagens associadas à musicalidade e ao conteúdo da letra; de outro, gera uma espécie de enevoamento. Se pararmos para desconstruir esse conjunto de evocações, estaremos diante de algo como a análise de um sonho. Inicialmente nos deparamos com a experiência de vida no Rio de Janeiro, tanto o real quanto o da imagem "vendida" pela mídia. A seguir, aparece a imagem dos arrastões, o frio na espinha, a indignação, a compreensão do estado de penúria das multidões da periferia que buscam as praias da zona sul, um certo mal-estar fruto do conflito entre medo e compaixão. Essas conexões - posteriores à minha escuta da canção - apontadas por Adélia Meneses me escapavam antes da leitura de seu trabalho. Camus e O estrangeiro, os muçulmanos imigrados, a referência a Alá e às levas de refugiados na Europa, o terrorismo atribuído aos muçulmanos e a culpabilização coletiva que neles é projetada pelo medo ao atentado, tudo isso são revelações posteriores. O resultado dessa ampliação de horizontes é uma experiência estética de outra natureza, mais profunda, associada agora a vários significados, que perpassam o passado e o presente e geram uma reflexão. São evocações de significados que se ampliam e abrem muitas outras redes afetivas.

Essa ampliação da vivência da canção operada pelo ensaio de Adélia Meneses me faz pensar em Ella Sharpe (1971) e numa expressão usada por ela: a dicção poética dos sonhos. Essa expressão é inspirada numa obra de Owen Barfield. Vejamos este trecho: "Quando as palavras são selecionadas e distribuídas de tal maneira que seus sentidos evocam, e obviamente intencionam evocar, uma imaginação estética, o resultado pode ser descrito como uma dicção poética" (1928/2010, p. 33).

Essas associações me levam a refletir sobre a atividade de supervisão. O que faço hoje ao supervisionar uma sessão trazida por outro analista?

Ao pensar sobre esse tema, quis abordá-lo a partir de um ângulo diverso dos muitos artigos valiosos escritos sobre ele. Pensei: por que não perguntar a um analista em formação como é sua vivência de supervisão comigo?

Assim, começo meu artigo examinando como um analista em formação vivencia e desenvolve sua escuta psicanalítica no diálogo comigo. Fiquei agradavelmente surpresa por me dar conta de que Pedro E. Sang, em seu comentário, apresenta pontos que considero instigantes para o nosso trabalho de analistas supervisores. É com esse espírito que transcrevo sua colaboração.

Aprendi a escutar um paciente quando fala sobre um passeio no mercado, e/ou sobre o trânsito que enfrentou para chegar à sessão, e/ou sobre a temperatura do dia, como um sonho. Um sonho naquilo que podemos definir como a fotografia de um estado mental, a descrição de um mundo interno de relações que nos permite uma aproximação para examinar os processos psíquicos de uma constelação complexa de afetos e representações. Enquanto tento pôr essa reflexão sintética em palavras, percebo como estou em conversa interna com Elizabeth e chego a escutá-la: "Veja que imagem interessante essa pessoa construiu, que nos dá a chance de trabalhar com ela os sentidos mais profundos das relações dela consigo mesma e com os outros, a maneira como está experimentando a análise naquele momento" - a análise, como Elizabeth costuma definir, enquanto situação especial, que propicia conversas íntimas, que permite ao analisando perceber como está experimentando a própria vida íntima.

A partir daí, desse tipo de compreensão sobre a situação analítica, vem um salto. Gostaria de dar destaque à visão, ao modo de ver a análise e à supervisão de Elizabeth. Passa-se a trabalhar de maneira a estabelecer uma conversa com o analisando a partir de seu léxico, seu idioma - das palavras e imagens que surgiram naquele momento da sessão. Eu chamaria essa conversa de cotidiana, sobre o dia a dia da vida mental, uma conversa que torne possível abordar temas densos, pesados, bastante difíceis de serem acessados, reconhecidos, compartilhados e assimilados, ou seja, de serem pensados em profundidade. O efeito dessa aproximação ao material de análise é de surpresa para mim, como supervisionando, e para o analisando diante de mim em análise. É como se criasse uma atmosfera que eu descreveria deste modo: "Como pude comunicar tanto de mim mesmo ao falar do meu passeio no mercado? Era tão evidente assim que, no fundo, eu estava experimentando a vida de maneira - por exemplo - tão rancorosa, amorosa, ressentida etc.?".

