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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.3 no.2 Ribeirão Preto ago. 1995

 

COGNIÇÃO E LINGUAGEM

 

A construção de conhecimentos - examinando o papel do outro nos processos de significação

 

 

M. Cecília Rafael de Góes

Universidade Estadual de Campinas

 

 

Na abordagem históricocultural, a construção de conhecimentos é concebida como processo constituído nas relações sociais, implicando o funcionamento interpessoal e a linguagem. O conhecer envolve mediação pelo outro e produção de significados e sentidos em relação a objetos culturalmente configurados. Assumindo esta referência teórica, temos buscado estudar os modos de participação do outro no funcionamento da criança, tentando explorar a asserção de Vygotsky, segundo a qual "o caminho do objeto até a criança e desta até o objeto passa por outra pessoa" (Vygotsky, 1984, p.33). No presente trabalho pretendemos apontar alguns problemas que uma caracterização generalizante do papel do outro pode trazer para um modelo de constituição social do processo de conhecimento.

Para esta reflexão, tomamos como ponto de partida resultados de um estudo sobre interação criança-criança no contexto pedagógico. O estudo, realizado numa sala de pré-escola pública, composta de alunos com idade em torno de 5 e 6 anos, teve o objetivo de examinar a participação de pares na elaboração de conhecimentos pela criança, durante momentos de atividade que transcorrem sem a presença da professora. Efetuamos as análises do material, que foi documentado em vídeo, orientando a atenção para características do funcionamento intersubjetivo, enquanto instância que constitui modos de conhecer, e para os processos de significação e sentidos que se estabelecem nos episódios interativos. Este propósito articulavase a algumas indagações. Que objetos de conhecimento estão sendo elaborados pelas crianças e entre as crianças? Como transcorrem as trocas dialógicas nestas elaborações? Como atua o outro/par em relação à criança?

Nas análises, as situações documentadas foram agrupadas em dois tipos de instâncias interativas. O primeiro refere-se a momentos de atividade em que ocorrem elaborações sobre objetos instrucionais, e o parceiro ensina ou ajuda a criança. O episódio seguinte revela algumas características típicas destas situações.

As crianças realizam uma tarefa de "ligar"; devem fazer correspondência entre desenho e palavra escrita (nome do desenho). Carlos ajuda Rodrigo.

Carlos - Ligue. Xícara.... aqui. (indicando com o dedo sobre a folha, a ligação a ser feita).

Rodrigo faz a primeira ligação e passa ao item seguinte. Carlos observa.

Carlos - Burro! Aí é bolo, e isso aqui é sorvete! (coloca a mão na cabeça e mostraexpressão de indignação).

Rodrigo - Então tá certo, oh. Carlos -Bolo com sorvete combina?E sorvete com sorvete, seu panaca! Rodrigo - E qual é o sorvete? (referindo-se àpalavra escrita). Carlos retira bruscamente o lápis da mão de Rodrigo para fazer o item. Depois devolve o lápis e desloca a atenção para conversar com wn colega da mesa. Outro menino, Michel, volta-se para Rodrigo, pega o trabalho deste e faz todas as ligações na folha. Rodrigo fica apenas olhando.

Aqui, Rodrigo é "ensinado" por Carlos e Michel. A situação descrita ilustra características recorrentes no material examinado, desta forma de atuação entre as crianças frente a temas instrucionais. O parceiro tipicamente age em relação à criança de acordo com dois modos de participação que podemos denominar de condução estrita e realização direta. Isto é, o parceiro indica a solução (por exemplo, apontando a resposta na folha, traçando letras no ar, desenhando figuras no ar); ou faz o trabalho diretamente (por exemplo, marcando o item na lista, escrevendo a palavra na folha, executando o desenho pretendido, pondo a mão da criança sobre o cartão correto do jogo de memória). O episódio também é representativo de uma característica freqüente das trocas dialógicas: a ajuda do parceiro é, muitas vezes, acompanhada de intensas manifestações de avaliação das capacidades da criança, o que faz com que a construção de conhecimento envolva qualificações e desqualificações unilaterais ou mútuas. Ademais, ao ajudar e avaliar, o outro nem sempre apresenta maior capacidade para a tarefa, como exemplifica a situação abaixo.

Quatro crianças trabalham numa mesa, em atividade de desenho e pintura. Paulo observa Fábio desenhando.

Paulo - Ô louco! Nunca vi caminhão de 3 rodas!

