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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.8 n.13 São Paulo jun. 2004

 

RESENHAS

 

 

José A. P. FerreiraI

Endereço para correspondência

 

 

MEYER, Luiz. Família: dinâmica e terapia – uma abordagem psicanalítica. 2. ed. revista e atualizada. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002. 276p. ISBN 85-7396-183-X.

Com o silêncio com que brota uma planta, sem nenhum alarde, surgiu entre nós, em 2003, o livro de Luiz Meyer Família: dinâmica e terapia – uma abordagem psicanalítica, segunda edição, revista e atualizada, pela Editora Casa do Psicólogo. Reproduz o de mesmo título publicado em 1983, tornado agora a Parte I; e acresce a este a Parte II, “Desdobramentos clínicos”, que trata da experiência mais atual do autor.

Sua apresentação é simples e bonita, com uma capa bem sugestiva: parte de uma planta, com caule e folhas verdes fortes, sob um quadriculado. Somos levados a pensar no tema deste estudo: a família, com suas ramificações e interações, sob normas que enquadram a convivência. A família, que muitas vezes se sente presa – basicamente, enredada em padrões de relacionamento que se impõe e rigidamente mantém: o quadriculado se torna cadeia.

A matéria não é tão nova. Estamos já a algumas décadas dos primeiros tempos da colocação em cena da família, na consideração da patologia de um indivíduo, perspectiva bastante explorada, por exemplo, nos trabalhos de Palo Alto, Califórnia, e de R. D. Laing na Inglaterra, e que gerou variadas formas de atendimento a famílias. O autor, um tanto modestamente, afirma que “todas têm o mesmo objetivo”: a mudança de foco, tirando-o do paciente-emergente e fazendo-o convergir sobre a interação familiar. É provável que sim. No entanto, as dificuldades que a tarefa impõe ao terapeuta, assolado pela ansiedade no contato com a família, comumente geram movimentos defensivos por parte deste. A mudança de foco pode ser feita de um modo ritualizado, ou prematuramente, quase como uma pronta contraqueixa à da família, apenas invertendo-se as polarizações (“O doente não é ele, são vocês”); o embate levará, quando muito, a uma pseudo-aceitação, pela família, da nova versão. Ou – variações sobre o mesmo tema – surgem alianças com um ou outro dos membros; atitudes de irritação ou proximidade; ímpetos de reassegurar, de aplacar ansiedades, seguidos de intervenções que propõem “soluções mais razoáveis”. Os conflitos permanecem intocados. A cadeia familiar, dura e triste, encontra aí a das palavras do profissional terapeuta, mais intelectualizada e elegante: a sedução é inevitável.

Não se trata, no livro, de evitar os sentimentos suscitados. Pelo contrário, trata-se de acolher a massa bruta das vivências familiares e então trabalhá-la, trabalhá-la profundamente em si próprio, para oferecêla, uma vez compreendida, em uma interpretação. O livro de Luiz Meyer é um convite ao trabalho.

