SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.8 issue13Investigations on W. Bion's method: a reading of “On arrogance”Between body and word author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Psychê

Print version ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) vol.8 no.13 São Paulo June 2004

 

ARTIGOS

 

Terror e compaixão1

 

Terror and compassion

 

 

Edilene Freire de QueirozI

Universidade Católica de Pernambuco. Laboratório de Psicopatologia Fundamental e Psicanálise

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Terror e perversão são manifestações do humano. As pulsões, na sua desmesura e excesso, desencadeiam perversões. A reação a elas expressa-se por meio da sensação horripilante de medo, de repulsa e de aversão. Tentando colocar as pulsões na sua justa medida, os gregos as viviam, por identificação, através das encenações trágicas. O objetivo era provocar no expectador a vivência do pathos como experiência trágica fundamental para, a partir dela, poder o homem adquirir o conhecimento de si pelo sofrimento, organizado no domínio fronteiriço do horror e da compaixão.

Palavras-chave: Compaixão, Excesso, Tragédias gregas, Sofrimento, Compaixão.


ABSTRACT

Terror and perversion are manifestations of the human being. Drives, in its discourtesy and excess, trigger perversions. The reaction to them is expressed by means of terrible sensation of fear, of repulses and aversion. Trying to find the just measure for drives, the Greeks experienced them, by identification of a dramatic script containing tragic stages. The aim was to provoke in the audience an experience of the pathos as a tragic fundamental experience, enabling one to acquire self- knowledge through suffering, organized within the borderlines of horror and compassion.

Keywords: Compassion, Excess, Greek’s tragedies, Suffering, Compassion.


 

 

Há uns cinco anos escrevi um artigo – publicado na Revista SimposiuM, editada pela UNICAP – intitulado “Do pathos do teatro grego à paixão da contemporaneidade”, que concluía com uma reflexão sobre a vida contemporânea das cidades:

nela não vemos mais o espaço coletivo do teatro grego onde homens, mulheres, crianças e escravos, igualmente sentados, inclinavam seu dorso para ouvirem e verem cenas trágicas que propiciavam a experiência do pathos. Na vida contemporânea das cidades, todos – homens, mulheres, crianças e trabalhadores se inclinam diante do consumo e da violência, e o sentimento que os invade não é mais o do terror e o da compaixão, sentimentos suscitados pelas tragédias gregas, e sim o da angústia e o do pânico, quando não prevalece o pacto social perverso, tão comum nas cenas do cotidiano (Queiroz, 1999, p. 84).

Nesse trabalho, pouco me detive sobre tais sentimentos – o terror e a compaixão –, e sim sobre o pathos como sofrimento e paixão.

Ao participar de uma mesa-redonda a respeito do Imaginário do terror na literatura e nas artes, cujo objetivo foi considerar a maneira como cada uma dessas disciplinas, inclusive a psicanálise, enfrentou o mal, o negativo, na história dos indivíduos e na das coletividades no século XX, convocaram-me a entrar no imaginário do terror, e novamente tomei o teatro grego como palco para tais discussões. A escolha desse caminho repousa no fato de que há, entre a tragédia grega e a psicanálise, afinidades já apontadas por Freud n’A interpretação dos sonhos, quando a compara ao trabalho de uma psicanálise:

O que tenho em mente é a lenda do Rei Édipo e o drama de Sófocles que traz o seu nome (...) a ação da peça consiste em nada mais do que o processo de revelar, com pausas engenhosas e sensações sempre crescentes, um processo que pode ser comparado ao trabalho de uma psicanálise (1900, p. 277).

Ao se problematizar a morte, a doença, a dor, em suas causas mais enigmáticas, e efeitos em um corpo, em uma família, em uma comunidade, em uma etnia, em uma região, em um continente, evocam-se freqüentemente adjetivos como inomináveis, indizíveis, impensáveis e irrepresentáveis, uma vez que tais questões suscitam idéias que beiram o limite do insustentável e do catastrófico, e por isso tendem a ser classificadas como “ações des-humanas”, arrepiantes e terroríficas.