Fábio - Não é de 3 rodas! Uma é aqui, outra aqui, outra aqui e outra do outro laaaaado!

Paulo -É?!

Fábio - Oh, oh, a marca dele ( mostrando um detalhe do desenho para reafirmar que se trata de um caminhão).

Podemos notar que, embora orientado para um aspecto da tarefa, o par avalia, com pouca censura, o que a criança sabe fazer (ô louco!). Também, ao apontar o defeito do desenho, Paulo não ensina Fábio; ao contrário, talvez tenha sido ensinado por ele. Ao exigir um caminhão sempre com 4 rodas visíveis, Paulo usa um critério menos complexo, de desenho em "plano deitado", para avaliar a produção do colega. Este se opõe à crítica de modo impaciente, indicando que a outra roda deve ser presumida e não desenhada ou vista.

Quanto ao segundo tipo de instância interativa que destacamos, trata-se de situações que ocorreram mais freqüentemente no material documentado. Nelas o parceiro não atua "ensinando" e os objetos instrucionais são deslocados do centro das elaborações. Assim, as crianças participam da construção de significados e sentidos vinculados a temas que, pedagogicamente, estariam no entorno da tarefa. Em geral, mas nem sempre, são momentos de interação em atividades cujos passos principais os participantes dominam. Segue-se um exemplo do que costuma ocorrer neste tipo de situação.

As crianças operam com um jogo de pesca. No andamento da atividade ocorrem muitos conflitos sobre os parceiros que "catam com a mão" (desrespeitando a regra de só pescar com a vara) e "estão roubando". A certa altura Rodrigo irrita-se com Alex.

Rodrigo - Vou falar tudo prá Marisa (professora) que cê tá roubando, catando com a mão. Alex responde acusando Bia.

Alex - E ela cato esse. Pode ir me dando, Bia! Tá faltando um Rodrigo, ela cato. Ela tá com dois.

Depois de outras acusações e negociações, começa a se configurar a vitória de Bia.

Rodrigo - A Bia não tem nenhum!

Luciana - Ela tinha dois. Fica aí enganando os outros.

Bia - Eu tenho um de cada.

Rodrigo - Mas você tinha dois.

Luciana - Ela tinha três roxo!

Rodrigo - Não, dois roxo;

As crianças olham para Bia, que conta os peixes pescados. O jogo é desligado e religado. No novo turno, Bia pesca rapidamente.

Bia - Eh! Oh, Rodrigo, to por um um, viu?

Rodrigo - Tá, to vendo!

Bia efetua mais uma pesca.

Bia - Eu ganhei!!

Rodrigo - É. (em tom de indiferença).

Luciana - Aquela hora eu tinha ganhado, né, Rodrigo?

Rodrigo - Eu já ganhei um monte de vezes esse joguinho!

Este segmento representa bem a dinâmica da atividade inteira. Praticamente não são focalizados conceitos e operações que compõem o jogo. Mesmo a regra principal ( pescar com a vara) é só indiretamente abordada, e é usada para avaliar a conduta dos parceiros. Estão em questão a busca e a preservação de prestígio; há preocupação em qualificar-se e qualificar o colega. Os objetos de conhecimento mais freqüentemente elaborados, se é que podemos recortá-los, dizem respeito às pessoas, suas capacidades, suas condutas. Nas situações observadas, as crianças mostram uma disposição preferencial para tomar como tema as pessoas e as inter-relações ocorrentes.

Não é que sejam ignorados objetos instrucionais pertinentes à tarefa - eles são mencionados, mas a serviço de outras elaborações. Como mostram outros momento do episódio presente, além dos números, que são freqüentemente identificados para denunciar vitória ou derrota, a cor do peixe é citada para indicar suspeita de trapaça (Tá faltando um roxol); nomes de peixes são invocados para demonstrar gestos de ajuda (Vai colocar a capivarinha aqui, Bia, dal cê fica segurando)', noções espaciais são referidas para marcar o êxito (Pronto, já catei o primeiro de cima)', e a forma de operar é verbalizada para indicar a falta de êxito (Tinha que deixar assim; tinha que deixar até pendurar; eu não conseguia, eu abaixava).

