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Temas em Psicologia

Print version ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.2 no.3 Ribeirão Preto Dec. 1994

 

Interdisciplinaridade e psicologia na área da saúde

 

 

Ana Teresa de Abreu Ramos-Cerqueira1

Universidade Estadual Paulista - Botucatu

 

 

Atualmente, refletir sobre interdisciplinaridade é uma exigência em todas as áreas de conhecimento. Entendemos interdisciplinaridade como a incorporação dos resultados de várias disciplinas, tomando-lhes de empréstimo esquemas conceituais de análise para integrá-los, após tê-los comparado e julgado (Japiassu, 1976). Utilizando este conceito, Fazenda (1979) afirma que a interdisciplinaridade pressupõe uma intersubjetividade e não pretende a construção de uma superciência, mas uma mudança de atitude frente ao problema do conhecimento, uma substituição da concepção fragmentária pela unitária do ser humano. A interdisciplinaridade deve caracterizar a colaboração existente entre disciplinas diversas ou entre setores heterogêneos de uma mesma ciência.

A evolução da preocupação coma interdisciplinaridade, atualizada com muita ênfase nos dias de hoje, remonta aos sofistas e romanos, tem um pico no século XVII, com o projeto enciclopédico, e sofre impacto do século XIX, quando a história do saber foi marcada pelo avanço científico, com o crescimento da tecnologia científica e com a consequente multiplicação de tarefas, divisão do trabalho e a especialização (Fazenda, 1979).

Portanto, uma preocupação que se reinaugura quando os saberes e as práticas se fragmentam, resultando na perda do contato com a unicidade da realidade humana. Diante disso, uma nova epistemologia é requerida não apenas para cada ciência, mas, para restaurar as significações humanas do conhecimento. Gusdorf, prefaciando Japiassu (1976), afirma que "as disciplinas científicas especializaram-se e distanciaram-se da existência concreta, constituiram-se como linguagem hermética reservada aos iniciados, e perdidas da sua função primordial: a vinculação do homem com o mundo onde ele reside" (pp. 15-16). O caminho apontado para esta doença da ciência, a sua terapêutica, não trata de cercear o desenvolvimento da especialidade, mas de tornar o especialista um homem da totalidade.

 

SAÚDE: UM NOVO CONCEITO E A NECESSIDADE INTERDISCIPLINAR

A opção por este conceito, cujo foco de convergência é a unicidade do homem, conduziu-nos a abordar a interdisciplinaridade da Psicologia na área da saúde, apresentando primeiramente a proposta de uma nova concepção de saúde, como um modelo de necessidade interdisciplinar.

A área da saúde, representada pela Medicina Contemporânea, tornou-se o exemplo da fragmentação, por ser o reduto dos especialistas e por ter tido seu sucesso garantido pelo empréstimo da classificação das ciências naturais, pelo uso do método anátomo-clínico (a toda síndrome clínica corresponderia uma lesão anatômica) e da experimentação. De um lado, esse sucesso reforçou a medicina do órgão (e portanto a visão organicista da doença), e de outro apontou o seu limite: reconheceu-se o lugar ocupado por fatores genéticos, sócio-econômicos, ambientais e psicológicos. A abordagem múltipla, mas não integrada, ao homem doente permaneceu e foi estimulada. Reconheceu-se a contribuição da microbiologia, da imunologia, das ciências sociais e psicológicas, evolui-se de uma concepção linear da causalidade da doença para uma concepção multifatorial. (Jeammet, Reynaud e Consoli, 1982).

Porém, essas mudanças não garantiram a recuperação da unicidade do homem, evidenciando-se que o reconhecimento desses fatores não basta para se alterar a visão fragmentária, mas que para alterá-las depende-se das interrelações do cientista, em seu quotidiano de pesquisador e professor, tentanto ampliar seu olhar a todos os domínios do conhecimento. Para isso, não basta a reorganização metódica dos estudos e das pesquisas, mas sim a percepção do "homem do mundo" como objetivo de pesquisa. É este foco que poderá permitir uma análise das condições reais em que se produzem, se elaboram e se articulam os conhecimentos, restaurando a concepção unitária do fenômeno humano num novo modelo epistemológico.

