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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psychê v.9 n.15 São Paulo jun. 2005

 

ARTIGOS

 

A cena de um estratagema1

 

The Scene of a Stratagem

 

Georges PerecI; ; Carvalho, Ana Cecilia (Trad.)II ; Belo, Fábio Rodrigues (Trad.)III

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo, publicado originalmente na revista Cause Commune (n. 1, p. 77–88, col. 10–18, n. 1143, 1977), é a tradução de um depoimento do escritor francês Georges Perec sobre o processo de sua análise com J.–B. Pontalis, de maio de 1971 a junho de 1975. A importância desse texto é que nele o autor não apenas conta o que representou para ele ter vivido esse processo, como também nos fornece uma rara descrição sobre o tempo e o ritmo de uma psicanálise.

Unitermos: Georges Perec, J.–B. Pontalis, Processo de análise, Técnica psicanalítica, Tempo e ritmo em psicanálise.


ABSTRACT

This article, first published in Cause Commune (n. 1, p. 77–88, col. 10–18, n. 1143, 1977), is a translation of French writer George Perec’s report of his psychoanalytical experience (from May of 1971 to June of 1975) as a patient of J.–B. Pontalis. The importance of this text is that the author not only tells us what meant to him, personally, to have been in analysis, but he also offers us a rare description of the time and the rhythm of psychoanalysis.

Keywords: Georges Perec, J.–B. Pontalis, Psychoanalytic process, Psychoanalytic technique, Time and rhythm of psychoanalysis.


 

 

Durante quatro anos, de maio de 1971 a junho de 1975, eu estive em análise. Mal ela havia se encerrado quando fui assaltado pelo desejo de falar, ou mais precisamente, de escrever sobre o que tinha se passado. Um pouco depois disso, Jean Duvignaud sugeriu aos editores de Cause Commune que um número da revista fosse organizado sobre o tema do Estratagema, e foi dentro desse quadro, cujos contornos não estavam muito bem definidos, mas bastante instáveis, imprecisos e oblíquos, que percebi por mim mesmo que meu texto estaria em seu elemento mais natural.

Desde então, quinze meses se passaram, durante os quais escrevi, talvez umas cinqüenta vezes, as linhas iniciais deste texto (isto é, essas que acabei de escrever), e em todas estas vezes fiquei completamente preso em recursos retóricos. Eu queria escrever, eu tinha de escrever, eu tinha de redescobrir pela escrita, através da escrita, o traço daquilo que tinha sido dito (todas aquelas páginas recomeçadas, os rascunhos não terminados e as linhas deixadas em suspenso são como lembranças das sessões amorfas nas quais eu tinha a sensação indizível de ser uma máquina de moer palavras sem peso), mas as palavras se endureciam em frases cuidadosamente escolhidas e naquilo que alguém poderia supor que eram as questões preliminares: por que eu preciso escrever esse texto? Para quem ele é realmente destinado? Por que decidir escrever, publicar, tornar público aquilo que talvez fora nomeado apenas na intimidade da análise? Por que decidir ligar essa procura incerta ao tema ambíguo do Estratagema? Todas essas questões eu me fiz com uma determinação suspeita – a primeira em letras minúsculas, a segunda em letras minúsculas, a terceira em letras minúsculas, a quarta em letras minúsculas –, como se realmente tivesse de haver questões, como se, não havendo questões, não houvesse respostas. Mas o que eu quero dizer não é uma resposta, é uma afirmação, um fato concreto, algo que aconteceu, que jorrou. Não algo que pudera estar enrodilhado dentro de um problema, mas sim algo que estava lá, bem perto de mim, algo de mim que precisava ser dito.

O estratagema é algo que engana, mas como enganar o estratagema? A questão é uma armadilha, um pré–texto, precedendo o texto, para adiar a cada vez o momento inelutável da escrita. Cada palavra que eu escrevia não era uma marca, mas um desvio, algo para me fazer devanear. Durante aqueles quinze meses devaneei a respeito desses meandros verbais, tal como por quatro anos, no divã, eu tinha devaneado enquanto fitava as manchas de mofo e as rachaduras no teto.