As observações deste estudo apontam para características interessantes do funcionamento entre pares, em termos de orientação para objetos de conhecimento e dinâmica intersubjetiva de elaboração. Quando não estão sob a supervisão direta da professora, as crianças realizam as tarefas (isto é, interagem orientadas para a tarefa) mas suas elaborações podem estar só parcialmente postas em objetos instrucionais e, por vezes, predominantemente postas em objetos não instrucionais. Em geral, a criança e o par elaboram sobre pessoas (inclusive elas próprias), seus atributos e suas ações, fazendo flutuar o tema sob elaboração, interagindo mais em torno do gerenciamento das relações, da qualificação e avaliação dos participantes enquanto pessoas.

As elaborações tendem a pautar-se por parâmetros de correção em que o certo e o errado têm a ver com a pessoa, seus atributos e condutas. Naturalmente, quando as crianças, entre si, focalizam um assunto de caráter instrucional, utilizam critérios de precisão de conhecimento (como acontece quando negociam sobre a escrita de uma palavra ou uma operação de soma). Entretanto, facilmente se deslocam para outras elaborações, em que o certo e o errado definem-se menos pela precisão e mais pela qualificação, de forma que se superpõem manifestações sobre saber/não saber e ser/não ser.

Na interação de pares, os objetos de conhecimento alternam-se ou superpõem-se ao sabor da dinâmica das relações; não se mostram estabilizados e, muitas vezes, são dificilmente recortáveis, identificáveis. Ademais, parece-nos que o outro que media o encontro da criança com objetos é intensamente tematizado enquanto "sujeito/objeto".

E bastante diversa a forma pela qual a professora atua junto à criança, conforme análises que fizemos anteriormente nesta mesma sala pré-escolar (Góes, 1993). A participação da professora é orientada para a tarefa, quase sempre atuando junto à criança com foco em objetos de conhecimento configurados pedagogicamente - a linguagem escrita, as propriedades de objetos, conceitos matemáticos, as regras dos jogos, etc. O deslocamento do foco para as relações interpessoais ocorrentes, a qualificação da criança, em termos de seu desempenho ou conduta, dá-se de forma subsidiária (ainda que isso não confira menor relevância aos objetivos de disciplinamento). Esta diferença de ordem geral indica que saber certo conhecimento e ser certa pessoa são instâncias de elaboração que se superpõem na interação da criança tanto com outra criança, quanto com a professora, mas isso se dá de maneira distinta em cada caso.

 

O OUTRO E O PROCESSO DE CONHECIMENTO

Não é nosso propósito estender considerações sobre aspectos distintivos da atuação do par e do adulto em relação à criança; diferenças são certamente esperadas, sobretudo no contexto pedagógico. O que pretendemos sugerir é que análises deste tipo apontam para a importância de um exame do tratamento conceituai dado ao funcionamento intersubjetivo, na visão histórico-cultural, pois, daquele tratamento delineiam-se certas possibilidades de interpretação do processo de conhecimento na criança.

Neste sentido, o debate atual sobre a noção de intersubjetividade tem apontado o fato de que as análises do desenvolvimento infantil tendem a caracterizar, implicitamente, um funcionamento intersubjetivo prototípico, concebido como um processo que se inicia como regulação pelo outro e que assume um caráter de partilha, suporte e harmonia. As críticas alertam para uma insuficiência de atenção aos movimentos interativos ou para a diversidade, não linearidade e irregularidade das relações eu-outro (como discutem, por exemplo, Elbers, Maier, Hoekstra e Hoohsteder, 1992; Smolka, Góes e Pino, 1995). Quanto ao caráter diverso e complexo das relações eu-outro, devemos recordar, também, uma das importantes contribuições de Wallon (1975), ao considerar que o desenvolvimento da consciência do eu implica movimentos de adesão e oposição aos modelos, de antago-

A diversidade de atuações do outro remete, ainda, a preocupações quanto às formas convencionais de se caracterizar a simetria ou assimetria das interações. Costuma-se configurar como simétrica a interação de "iguais", com base em critérios de idade e capacidade. No entanto, ao participarem da elaboração de conhecimentos, os parceiros determinam o lugar da criança na rede de relações pessoais, concedem ou negam lugares de prestígio. Criam e consolidam assimetrias que emergem dos antagonismos, disputas, avaliações, ajudas e cumplicidades.