Com um pensamento puramente psicanalítico – o que se revela até no cuidado em denominar esse terreno Psicoterapia familiar de orientação psicanalítica –, o autor vai introduzindo o terapeuta-leitor no mundo de relações vívidas que constituem a interação familiar. Delimita seu campo de ação, nomeando pontos importantes de que não tratará (por exemplo, critérios para a seleção de casos), e aquele que será objeto de estudo: a dinâmica familiar. Arma-se de uma rede de conceitos – basicamente as noções kleinianas de mundo interno, objeto interno, relações objetais, defesas, ansiedades (persecutória e depressiva), dentre outras, e as provindas dos estudos de Bion sobre grupos (grupo de trabalho, grupo de pressupostos básicos), que domina de forma pouco comum, além de utilizar modelos da física (câmara de Wilson, campo magnético). Recorda-nos – em Glossário ao final, ao longo de todo o texto – o que vêm a ser. Talvez pudéssemos dizer: apresenta-nos. Pois mesmo quem com eles já tem alguma familiaridade sentirá que não lhes extraíra tudo que podem dar. O manejo das noções de objeto, de identificação projetiva, de conflito (intrapsíquico; e sua externalização); a discriminação dos tipos de dependência; a captação dos padrões de circulação de objeto (parece haver pelo menos duas noções de objeto) – tudo isso colhido de forma clara na transferência – mostram aqui toda a complexidade e a fertilidade dessas concepções, absolutamente longe das costumeiras reduções de que são alvo, geralmente por uma crítica que nem sempre prima por conhecê-las. A elas, delas derivada, vem acrescer outra, de sua lavra, apresentada sob o neologismo “familidade” (ou “parte de familidade”), conceito-síntese de suas idéias. Com raízes na noção bioniana de grupalidade, compreenderia a parte da vida mental incessantemente estimulada e ativada pela experiência na interação familiar, ao mesmo tempo que forjada por ela. Constitui-se pelas relações familiares, e as instrumenta. “Ter uma família”, “ser uma família” são sentimentos provindos dessa entidade que, além de ser a estrutura identificante da personalidade enquanto membro de uma família, organiza o relacionamento entre cada membro e o grupo familiar, e este como um todo.

Se assim se arma, também se desarma. Não procura apoiar, não orienta, não toma partido. Dando a impressão de estar despojado de qualquer coisa que não seja uma fina sensibilidade, que capta e traduz mínimos movimentos com recursos da linguagem poética, seu compromisso é – sem criticar ou infantilizar, sem ser maternal ou paternalista –, trabalhando analiticamente, a gradual revelação à família de seus padrões de funcionamento enquanto unidade. Sua firme percepção da família enquanto grupo – que o leva, coerentemente, a compreender qualquer manifestação, mesmo um sonho, que sabe ser o mais individual dos produtos mentais, como expressão geral, isto é, do paciente-família – fará germinar e, se houver tempo, nascer uma consciência especial, a da responsabilidade pelo que é por ela gerado. O produto patologia – ou um membro doente, o pacienteemergente – revela-se então quase como uma necessidade lógica do trabalho de criação comum de todos os membros.

Creio ser, até certo ponto, igualmente surpreendente e fascinante para o leitor e para o paciente-família o ingresso nesta compreensão do mundo familiar, este que cada um de nós traz em si e julga conhecer tão bem. Evidentemente, os trajetos de um e outro são diferentes. A família responderá com vigor, mais ou menos dissimuladamente, a quem, a par de acompanhá-la na descoberta de si própria, é sentido como um estrangeiro, um intruso, que vem, no fim das contas, ameaçar sua equilibrada organização. Insistirá na versão primeira; procurará localizar o mal em outro membro; tentará “partir” o trabalho conjunto em terapias individuais. Não é raro que não suporte prosseguir.

O leitor... Bem, este passará por capítulos mais teóricos e outros mais “clínicos”, por assim dizer, em que acompanhará a descrição de sessões passo a passo. Teoria e prática mesclam-se também dentro de capítulos, realimentando-se, e à nossa inteligência, continuamente. Percorrerá um apanhado da história da terapia de família, acompanhando logo de início (capítulo 1) uma sessão que envolve o luto por um membro morto. Ecoa com o capítulo 7 da parte II, em que uma “mentira” mostra conter a verdade da família: a mãe falecida é sentida como insepulta, e permanece, acusadora, entre os familiares. Como sempre, é vivíssima a descrição dos movimentos, que aqui caminham no sentido de experimentar a ambivalência, crucial para a elaboração do luto. Paralelamente, convém repetir, o trato com tais conceitos retira-lhes o ranço que, banalizando-os, tende a apresentá-los fracos, adoentados. É reconfortante senti-los tão vitalizados.

O capítulo 2 descreve a estrutura organizadora parte de familidade; sua revelação provocará na família um desconforto diretamente relacionado à compreensão da interação coletiva. Os tipos de circulação de objeto – um favorecedor de comunicação e empatia, outro “de mão única”, rígido, intrusivo – virão em seguida, no capítulo 3, com duas sessões. A surpresa com a ampliação do conceito de objeto continua no capítulo seguinte, um estudo sobre a dependência – como pressuposto básico, ou construtiva.

