SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.2 número2Adolescência/deficiência: uma sexualidade adjetivadaO discursivo e o sócio-histórico na noção de letramento índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.2 no.2 Ribeirão Preto ago. 1994

 

DESENVOLVIMENTO

 

A epopéia de tornar-se adulto: sua presença na clínica e nos contos de fadas

 

 

Maria Bernadete A. Contard de Assis1

 

 

Tornar-se adulto é uma tarefa longa e árdua para o ser humano. É um trabalho grandioso de construção de instrumentos internos necessários para o cuidar de si mesmo e, eventualmente, de descendentes. Trata-se de uma verdadeira epopéia, por exigir feitos heróicos.

Lembro-me de uma adolescente que me falou sobre isto, de uma forma simbólica, em uma sessão de psicoterapia. Ela me contou que ia viajar para um acampamento sem os pais e que estava tendo um enorme trabalho para preparar a bagagem que precisaria levar. Enumerou uma a uma: a barraca, o colchonete, os lençóis, o cobertor, as panelas, o fogareiro, o arroz, a carne, o lampião... etc, etc, etc. E dizia: "Imagine que trabalheira. É um sufoco procurar tudo isto, organizar, saber o que está faltando, comprar ou encontrar quem empreste, fazer lista de mantimentos... E depois carregar tudo isto, você nem imagina! E não termina aí. Chega lá, tem que armar tudo. Botar a barraca de pé é um auê, não queira nem saber". E ia daí por diante descrevendo tudo o que precisaria fazer, enfatizando o trabalho imenso que teria. E ao final, disse em alto e bom tom, com convicção: "mas vai valer a pena!"

Se tomarmos esta fala no seu sentido simbólico, podemos dizer que a viagem para longe do país é uma viagem ao longo do desenvolvimento. Arrumar a bagagem é um modelo muito apropriado para aquilo que o adolescente sente que é preciso levar consigo, dentro de si, na formação de seu ego para enfrentar a nova etapa de vida. A barraca é símbolo da casa, da continência, da própria identidade. O colchonete e o cobertor, a proteção contra as angústias, o aconchego de si para consigo. A comida, o fogão, a capacidade de se prover, de se cuidar, de sobreviver. Quanto trabalho para conseguir tudo isto! Quanto esforço para por isto de pé, funcionando! Mas também, quanta realização por chegar lá!

É sobre este trabalho do adolescente para tornar-se adulto que falo a seguir.

Para isto vou recorrer aos contos de fadas que, à semelhança dos mitos, nos falam sobre grandes acontecimentos da vida. Segundo Bettelheim (1979), "Os contos de fadas lidam, de forma literária, com os problemas básicos da vida, especialmente os inerentes à luta pela aquisição da maturidade" (pag. 221). Assim, os personagens perdem-se em florestas sombrias, encontram animais ferozes, lutam com gigantes, enfrentam madrastas assassinas, bruxas e dragões e, depois de tudo, renascem fortelecidos para uma nova fase em suas vidas.

Como demandaria muito tempo analisar os diversos contos que tratam mais especialmente do tema de tornar-se adulto, escolhi um deles que me parece bastante significativo. Trata-se de "João e o Pé de Feijão", em que são retratadas muitas das fantasias e angústias que acompanham o crescimento. A análise será feita predominantemente com base nas considerações de Bettelheim (1979) sobre este conto.

A estória começa com a vaca que já não dá mais leite e precisa ser vendida. Esta situação de penúria ou de dificuldade de abastecimento aparece em outros contos e, em geral, são os fatos mobilizadores para o início da ação do herói, ou seja, é aí que começa seu trabalho em busca de soluções para prover a si e à família.

Ora, a situação de falta de abastecimento representa o novo desmame por que o adolescente tem que passar no processo de tornar-se adulto. A história começa quando o adolescente realiza internamente a percepção de que os pais não serão provedores eternos e que é preciso desenvolver em si os intrumentos capazes para garantir a provisão (em um sentido amplo, de afeto, de vínculo, de trabalho etc.) Mas este será um longo caminho, cheio de perigos a serem enfrentados.