Nós, herdeiros da civilização helênica, sabemos que o termo “humano” conota vários significados. A morte, a doença, a dor, são maneiras de expressão do pathos, predicativo que indica a condição do homem como ser trágico, frágil e mortal. Como ser pático, ou seja, ser afetado pelo pathos, significa “aquele que sofre”, mas também “aquele que adquire experiência por meio da dor”. Essa condição trágica e fundamental do homem coloca-o à mercê das piores atrocidades como agente e vítima. Os tragediógrafos gregos costumavam distinguir tal característica daquela relativa ao humano como ser social, político; por isso preferiam, ao escrever suas peças, utilizar o termo brotos (homem votado para a dor e para o trágico), ao invés de anthropos, termo relativo ao segundo sentido.

Portanto, nem sempre ações arrepiantes e terroríficas são também “des-humanas”. Se é verdade que o selvagem, o sobrenatural e as catástrofes advindas de fenômenos da natureza – ações além e aquém do humano – provocam medo e terror, e fazem o corpo reagir fisicamente com sensações de arrepios, por causa da iminência da morte, é também verdadeiro que ações exclusivamente humanas provocam iguais sensações. Eis os exemplos mais significativos: o holocausto dos judeus e as atrocidades vividas pela humanidade em períodos de guerra.

A maneira como os gregos encaravam e viviam o sofrimento adquiria para eles valor ético. Dessa forma, o teatro tornou-se instrumento para a formação da conduta moral, e Sófocles, seu maior representante – considerado por muitos um escultor de homens –, passou a pertencer à história da educação humana. Em Paidéia: a formação do homem grego, Werner Jaeger comenta sobre: “é na sua arte que pela primeira vez se manifesta a consciência desperta da educação humana” (1986, p. 223). A força provocadora da hybris (da desmesura) era responsável por todas as violações, atrocidades e excessos praticados no desenrolar das tragédias, e tinha como objetivo despertar no cidadão dois sentimentos fundamentais: o terror e a compaixão. Observa Aristóteles, na Poética, que as tragédias deviam imitar ações que despertassem esses dois sentimentos; os tragediógrafos que sugerissem pelo espetáculo, não o tremendo, mas o monstruoso, não a piedade, mas a repugnância, nada produziam de trágico.

A construção do trágico requeria certos requisitos: olhando as representações daquilo que provoca repugnância aprende-se a reconhecê-las, e o reconhecimento (anagnorismos), no sentido das tragédias, significava passar do estado de ignorância ao de conhecimento, realizado pela peripeteia: a peripécia do drama era produzir uma mutação dos acontecimentos no seu contrário. O mito, como alma da tragédia, mostrava a catástrofe; o pathos, a ação perniciosa e dolorosa. A imitação por meios diversos – pelos meios, objetos ou modo empregado – construía a representação. Imitar, observa o autor, “é congênito no homem (...) e os homens se comprazem no imitado” (Aristóteles, 1992, p. 27).

A elocução, ou seja, a expressão dos pensamentos, produzia-se por meio do uso de uma linguagem cuidadosamente articulada: jogava-se com a polissemia das palavras ou lançava-se mão de outros campos lingüísticos, como o dórico, o jônico e o homérico. A finalidade era provocar ambigüidades e zonas de conflitos, de modo a gerarem no espectador uma consciência dilacerada, resultante de uma contradição nunca suprimida inteiramente. As paixões vividas nos seus excessos e desmesuras, estimuladas pela música e pelas reflexões do couro, suscitavam o terror e a compaixão, purgando as emoções, ou seja, produzindo uma catarse.

Entretanto, tal efeito só acontecia, observa ainda Aristóteles, se o tragediógrafo evitasse narrar fatos ocorridos e representasse o que poderia acontecer pela verossimilhança; daí a importância do mito como uma narrativa ficcional composta de atos.

(...) o elemento mais importante é a trama dos fatos, pois a tragédia não é imitação de homens, mas de ações e de vida, de felicidade e infelicidade (...) os personagens não agem para imitar caracteres, mas assumem caracteres para efetuar certas ações (Aristóteles, 1992, p. 41).