Nesse sentido, mais uma camada de aprendizado em supervisão precisa ser acrescentada: a observação dos efeitos de uma comunicação. Como o analisando reage ao se sentir compreendido, ou incompreendido? Sente-se criticado? Invadido? Amado? Sente o analista de maneira onipotente? O que ele faz quando sente cada uma dessas coisas? Sente-se grato? Perseguido? Dependente? Curioso? Que sinais ele dá dos efeitos da sessão passada?

Para concluir, volto ao ponto que escolho para provocar reflexões: transformar um tema complexo e pesado em uma conversa cotidiana, de aparência razoavelmente simples, com leveza. Em um documentário sobre a vida do arquiteto Vilanova Artigas, há uma cena de sua banca para livre-docência na Universidade de São Paulo (usp) que me parece pertinente para metaforizar a experiência de aprendizado em supervisão que estou tentando descrever. Artigas é interpelado a respeito de suas ideias sobre leveza na relação entre os elementos de vedação (parede) e as colunas em seu projeto do edifício da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (fau-usp). Ao responder a essa interpelação, ele faz a seguinte afirmação: "Quanto a mim, confesso-lhes que não gosto disso. Procuro negar a força da gravidade não só pelo processo de fazer coisas fininhas, para que o leve seja leve por ser leve. O que me encanta é usar formas pesadas e chegar perto da terra e dialeticamente negá-las. Transformar minhas colunas em alguma coisa que as torna, para os olhos do engenheiro exigente: 'Vai cair essa porcaria'". Nesse sentido, eu me pergunto: quantas vezes, nós, analistas jovens ou em formação, ou simplesmente analistas, não temos a impressão de que nossas hipóteses seriam pesadas demais se interpretadas aos nossos analisandos? Quantas vezes não pensamos: "Não posso dizer isso ao meu analisando. Ele não aguentaria. É muito pesado"? Aprendi com Elizabeth que aquilo que aos olhos do analista exigente parecem formas pesadas para a estrutura das colunas de seus analisandos requer que pensemos em como torná-lo leve, que escolhamos bem as palavras e a maneira de comunicar, não para que o leve seja leve por ser leve, mas por fazer de temas pesados uma fonte inesgotável de construção de sentidos profundos da vida.

Antes de recorrer a uma ampliação reflexiva do texto de Pedro, quero citar algumas passagens de um trabalho meu anterior (Rocha Barros, 2018). Nele menciono que sensibilidade não é algo estático. É algo a ser ampliado, descoberto, entendido e aprendido com muito esforço. A atitude analítica sustenta-se nas formas de sensibilidade para o sentimento humano, e se consubstancia num tipo de escuta especial e numa habilidade construída ao longo do tempo para transformar "fatos" em eventos mentais, representativos de significados de experiências emocionais.

As pessoas podem ter um talento especial para captar o inconsciente humano, mas não nascem analistas; elas se tornam analistas e se mantêm em evolução.

Gosto muito de uma expressão utilizada por André Green em muitos escritos e em suas muitas falas supervisivas. Diz ele que, ao iniciar uma sessão, busca colocar-se na posição de analista. "Je me situe en position d'analyste" [Eu me situo em posição de analista] (Green, 2002, p. 189).

Situar-se na posição de analista (algo que não é dado de início) é descolar-se do senso comum, centrar sua escuta numa determinada direção, colocar-se num estado de espírito particular, ou seja, esforçar-se para manter sua atenção flutuando, situação que poderia ser sintetizada dizendo-se que é uma abertura onírica para as diversas configurações de sentido. Green reconhece as dificuldades inerentes à busca desse estado. Diz que "escuta" implica o entendimento de que os pacientes (assim como todos os indivíduos) operam simultaneamente de acordo com várias lógicas. Sugere que um de seus focos é a percepção da flutuação da conflitualidade interna do paciente. Por outro lado, afirma: "Considero a fala do paciente a partir do ângulo de a quem ele se dirige, tanto do ponto de vista implícito quanto explícito, do ponto de vista consciente e inconsciente". Faz ainda uma observação central, a meu ver: "A singular alteridade que governa a relação analítica engendra também simetricamente a ideia de que a causalidade que governa o propósito daquele que fala modifica o estatuto do destinatário da mensagem" (Green, 2002, p. 191). Ele se transforma de receptor em indutor da mensagem. Aqui está a essência da noção de transferência apresentada de maneira não mecanicista.

Enfatizei em outro momento (Rocha Barros, 2018) que o mundo do inconsciente, e mesmo o da consciência, não se confunde com a ideia de um mundo subjetivo profundo ou inacessível. O espaço do inconsciente é aquele que modifica a natureza mesma do representado. É um mundo habitado por representações de coisas não verbais, pulsionado. Também o mundo da consciência, na perspectiva analítica, não é o mundo do conhecido, do simplesmente lembrado.