Estas várias questões vinculam-se ao problema do estatuto teórico do "outro" na psicologia. A este respeito, Kharash (1991) argumenta ser necessário libertar, conceitualmente, o outro da visão reducionista de um eu autônomo. Nos diversos modelos tradicionais, apesar de variar a atribuição de autonomia ou dependência do sujeito frente à influência do ambiente social, o outro é concebido como um satélite supérfluo, não constituindo uma peça conceituai efetiva. Pode ser claramente negligenciado ou ter como função consolidar a figura do eu, ou ainda, ser considerado importante e autônomo, porém, apenas enquanto internalizado, idealizado pelo eu. Neste último caso, o problema está na redução que se faz ao despregar a forma idealizada de sua origem nos encontros com o outro real. Assim, "privado de quaisquer amigos ou inimigos reais, perseguidores ou vítimas reais, autoridades ou subordinados reais, o eu torna-se um mono-sujeito isolado e solitário". (Kharash, 1991, p.50). Mesmo atribuindo alguma relevância às relações sociais, o contexto teórico da psicologia tem privilegiado um paradigma "rmrtio-sujeito". Esta tendência acaba por marcar, também, as tentativas de consolidação de um paradigma "inter-sujeito".

Nesta linha, devemos indagar sobre a mudança teórica que se opera com a inclusão de um terceiro termo enfre sujeito cognoscente e objeto. Para distinguir-se nitidamente de concepções preformistas e ambientalistas, o argumento da constituição social do processo de conhecimento precisa estar articulado ao exame das significações que se constróem na diversidade das relações eu-outro.

Este apontamento é especialmente relevante no que concerne à tese da mediação. Com base em um modelo ensino-aprendizagem e em um recorte nítido dos termos da relação de conhecimento, tende-se a ver o sujeito mediador como uma pessoa que, mais ou menos deliberadamente, ensina a criança (sujeito cognoscente) sobre algo (objeto) sempre externo aos sujeitos em interação. No material empírico antes mencionado, a noção deste funcionamento prototípico até poderia, aparentemente, "aplicar-se" às ocorrência que envolvem a participação da professora, porém, o esquema desestabiliza-se quando é focalizado o parceiro. Isto nos indica que não deve ser tomada como homogênea, independentemente de especificações quanto ao outro-participante e às circunstâncias interativas concretas, a interpretação do processo de conhecimento como relação entre sujeito cognoscente, sujeito mediador e objeto de conhecimento.

Entre outros problemas esta a sugestão de um sujeito mediador uniforme, enquanto "agente pedagógico" da cultura, cuja ação representa o que tende a acontecer (ou o que se idealiza que deva acontecer) em contextos instrucionais formais. E isto tem uma decorrência importante. Das considerações de Vygotsky (1987) a respeito da palavra e conceito, e do trabalho conceituai na instituição escolar, podemos derivar a idéia de que a caracterização do agente pedagógico é a de um outro que atua marcadamente orientado para estabilizar sentidos, para focalizar significados convencionais e sistematizados. Se tomamos este papel como prototípico, tendemos a reduzir a própria dinâmica da linguagem e, portanto, das significações, na relação sujeito cognoscente - sujeito mediador - objeto.

Quando a relação intersubjetiva em torno de objetos da cultura é configurada em termos genéricos e, independentemente de instâncias concretas de interação e da diversidade de contextos institucionais, o outro é inserido na construção de conhecimento com um papel homogêneo e genérico; isto torna-o, afinal, abstrato. Em resumo, queremos salientar o risco de que um modelo generalizado do funcionamento intersubjetivo possa alimentar um modelo de constituição social do conhecimento que é muito "didático". Este qualificativo é empregado em duplo sentido: de uma concepção muito disciplinada e de uma caracterização tipicamtnit pedagógica do processo.

 

Referências Bibliográficas

Elbers, E.; Maier, R.; Hoekstra, T. e Hoogsteder, M. (1992) Internalization and adult-child interaction. Em, R. Maier (Org.) Internalization: Conceptual Issues and Methodological Problems. Utrecht: Rijsuniversieit Utrecht        [ Links ]

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Kharash, A.U. (1991) The "other" and its function in the development of the seif. Soviet Psychology, janeiro/fevereiro.         [ Links ]

Smolka, A.L.B.; Góes, M.C.R. e Pino, A. (1995) The constitution of the subject: a persistent question. Em, J.V. Wertsch, P. Del Rio e A. Alvarez (Orgs.) Sociocultural Studies of the Mind. Cambridge:         [ Links ]

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Vygotsky, L.S. (1987) Problems of General Psychology. The Collected Works of L.S. Vygotsky -vol. 1. New York: Plenum Press.         [ Links ]

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