Na tragédia, a fidelidade das ações aos acontecimentos da vida dos cidadãos gregos, ao invés de produzir uma catarse, era vivida como algo monstruoso ou ridículo. Bania-se dos concursos dionisíacos quem assim procedesse na construção do drama. Essa a razão pela qual o trágico Frínico, grande predecessor de Ésquilo, foi multado pelos atenienses e proibido de representar, ao submeter a comunidade dos cidadãos à revivência do desastre e da derrota de uma guerra no espetáculo A captura de Mileto.

A cena trágica tinha que guardar um certa distância da realidade vivida – um estado de estrangeirice –, por isso buscavam-se palavras de outros campos lingüísticos ou imitações de catástrofes de outros povos. O êxito de Os persas, tragédia de Eurípedes, deu-se justamente por retratar a derrota dos bárbaros pelos atenienses. Só os infortúnios de outrem prestavam-se a uma encenação trágica. O infortúnio, a morte, a dor deviam vir de fora, como um estrangeiro, e não como algo familiar. Consideravam eles que mostrar-se tornava o sujeito vulnerável, pois temia-se não coincidir a leitura da imagem projetada com a boa imagem que cada um desejava apresentar de si.

Importa lembrar que a tragédia, segundo Antonio Freire (1985), originar-se-ia de uma das modalidades do lirismo – o ditirambo, uma composição lírica entusiástica, um canto feito em honra de Dionísio, um deus estrangeiro, desconhecido. Com esse artifício, a tragédia destacava o sentimento de ser tocado por outrem, inerente ao próprio sentido da paixão – o de ser afetado –, ao mesmo tempo em que mostrava o Outro existente em cada ser humano, desconhecido e atroz. Assim, o estatuto paradoxal de estrangeiro de si, vivido por meio do jogo de identificações alternadas e favorecido pela retórica, fazia o espectador obter a experiência do conhecimento de si e de suas paixões: conhecimento adquirido, prevalentemente, pela via do sensível.

O teatro tornou-se, assim, uma via pela qual o homem confrontava-se com seu lado trágico, terrificante e catastrófico. Sabia-se, desde então, que o ato violento é inerente à condição humana, e não algo de “desumano”. Cada homem, cada civilização, deve encontrar caminhos para o escoamento de tais pulsões. A sublimação foi apontada por Freud como uma das possibilidades, mas também ele não deixou de considerar a guerra como algo inevitável.

Se o desejo de aderir à guerra é um efeito do instinto destrutivo, a recomendação mais evidente será contrapor-lhe o seu antagonismo, Eros. Tudo o que favorece o estreitamento dos vínculos emocionais entre os homens deve atuar contra a guerra. Esses vínculos podem ser de dois tipos. Em primeiro lugar, pode ser relações semelhantes àquelas relativas a um objeto amado, embora não tenham uma finalidade sexual (...) O segundo vínculo emocional é o que utiliza a identificação. Tudo o que leva os homens a compartilhar de interesses importantes produz essa comunhão de sentimento, essas identificações (1932, p. 255).

A maneira como os gregos purgavam os sentimentos destrutivos não evitava que as guerras acontecessem, mas desejavam eles que, em uma mesma civilização, tais sentimentos não quebrassem o vínculo emocional que os unia. Não foi em vão que Freud comparou o trabalho do teatro grego à psicanálise, acreditando que tanto um quanto outro trabalhavam na direção da catarse e dos processos sublimatórios. Nesses contextos a via do sensível prevalecia em relação à razão.

Porém, o teatro grego só durou um século, embora até hoje as tragédias gregas continuem a exercer efeitos éticos entre nós. Comparo-as com as tragédias encenadas em filmes como Cidade de Deus, Carandiru etc. Os atores misturam-se com os protagonistas do catastrófico, garantindo a realidade da cena ou a cena real da realidade? As vivências trágicas do cotidiano são colocadas em cena, escancarando o lado perverso da humanidade. Que sentimento vive-se hoje, ao assistirmos às cenas trágicas do cotidiano mostradas nos “reality movies”?