Numa supervisão eu escuto a escuta de meu supervisionando a partir do transporte de minha sensibilidade para um espaço analítico, o que me transforma como ouvinte em um ser distinto daquele que ouviria o mesmo discurso numa conversa entre amigos ou ainda numa reunião científica. Como supervisora, sou afetada pelo relato da escuta operada pelo analista que me traz a sessão, criando-se dessa maneira um espaço de cossensibilidade analítica, bem diferente da simples empatia. O relato da sessão ganha idealmente uma dimensão oniroide e supera a concretude massacrante do real.

Nessa dimensão oniroide, o analista durante a sessão está aberto às manifestações do que Freud chamou de o infantil no paciente, ou seja, aquele aspecto que não fala, mas faz parte do núcleo da experiência, numa dinâmica que representa o esforço infantil (o engrama inicial) para cooptar o adulto e o esforço do adulto para compreender e conter o infantil (Meyer, 2021).

Nem sempre o analista em sessão capta todas as dimensões desse infantil. Assim, uma das funções do supervisor, ao atuar como segunda opinião ou terceiro olho, é também perceber uma dinâmica que passou ao largo do analista durante o atendimento. Por exemplo, em uma sessão que supervisionei, sugeri que sub-repticiamente o analisando estava humilhando o analista. Essa sugestão nasceu do relato de meu supervisionando de que se sentiu desconfortável e ligeiramente deprimido, além de irritado, depois dessa sessão, sem saber o motivo de tal reação, uma vez que estava se sentido bem e até feliz antes do atendimento. Essa dinâmica de humilhação sub-reptícia não havia sido percebida pelo meu supervisionando, um colega analista, e quando eu lhe sugeri que isso estava ocorrendo, ele reagiu com alívio, dizendo que agora compreendia seu mal-estar após a sessão.

Esse tipo de apontamento que ocorre em supervisão levou alguns colegas franceses a pensar que as supervisões acabam por se constituir numa análise da contratransferência do supervisionando.

A sessão relatada abre-se para uma desconstrução operada no espaço de um novo sonho (distinto do sonho noturno), ou melhor, de uma onirização do relato aberta a muitas dimensões virtuais, que mesclam as experiências relatadas do paciente com as de seu analista e com as minhas, num processo de aquisição de novos sentidos. Essa transformação de minha atenção tem sido definida como reverie, sobre a qual eu e Elias Rocha Barros temos escrito vários artigos.

Ao longo dos anos, tornei-me cada vez mais sensível às imagens evocadas, no plano de uma sensibilidade ampliada, ao escutar o material de um paciente. Essas imagens passaram a funcionar como ferramenta de compreensão das emoções presentes na intersubjetividade da sessão analítica. Eu diria que tais imagens são um primeiro produto da mente do paciente em sua tentativa de compreender-se e um primeiro passo no processo de metabolização dos significados das experiências emocionais vividas. Tanto numa sessão quanto numa supervisão, para que haja transformação de sentido é necessário que essas imagens sejam postas numa linguagem simbólica mais propícia à reflexão, ou seja, em palavras que captam e despertam experiências emocionais associadas a novos sentidos e significados.

É preciso sublinhar que nem toda imagem evocada pode ser considerada uma reverie. A qualidade de reverie é adquirida a posteriori. Qualquer conteúdo, para se tornar uma reverie, necessita ter passado por um trabalho mental inconsciente análogo ao processo de trabalho do sonho, e para se transformar num comentário ao paciente ou ao supervisionando, necessita sofrer um novo processo de transformação, semelhante àquele que torna o relato do sonho uma interpretação comunicada ao paciente. Em suma, a imagem enquanto representação precisa ser metabolizada.

Ao utilizar o conceito de metabolização aqui, estou me referindo a um esforço permanente, involuntário, da mente humana de procurar compreender-se. Trata-se de um processo contínuo, produto de uma espécie de scanning mental permanente, que busca identificar fontes de conflito e de sofrimento psíquico, num movimento que podemos chamar de working through. É nesse processo que o analista e o supervisor procuram capturar ou recapturar novos sentidos.

Fica claro aqui que nem tudo (talvez até a maior parte do que é evocado) será interpretado para o paciente. O que acontece na narração da sessão pelo supervisionando é uma abertura para um tipo especial de atenção, diante do qual são criados personagens que, na maioria das vezes, suplantam essa condição e passam a ser vistos como representantes de funções mentais. Por exemplo um "passeio ao mercado" ou um "aborrecimento com o trânsito da manhã" tornam-se referência a transições complexas de estados de espírito e a um travamento inexplicável, gerador de perplexidade e indignação diante da impossibilidade de entrar em contato consigo embora se desejasse fazê-lo.