Esta perspectiva levou-nos à adesão a um conceito de saúde, compreendida como uma qualidade inerente ao homem, a qual seria resultante do consumo de uma série de meios de vida (entre os quais a medicina, a psicologia, por meio da prestação de serviços, são apenas um aspecto) e da capacidade produtiva do indivíduo. Esta qualidade dependerá do grau de desenvolvimento alcançado pela sociedade como um todo, e não apenas do avanço científico e tecnológico das disciplinas envolvidas na assistência à saúde.

Esta nova concepção reafirma a entrada das ciências humanas e sociais na área da saúde, hegemonicamente ocupada pelas ciências biológicas com sua visão naturalista. A nova problematização da área, a relativização do conceito de saúde e doença passam a exigir a participação da psicologia, da sociologia, da antropologia para abordarem a saúde e a doença como decorrentes das suas relações com a sociedade, com os sistemas políticos, com a vida de relações e seus aspectos simbólicos, retirando-lhes a conotação de estado natural.

Sob esta perspectiva, a interdisciplinaridade se impõe, ao mesmo tempo que se constatam as dificuldades de sua prática. Reconhece-se a interdisciplinaridade também como um campo de forças político-sociais, na medida em que pode estar a serviço de um processo de difusão, de inovações, provocando a necessidade de compreender a natureza psicossocial de fenômenos vistos até então apenas em sua base orgânica. Constata-se a existência de grandes campos de conhecimento, em diferentes estágios de desenvolvimento, cuja hierarquização vigente privilegia as ciências biológicas, consideradas até muito recentemente como as únicas bases científicas dos estudos clínicos. Alterar esta visão dependerá de um trabalho interdisciplinar profícuo.

A prática na área da saúde, como apresenta Birman (1980), só passou a considerar as contribuições das ciências sociais e psicológicas, especialmente a partir dos anos 50. Desde então é que aquela prática passou a ser pensada e realizada levando em conta outros saberes que se articulam de forma complexa com o discurso biológico, porém ainda sem conseguir alterar sua intimidade conceituai.

Isto ocorre porque o conjunto de discursos que compõem a prática da saúde não se refere ao mesmo objeto científico, mas a uma pluralidade de objetos que encontram a sua delimitação e as suas verdades nos saberes de origem. É tarefa interdisciplinar buscar a coerência interna desses discursos no campo histórico que possibilitou sua constituição e emergência, nas demandas do espaço social, e não apenas no questionamento da articulação lógico-formal de seus vários conceitos, ou no nível de colaboração de cada um deles (Birman, 1980).

A preocupação com a busca do enfoque interdisciplinar na área da saúde tem ocupado as organizações americanas e mundiais da área. Uma publicação da ABEM (Associação Brasileira de Educação Médica) e OPAS (Organização Pan-Americana da Saúde) de 1989 (ABEM/OPAS, 1989) analisa a questão, fazendo propostas para garantir que a interdisciplinaridade seja retomada na formação de recursos humanos em saúde, na tentativa de se contrapor à consciência fatiada, à estrutura segmentar do pensamento em saúde, ao determinismo da causa e da culpa que orienta as ações sanitárias. Critica-se, nesta publicação, não apenas o modelo educacional, e o conhecimento segmentar, mas a própria estrutura acadêmica compartimentalizada em departamentos e disciplinas, fechada em si própria e despreparada para a integração (onde as ciências sociais e psicológicas são vistas como meros instrumentos auxiliares, não se incorporando seus saberes para a reflexão e prática da saúde).

 

A PSICOLOGIA, A ÁREA DA SAÚDE E A INTERDISCIPLINARIDADE

A par da constatação da exigencia da interdisciplinaridade na área da saúde, considera-se que esta é necessária no seio da própria psicologia, em função de sua grande multiplicidade. Multiplicidade dada pelos diferentes aspectos e dimensões dos saberes e práticas, resultantes da atuação em áreas antigas e novas, decorrentes do contato com novas populações e demandas que exigiram conhecimentos e linguagem específicos (Figueiredo, 1993).

Karli (1981), em artigo sobre a necessidade e dificuldade da interdisciplinaridade em psicologia, propõe que a necessidade deve ser considerada em relação aos objetivos que se visam, e sugere que ela emerge quando se trata de apreender uma realidade em todas as suas dimensões e interrelações, e, especialmente, quando o saber em questão deve sustentar e enriquecer uma prática que atue sobre uma realidade muito complexa - neste caso, a área da saúde.