Arnaldo Jabor, em uma crônica publicada na Folha de São Paulo, em 12/10/2002, sobre Cidade de Deus, foi muito feliz quando observou que o filme não conta o que aconteceu com outrem, mas o que está acontecendo; desmascara nossa crueldade e provoca na platéia um estado de desamparo. Nossa vida de espectador fica ridícula diante do escancaramento da tragédia vivida pelas periferias brasileiras e ao mesmo tempo lança-nos para dentro das chacinas. Diferentemente das tragédias gregas, nada há de catártico, mas sim de monstruoso. O terror invade-nos e a compaixão não vem. É a nossa realidade mais cruel que está em jogo; a morte espreita-nos em cada esquina, não pela fatalidade da vida, mas porque somos impelidos pela violência da sociedade à qual pertencemos. A distância necessária para mediar o sentimento de compaixão não existe. Ver algo que não se deseja ver embaraça o sujeito a tal ponto, que somos levados a viver três tipos de sentimentos:

• pânico ante a ameaça de morte;

• um estado de indiferença como defesa diante da realidade. Passamos ao largo das nossas crianças, nas esquinas, com tubos de cheiracola, ou prostituindo-se por qualquer centavo, como se isso não nos dissesse respeito;

• ou denegamos o que vemos e nos alienamos, buscando coisas supérfluas.

Os dois últimos, em meu entender, constituem maneiras de se estabelecer um pacto perverso passivo: violentos e violadores são os Outros, assim nos livramos da culpa. Também o primeiro mantém aproximações com a perversão: os sentimentos de horror, de pânico ou terror, embora contrários ao de satisfação e prazer, advêm de um mesmo desejo. A aversão e o desejo são os dois lados de uma mesma moeda. Não quero com isso subestimar ou valorar tal ou qual sentimento, e sim pôr em questão um certo estado de impotência vivido pela maioria, esperando sempre que um Outro, também imaginário, nos livre de ver a outra face de nós mesmos. Olhar de frente a Medusa petrifica-nos. Onde está a compaixão?

 

Referências Bibliográficas

ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Ars Poética, 1992.        [ Links ]

FREIRE, Antonio. O teatro grego. Braga: Publicações da Faculdade de Filosofia, 1985.        [ Links ]

FREUD, S. (1900). A interpretação dos sonhos. In: ___. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1985. vol. IV.        [ Links ]

________. (1932). Por que a guerra. In: ___. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1985. vol. XXII.        [ Links ]

JABOR, Arnaldo. Cidade de Deus desmascara a nossa crueldade. Folha de São Paulo. São Paulo, 12/10/2002.        [ Links ]

JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1986.        [ Links ]

KEHL, M. Rita. A psicanálise e o domínio das paixões. In: NOVAES, Adauto (org). Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.        [ Links ]

LORAUX, Nicole. A tragédia grega e o humano. In: NOVAES, Adauto (org). Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.        [ Links ]

MEYER, Michel. (1991). O filósofo e as paixões: esboço de uma história da natureza humana. Coimbra: Asa, 1994.        [ Links ]

QUEIROZ, E.F. Do pathos do teatro grego à paixão da contemporaneidade. Revista SymposiuM. Ciências Humanidades e Letras. Universidade Católica de Pernambuco. 3(especial): 79-85, dez/1999.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Edilene Freire de Queiroz
Rua Virgílio de Oliveira, 338 – 52061-280 – Casa Forte – Recife/PE
Tel.: (81)3268-548 2
E-mail: edileneq@truenet.com.br

Recebido em 21/07/03
Versão revisada recebida em 26/02/04
Aprovado em 27/02/04

 

 

Notas

IPsicanalista; Doutora em Psicologia Clínica (PUC-SP); Professora Titular, Coordenadora do Mestrado em Psicologia Clínica e do Laboratório de Psicopathologia Fundamental e Psicanálise da UNICAP; Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental.
1Trabalho apresentado no Congresso Internacional sobre Imaginário do Terror – XII Ciclo de Estudos sobre o Imaginário, organizado pelo Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre o Imaginário, da Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco, em Recife, no período de 27 a 30 de outubro de 2002.