O discurso do paciente narrado pelo analista ao supervisor e suas interpretações/compreensões perdem sua realidade, sua explicitude, e se tornam uma neblina, ainda que discursiva, diante da qual novas paisagens estão para se descortinar.

Cabe mais uma pergunta diante desse relato: onde fica a teoria psicanalítica, os milhares de volumes no quais ela é exposta?

Nossos conhecimentos de psicanálise não desaparecem como por encanto, nem podem estar presentes de forma discursiva para servir de guia ou manual para construirmos nossas compreensões daquilo que está sendo narrado em seus diversos níveis. Então, qual o modo de existência da teoria analítica diante de nossa prática?

Acredito ser uma das funções da supervisão a possibilidade de estabelecer uma ligação entre as concepções teóricas e a prática clínica. No entanto, esse campo teórico não pode "pesar" sobre o material. Uso aqui a metáfora utilizada por Pedro, que tão bem parece captar como entendo a importância de nossa formação teórica, as grossas colunas da estrutura que devem suportar a estrutura, sem no entanto comprometer a "bela" estética da obra. Em um artigo sobre o fato clínico, Ruth Malcolm (1994) diz que o nosso arcabouço informa nossa sensibilidade. Cabe ressaltar que informar, nesse sentido, é algo bem diferente de instruir. Assim, nosso referencial teórico funcionaria como o sangue em nosso corpo - ele nos mantém vivos, mas de um modo "silencioso". As leituras teóricas são experiências de vida como outras que nos marcam, que se incorporam a nosso ser, ora se destacando como uma febre ou dor, ora se dissolvendo em nossas estruturas de sentido de maneira silenciosa, transformando-se numa sensibilidade ampliada.

Outra metáfora que gosto de usar em meus trabalhos é a do analista como um violoncelo. A madeira da qual o violoncelo é feito recebe o som produzido pelas cordas, que repercute para dentro da caixa de madeira. Sabemos que, quanto melhor for a qualidade da madeira e do trabalho artístico artesanal do artista que confeccionou o instrumento, melhor será a difusão da qualidade desse som. Nesse contexto, nós nos tornamos os artesões de nossa escuta.

Assim, a formação analítica é algo que continua em permanente ebulição dentro de nós durante toda a vida. Toda a nossa sensibilidade é construída, moldada, transformada por nossas próprias análises, pelos nossos pacientes, pelas nossas leituras e pela vida dentro e fora da instituição. Cada um desenvolverá sua escuta analítica a partir da síntese de todas essas experiências, e sem se dar conta sua formação teórica estará presente, embora aparentemente ausente de sua clínica. Meu texto não trata de todas as questões expostas numa supervisão e se limitou a algumas questões que privilegiei.

É preciso não esquecer que certos parâmetros do pensamento científico também se aplicam à psicanálise. Desse modo, para terminar, quero citar um comentário de Bachelard ao propor a questão de como se estabelece uma atitude científica. Diz ele que a primeira coisa a fazer é "desorganizar o complexo impuro das primeiras intuições" (citado por Pépin, 2016, p. 26). O senso comum obscurece a atitude psicanalítica. Por sua vez, a intuição pura em si mesma não é critério de validade para nada e só pode confundir a observação.

 

Referências

Barfield, O. (2010). Poetic diction: a study in meaning. Barfield Press. (Trabalho original publicado em 1928)        [ Links ]

Buarque, C. (2017). As caravanas [Música]. In Caravanas. Biscoito Fino. https://bit.ly/3lTxyRe        [ Links ]

Green, A. (2002). La pensée clinique. Odile Jacob.         [ Links ]

Malcolm, R. (1994). Conceptualization of fact in the analytic process. The International Journal of Psychoanalysis, 75(5-6),1031-1040.         [ Links ]

Meneses, A. B. (2021). [Apresentação de trabalho]. Evento comemorativo dos 70 anos da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.         [ Links ]

Meyer, L. (2021). Navegação inquieta. Blucher.         [ Links ]

Pépin, C. (2016). As virtudes do fracasso (L. V. Machado, Trad.). Estação Liberdade.         [ Links ]

Rocha Barros, E. L. (2018). Atitude analítica. Jornal de Psicanálise, 51(95),153-159.         [ Links ]

Sharpe, E. (1971). Análise dos sonhos (C. M. Oiticica, Trad.). Imago.         [ Links ]

 

 

Recebido em 3/12/2021
Aceito em 10/12/2021

 

 

1 A letra completa da música pode ser conferida na descrição do vídeo oficial no YouTube: https://bit.ly/3lTxyRe.

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