O quinto capítulo e a conclusão dessa parte descrevem algumas das fortes pressões a que o terapeuta está sujeito – do sistema social, dos membros da família, de sua própria familidade.

A leitura pode prosseguir nos capítulos que compõem a segunda parte, com experiências mais recentes. O oitavo apresenta alguns padrões de relacionamento de um grupo familiar específico, o casal.

De fato, não convém ter pressa com esse estudo1. Em tempos de velocidade como o nosso, porém, alguém, sopesando a qualidade da mercadoria, poderia procurar abreviar o trajeto. Eis uma sugestão de percurso: a Introdução – ou o prefácio de Belinda Mandelbaum –, o Glossário ao final, e o “clínico” capítulo 6. Eis outra: não fazêlo. Pois este capítulo, que ressalta o trabalho com os sonhos na terapia familiar, é destes momentos que, conforme o expressou Donald Meltzer, tornam o método um objeto estético e, como tal, seu impacto é ainda mais intenso. Estão aí a sustentação do setting; a capacidade de colher na boca do forno – ou lá dentro, no fogo mesmo – as vivências do paciente-família, com a captação de cada gesto, cada movimento, no nascedouro (instantâneos dos padrões há muito instalados) e sua tradução em interpretações; a inteligência permitindo eleger eixos de significação e sentido em cortes transversais e ao longo do tempo, ao longo das cadeias de imagens oníricas. Estão aí, lá; imediatamente estão cá, ressoando dentro do leitor. Cá, lá, tanto faz: sentimo-nos carregados, reunidos – quase uma família... –, a este emocionante exercício de compreensão.

O conto de Guimarães Rosa “O recado do morro” mostra níveis de compreensão que se acoplam, até que uma revelação maior, que os atravessa, salta à compreensão. Há, com este recado de Luiz Meyer, uma impressão do mesmo naipe. É, de fato, um convite ao trabalho. Convida a família a se trabalhar. Induz no leitor/terapeuta a necessidade de aprimorar-se; para isso, coerentemente, coloca em circulação o objeto conhecimento, proveniente de sua experiência. Permite, além disso, depreender um modelo de progressão em psicanálise e áreas afins, ao fazer render o conhecimento. Ressoante com seu tempo – se havia quaisquer dúvidas, a Parte II as liqüida –, revela-se moderno, sem absolutamente ceder a modismos.

Este livro é, lembrando o Drummond de sua abertura, uma Amendoeira que fala.

 

 

Endereço para correspondência
José A. P. Ferreira
Tel.: (11) 3088-6784

 

 

Nota

IPsicanalista (pela SBPSP); Psicólogo da PPIA/ HSPM.
1 Teria sido premência de tempo a responsável pela presença de algumas incorreções? Pois que, em sua quase totalidade inexistentes na primeira publicação, evidenciam-se agora na Parte I erros (presentes, em menor grau, também na II):

a) pequeninos, talvez (virgulações, concordâncias, por exemplo);
b) médios: o uso equivocado da partícula se (p. 66 e outras); desatenciosas trocas de palavras (a situação não é didática, mas diádica, p. 6; objetos circulantes tornaramse circulares, 109; a supressão do intertítulo na 87 deixa também o leitor no escuro; há reconstruções fatais, que eram apenas fatuais, 147; há saltos, como o de uma expressão extensa no segundo parágrafo da 120; separar vira esperar, 125); etc etc etc...
c) um, mais geral e importante: a eliminação do tipo itálico em praticamente toda esta parte. A expressão de algumas idéias chega a empalidecer na falta deste recurso: o texto sofre, e poderia, não fosse tão forte, ter sido descaracterizado. (De parte do autor, só um digno de nota, mas este enorme: torcer por um certo time, que revela à 246. Por que não seguir o bom exemplo, de dentro da própria família?... Ah, este circulante objeto circular bola!...)