O conto nos fala de um deles: o encontro de João com o homem que lhe oferece as sementes mágicas em troca da vaca. Trata-se do perigo da onipotência. Ou seja, ao se ver em uma situação difícil, o adolescente tende, primeiramente, a utilizar-se de soluções mágicas, onipotentes: tudo vai ser resolvido sem esforço, sem trabalho, sem responsabilidade.

Lembro-me de uma adolescente obesa que imaginava uma máquina que iria comprimindo e amontoando a gordura corpo abaixo e que quando chegasse nos pés seria retirada. Esta máquina representa o instrumento mágico que a livra da obesidade sem que ela precise fazer renúncias, sacrifícios ou esforços.

Na sabedoria do conto será contida, no entanto, a idéia de que se a onipotência representa um perigo, por outro lado, ela impulsiona ao desenvolvimento. Sonhar, acreditar que vai dar certo é, no conhecimento popular, um pré-requisito para realizações. Assim, acreditando na magia das sementes, João planta em si a esperança de uma solução.

O pé de feijão que cresce até as alturas e que, tal como uma escada, leva João ao reino do gigante, representa o crescimento físico do menino que o conduzirá ao enfrentamento interno da figura paterna. Neste encontro-confronto, os acontecimentos relatados no conto correspondem a muitas fantasias inconscientes dos meninos que estão às voltas com as angustias do crescimento.

O gigante é o proprietário de riquezas, o saco de moedas, a galinha dos ovos de ouro e a harpa mágica que representa instrumentos internos, propriedade dos adultos. As moedas simbolizam a capacidade de provisão. Mas o conto vai além, mostrando que não basta ter as moedas: é preciso ter instrumentos de produção, representado pela galinha que "fabrica" (= produz) ovos de ouro. A galinha, por ser uma figura feminina, indica que se trata não só da produção de riqueza material, mas de bebês, que tem uma conotação muito ampla no inconsciente. Produzir bebês significa ser capaz de conceber, gestar, criar, que são atos associados à potência em vários níveis: potência física, intelectual, afetiva, moral etc. A harpa, por sua vez, representa os valores mais elevados a serem alcançados: a harmonia, a arte, a sensibilidade.

No início, eu dizia que tornar-se adulto requer a construção de instrumentos internos necessários à adaptação da fase adulta do desenvolvimento. Este conto nos fala de alguns destes instrumentos: a capacidade provedora, a produtiva criativa e a integrativa.

É interessante notar que, no conto, estes instrumentos, simbolicamente representados, são roubados do gigante. A fantasia de roubo é uma realidade no inconsciente do adolescente que quer ter o que os pais têm ou ser o que eles são. Esta fantasia está associada, no inconsciente, a vivências primárias na relação do bebê com o seio. O bebê tem uma experiência com um objeto (seio) que o alimenta, que são experiências de gratificação, de satisfação e amor. Quando o seio está ausente, o bebê vivencia uma situação de estar sendo atacado por um seio mau e deseja então ter para si toda a riqueza do seio gratif icador para se livrar dos perseguidores (Klein, 1991). Este desejo é acompanhado por fantasias de roubo e de esvaziamento do seio. Em qualquer outro momento da vida em que se deseja ter ou ser o que o outro tem ou é, estas fantasias e vivências primárias podem ser mobilizadas no inconsciente, gerando angústias e sintomas. Especialmente na adolescência, isto pode ocorrer.

Certa vez, um paciente adolescente relatou-me um episódio em que esta fantasia de roubo estava presente.