Lá, como aqui, era quase tranqüilizador dizer a si mesmo que um dia as palavras viriam. Um dia você começaria a falar, começaria a escrever. Por um bom tempo você acredita que falar significará encontrar, descobrir, compreender, finalmente compreender, ser iluminado pela verdade. Mas não; quando acontece, você sabe apenas que está acontecendo; está ali, você está falando, está escrevendo. Falar é apenas falar, meramente falar, escrever é apenas escrever, é traçar letras em uma folha branca de papel.

Será que eu sabia que isso era o que eu tinha ido procurar? Esse fato, que ficou tanto tempo sem dizer, mas sempre por ser dito, essa mera expectativa, essa tensão, redescoberta em um murmúrio quase intangível?

Um dia aconteceu, e eu soube. Gostaria de poder dizer que eu soube imediatamente, mas isso não seria verdade. Não existe um tempo verbal no qual posso dizer quando aconteceu. Aconteceu, tinha acontecido, está acontecendo, acontecerá. Você já sabia, você sabe. Alguma coisa simplesmente se abriu e está se abrindo: a boca a fim de falar, a caneta a fim de escrever; alguma coisa movimentou–se, alguma coisa está se movimentando e está sendo traçada, a linha sinuosa da tinta sobre o papel, traços para cima e traços para baixo.

Postulo como auto–evidente, desde o início, essa equivalência entre falar e escrever, do mesmo modo que igualo a folha branca de papel àquela outra cena de hesitações, ilusões e apagamentos que era o teto do consultório do analista. Essa equivalência não se dá automaticamente, eu sei, mas será assim para mim de agora em diante: isso é exatamente o que estava em jogo na análise. Foi isso que aconteceu, que foi se talhando, sessão após sessão, no curso daqueles quatro anos.

A psicanálise não se parece em nada com aqueles anúncios de restauradores para cabelo: não existe nenhum “antes” e “depois”. Havia um tempo presente na análise, um “aqui e agora” que começava, durava e terminava. Eu bem poderia escrever “que demorou quatro anos para começar” ou “que terminou durante quatro anos”. Não houve nem começo nem fim. A análise já tinha começado muito antes da primeira sessão, na lenta decisão em minha mente para submeter–me a uma análise e na escolha do analista. A análise continua, muito depois da última sessão, na sua duplicação solitária, que mimetiza tanto sua obstinação quanto as falhas em mover–se para frente. Em uma análise, ou você está muito agarrado no tempo, ou o tempo é inflado. Por quatro anos, a análise tinha o seu lado rotineiro, ordinário: pequenas marcas nas agendas, o trabalho espaçado pelas sessões sucessivas, a regularidade com a qual elas voltavam, seu ritmo.

A análise era em primeiro lugar isto: uma certa divisão nos dias – em dias com e dias sem –, e nos dias com, algo que se assemelhava a uma dobra, uma prega, um bolso: na estratificação das horas, um momento que era suspenso, era outro; um tipo de pausa ou um intervalo na continuidade do dia.

Havia algo de abstrato nesse tempo arbitrário, algo ao mesmo tempo tranqüilizador e assustador, um tempo imutável, atemporal, um tempo imóvel em um espaço improvável. Sim, claro, eu estava em Paris, em uma vizinhança que conhecia bem, em uma rua onde até já tinha morado, a poucas quadras do meu bar favorito e de alguns restaurantes conhecidos, e eu podia ter–me divertido calculando minha longitude, latitude, altitude e o caminho que estava seguindo (minha cabeça oeste–norte–oeste, meus pés leste–sul–leste). Mas o protocolo ritual das sessões expulsava o tempo e o espaço dessas balizas. Eu chegava, tocava a campainha, uma moça vinha e abria a porta. Eu esperava alguns minutos em uma sala destinada a esse propósito; podia ouvir o analista indicando a porta ao paciente da hora anterior. Alguns momentos depois o analista abria a porta da sala de espera. Ele nunca cruzava a soleira. Eu seguia na frente dele e entrava no consultório. Ele me seguia, fechava as portas – havia duas delas, formando um pequeno lobby de entrada, algo como uma câmara de vácuo que aumentava a sensação de enclausuramento – e vinha sentar–se em sua poltrona enquanto eu me estendia no divã.