Entendemos, pois, que a participação da psicologia na área da saúde, no panorama atual, não deverá se constituir em mais um campo específico de saber, mas deverá promover a interdisciplinaridade na compreensão do homem que vivencia o processo saúde/doença; promover uma interdisciplinaridade que contribua para a superação de diferenças substanciais entre diferentes disciplinas quanto aos critérios de saúde, ideologia, linguagem técnica, modelos de ação, objetivos e enquadres, diferenças que têm conduzido a divergências quanto ao enfoque do registro, da priorização e da interpretação dos dados no que diz respeito "ao estar doente", "a cura" e "ao ter saúde" (Ferrari, Luchina e Luchina, 1977).

Enfim, propomos uma prática interdisciplinar que incorpore os diferentes saberes psicológicos e outros campos de conhecimento que possam contribuir para uma epistemologia da convergência e não da dissociação do homem.

Isto porque o confronto entre especialidades na área da saúde não decorre apenas do fato de serem disciplinas com diferentes corpos de conhecimento, mas, especialmente, por diferirem em seus esquemas referenciais. Esquemas voltados ou para o doente, ou para a doença, que podem incapacitar para o reconhecimento do campo real sobre o qual se deve atuar.

Consideramos ainda que a interdisciplinaridade da Psicologia na área da saúde é uma exigência tanto para a compreensão do processo saúde/doença, quanto para possibilitar, como diz Godoy (1993)(2), ações profissionais que:

a) viabilizem a busca da saúde como um espaço de cidadania e liberdade;

b) sejam eficazes e ultrapassem a visão do indivíduo doente como um ser abstrato, a - histórico e desvinculado de seu cotnexto social;

c) posssam converter o trabalho atual das chamadas equipes multiprofissionais em um trabalho que unifique verdadeiramente o homem, e não o reduza a um único olhar, o olhar organicista, ou o fragmente a partir de óticas oponentes.

Concordamos com Japiassu (1976) que a interdisciplinaridade poderá:

- proporcionar trocas generalizadas de informação e críticas, contribuindo para a reorganização do meio científico e possibilitar a transformação institucional (no caso, as instituições de saúde) que privilegiem a sociedade e o homem.

- ampliar a formação geral de pesquisadores das especialidades envolvidas, levando-os a reverem seu papel social e as posturas críticas diante das informações recebidas.

- preparar melhor os indivíduos para a formação profissional, garantindo não apenas uma atuação multiprofissional, mas também uma vivência interdisciplinar fundamentada na unicidade do conhecimento do humano.

- preparar especialistas para a pesquisa interdisciplinar, fornecendo conceitos para que saibam analisar situações e colocar problemas, e, reconhecendo os limites de sua metodologia, dialogar sobre o trabalho em comum, sobre o confronto dos métodos, sobre a harmonia dos pontos de vista e dos resultados obtidos.

 

Referências Bibliográficas

ABEM/OPAS - (1989). Ciências sociais e biológicas no curso médico: enfoque interdisciplinar. Série de documentos ABEM, no. 12.         [ Links ]

Birman, J. (1980) Enfermidade e Loucura. Rio de Janeiro: Ed. Campus.         [ Links ]

Fazenda, I. C. A. (1979) Integração e Interdisciplinaridade no Ensino Brasileiro: Efetividade ou Ideologia. São Paulo: Edições Loyola.         [ Links ]

Ferrari, H.; Luchina, I. L. e Luchina, N. (1977) La Interconsulta Médico-Psicológica en el Marco Hospitalario. Buenos Aires: Nueva Vision.         [ Links ]

Figueiredo, L. C. (1993). Sob o signo da multiplicidade. Cadernos de Subjetividade, 1(1), 89-95.         [ Links ]

Japiassu, H. (1976). Interdisciplinaridade e Patologia do Saber. Imago: Rio de Janeiro.         [ Links ]

Jeammet, P.; Reynaud, M. E Consoli, S. (1982) Manual de Psicologia Médica. Rio de Janeiro: Ed. Masson.         [ Links ]

Karli, P. (1981). Necessite et difficulté de 1'interdisciplinarité en psychologie. Révue de Psychologie Appliqueé, 31 (2), 79-96.         [ Links ]

 

 

(1) Departamento de Neurologia e Psiquiatria Faculdade de Medicina de Botucatu
(2) Godoy, O. P. (1993). A inserção do psicólogo nas equipes multiprofissionais. Palestra apresentada em Mesa-Redonda promovida pela CRP-06. São Paulo, mimeo.

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