Este paciente foi fazer um trabalho junto com um senhor de 70 anos. Era um trabalho que exigia esforço físico, incluindo uma caminhada em terreno íngreme. A expectativa do paciente era de que "o velho não iria aguentar os primeiros cem metros de subida". O que aconteceu, de fato, foi o inverso. O adolescente relata sua surpresa, descrevendo que enquanto o velho subia o caminho com passadas largas e vigorosas, carregando um instrumento de trabalho nas mãos, ele vinha atrás, "ofegante", com meio palmo de língua pra fora". Os fatores se sucederam de forma muito interessante. O adolescente acompanha com admiração todo o trabalho do "velho". Resolve, então, lhe perguntar se ele conhecia alguém na região que tivesse uma arma para vender (este paciente tinha um interesse especial em armas). O senhor lhe responde que ele próprio tinha uma muito antiga mas que ainda funcionava bem. Até aqui vemos o interesse do jovem pela potência do "velho", representada na arma. O rapaz faz, então, todo o possível para adquirir a arma, porque o senhor não queria vendê-la. Depois de conseguir comprá-la, ficou todo entusiasmado, considerando ter feito um grande negócio. A partir daí, passou a viver um drama porque precisava levar a arma para casa e, como estava de ônibus, ficou com medo de que a polícia o pegasse e apreendesse a arma. A descrição que ele fez foi muito interessante: "Pensei em embrulhar a arma em jornal, depois no casaco, mas dava muito na cara. Era grande, ficava aparecendo. Já pensou se a polícia visse um menino com um troço grande, o que ia pensar? Vinha mesmo pra cima de mim. Como eu ia explicar? A polícia ia pensar que eu era ladrão e que tinha roubado a arma". Aqui parece a expressão de fantasia de roubo, o que o fez sentir-se com o objeto proibido. Na mitologia, é comum encontrarmos episódios em que os mortais são punidos por desejarem ou tomarem posse de atributos considerados propriedade dos deuses. É o caso de Prometeu que foi castigado por Zeus por roubar o fogo divino e oferecê-lo aos homens. Isto é um sinal de que o ter atributos dos pais pode mobilizar fantasias arcaicas, que envolvem idealização das figuras parentais (que se tornam divindades ou super-heróis) e, consequentemente, os obstáculos para se ter acesso às qualidades que lhe são atribuídas.

Voltando ao conto, outro aspecto a ser notado é o fato de que João consegue se apoderar das riquezas do gigante não usando instrumentos mágicos e onipotentes, mas por intermédio de sua própria astúcia e inteligência. Há uma comunicação, neste ponto, sobre a responsabilidade do adolescente no seu processo de tornar-se adulto. É utilizando suas próprias habilidades que ele alcançará seus objetivos. Daí a importância do adolescente sentir-se intimamente com segurança para empreender as tarefas que lhe são devidas. Quanto mais sentirse incapaz, inseguro em relação às suas habilidades, menos confiança terá para tornar-se adulto. Assim, se João não tivesse confiança em si, não teria coragem suficiente para enfrentar o gigante. Neste estória, o herói conta com o "cochilo" de seu adversário, ou seja, João aproveita-se do sono do gigante para roubá-lo. Durante o sono, o inimigo torna-se vulnerável porque suas armas de ataque estão depostas. A forma de enfrentar o perigo, neste caso, é com a astúcia de se aproveitar do momento de fragilidade. Em outros contos, como na cena inesquecível do filme de Walt Disney sobre a Bela Adomerdda, em que o príncipe enfrenta "todos os poderes do mal" na'figura da bruxa que se transforma em um terrível dragão, o herói luta com o inimigo desperto, potente, em pleno poder de ataque e usa armas como o escudo e a espada. De qualquer forma, é sempre preciso coragem e sabedoria para enfrentar o perigo e esta experiência tem como consequência o fortalecimento, o prêmio de passar para uma nova fase da vida.

Na clínica, observo que quando o adolescente recua diante de uma situação difícil, de o que gera, por vezes, defesas maníacas com que o adolescente procura se aliviar da angustia de se sentir pequeno, frágil, medroso. Aparecem aí o "nem tô", o "dane-se", a síndrome das uvas verdes ("eu não queria mesmo"), ou seja, todo um sistema de negação para evitar o contato com a angústia do fracasso. Em um nível mais grave, este sistema pode desembocar na utilização descontrolada de drogas, que se encaixa perfeitamente em um esquema de negação onipotente e maníaca da realidade interna e externa. Por outro lado, se existe coragem para enfrentar os desafíos, o adolescente sai fortalecido, qualquer que seja o resultado. O que o fortalece é o sentir-se capaz de enfrentar, e não propriamente o vencer.

Outro aspecto interessante de ser comentado sobre João e o Pé de Feijão é a ajuda que ele recebe da mulher do gigante. É ela quem permite sua entrada no palácio, ela quem o adverte sobre os perigos que o gigante representa, ela quem diz que ele precisa trabalhar para conseguir o alimento e é ela quem o esconde quando o gigante se aproxima. Trata-se de uma representação da cumplicidade entre mãe e filho na luta deste para conseguir as qualidades do pai.

No triângulo edípico, a aliança interna com uma das figuras parentais é importante para o fortalecimento. Quando isto não acontece, existe o risco de o casal tornar-se, na fantasia, um inimigo poderoso porque são aliados. Klein (1981) adverte para o fato de que a "figura combinada", ou seja, a fantasia de um ser que é a conjunção de um homem e uma mulher é um dos objetos internos mais terroríficos. Lembro-me de um adolescente que, ensinando-me a jogar truco, disse que "com o casal ninguém pode", referindo-se ao fato de alguém estar com o "zap" e o sete de copas que são as cartas com os maiores valores no jogo.

No final da estória, o gigante persegue João pelo pé de feijão e ele pede para a mãe pegar um machado e cortar o pé de feijão. Ela não consegue e João tem que realizar esta tarefa sozinho, usando sua própria força. O gigante cai e morre. Assim, a história termina com a vitória de João sobre o gigante. Agora ele é o proprietário das riquezas e poderá sustentar o lar. Matar o gigante representa matar simbolicamente o pai idealizado, imenso, poderoso, "gigante", para que ele possa existir como homem. O gigante representa o pai interno narcisista, egoísta, que quer ser o rei absoluto. A luta é contra esta figura. Vencê-la é condição para exigir a própria identidade, identificando-se com o pai bom, provedor, capaz de sustentar o lar.

Em algumas versões da história, uma fada diz a João que todas as riquezas do gigante foram, outrora, de seu pai. O gigante o assassinara e lhe roubara tudo o que possuía. Para Bettelheim (1979), esta é urna forma espuria de justificar o fato de João roubar ò gigante e retira o significado psicológico mais profundo do conto.

Penso que este acréscimo pode ser interpretado, também, como a introdução do processo de identificação: João acaba tendo o que é seu, ou seja, rouba do pai fantasmático egoísta para ser como o pai fantasmático provedor. Ganha, assim, a permissão interna para ter o que é também seu: a masculinidade. Nesta versão, a questão de ter o que era do gigante malvado e, portanto, ser como o gigante malvado, fica resolvida, porque ter o que era do gigante malvado é resgatar o que era do pai bom e, portanto, ser como ele.

Nos contos em que o personagem central é feminino, como em Branca de Neve e a Bela Adomercida, a estória também termina com a morte da bruxa que as impedia de crescer, de se casarem, de serem mulheres. Trata-se da morte da mãemá, egoísta, nascisista, gerada pela fantasia da criança que, ao cobiçar e invejar a beleza e a sabedoria materna, a estraga com seus ataques destrutivos e, depois, teme a retaliação da figura transformada pela própria mente da criança, em bruxa.

Assim, os Contos de Fadas falam da permissão interna para tornar-se adulto, relatando a luta contra os figuras proibitivas. É a representação da revolução interna, pessoal que está a cargo de cada ser que cresce.

A análise de João e o Pé de Feijão pode nos dar uma noção da luta interna, da verdadeira epopéia por que passa um adolescente no processo de tornar-se adulto. É, de fato, uma luta gigantesca. Diante disto, penso que o papel dos adultos pais, educadores, terapeutas é aliar-se a estes heróis para acompanhá-los nesta epopéia, oferecendo-lhes o modelo de força para enfrentamento dos desafios, preparando-os, assim, para carrunharem com seus próprios recursos.

Para encerrar, cito Fernando Pessoa, na tentativa de transmitir a poesia contida no tornar-se adulto.

"Pai, foste cavaleiro.

Hoje a vigília é nossa.

Dá-nos o exemplo inteiro.

E a tua inteira força.

Dá, contra a hora em que, errada,

Novos infiéis vençam,

A benção como espada,

A espada como benção!"

 

Referências Bibliográficas

Bettelheim, B. (1979). A Psicanálise dos Contos de Fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra.         [ Links ]

Klein, M. (1981). Psicanálise da Criança. São Paulo: Mestre Jou.         [ Links ]

Klein, M. (1981). Inveja e Gratidão e outros Trabalhos. Vol. III das Obras Completas de Klein. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

 

 

(1) Endereço para correspondência: R. Quintino Bocaiúva, 983 - Higienópolis Ribeirão Preto CEP 14.500-160