Estou enfatizando esses detalhes banais porque foram repetidos, duas ou três vezes por semana, durante esses quatro anos, assim como os rituais no final da sessão foram repetidos: a campainha anunciando o próximo paciente, o analista murmurando algo como “bom”, sem que isso jamais implicasse a menor avaliação dos assuntos que tinham sido ponderados no decorrer da sessão, então se levantando, eu me levantando, e se necessário, ele estabelecendo seus honorários (eu não o pagava depois de cada sessão, mas em semanas alternadas), ele abrindo as portas do consultório para mim, mostrando a porta da frente e fechando–a atrás de mim depois de uma despedida formal que consistia, na maior parte das vezes, em confirmar o dia da minha próxima sessão (“até segunda” ou “até terça”, por exemplo).

Na sessão seguinte os mesmos movimentos idênticos, os mesmos gestos eram repetidos exatamente. Nas raras ocasiões em que por acaso não o eram, por mais triviais que fossem as modificações ocorridas em algum elemento do protocolo, significavam alguma coisa, mesmo que eu não soubesse o quê; isso denotava algo, talvez simplesmente que eu estava em análise, e a análise era isso e não alguma outra coisa. Pouco importava, no evento, se essas modificações vinham do analista, de mim, ou se eram acidentais. Se esses deslocamentos minúsculos faziam a análise fluir a partir das convenções nas quais ela estava envolvida (quando, muito raramente, eu tomava a iniciativa de sair abrindo eu mesmo a porta), ou se ao contrário, elas subtraíam da análise uma parcela pequena do tempo reservado para ela (quando a secretária do analista se ausentou, e ele ter de atender ao telefone, ou abrir a porta para o próximo paciente ou para alguém que recolhia donativos para o Exército da Salvação); de qualquer modo, todas essas alterações indicavam a função que esses ritos tinham para mim: a estrutura temporal e espacial do discurso sem fim que sessão após sessão, mês após mês, ano após ano, eu iria experimentar e tornar meu, tentando assumir responsabilidade por ele, no qual eu tentaria reconhecer–me e dar a mim mesmo um nome.

A regularidade desses ritos de chegada e partida constituiu–se para mim uma primeira regra (não estou falando sobre psicanálise em geral, mas da única experiência psicanalítica pela qual fui afetado, e das memórias dessa experiência que permanecem para mim). Sua repetição silenciosa, sua imobilidade convencional indicavam, com uma serena cortesia, os limites daquele espaço fechado no qual, longe do rumor da cidade, fora do tempo, fora do mundo, algo que seria dito talvez viesse de mim, talvez fosse meu, para mim. Certamente, era como se fossem destinados para a neutralidade afável do ouvido imóvel para o qual eu tentava dizer alguma coisa, como os limites – educados, civilizados, um pouco austeros, um pouco frios, uma penumbra afetada – dentro dos quais explodiria a violência amortecida, selada, do diálogo analítico.

E assim, estendido sobre o divã, minha cabeça sobre um lenço branco, que antes de o próximo paciente entrar no consultório o analista jogava displicentemente sobre um pequeno armário de estilo imperial já coberto de lenços amassados das sessões anteriores, minhas mãos unidas atrás do pescoço ou sobre a barriga, a perna direita esticada, a esquerda levemente dobrada, por quatro anos mergulhei profundamente nesse tempo sem história, nesse lugar inexistente que iria se tornar o lugar da minha história, das minhas palavras ainda ausentes. Eu conseguia ver três paredes, três ou quatro itens do mobiliário, duas ou três gravuras, alguns livros. Havia um tapete de moqueta no chão, frisos de gesso no teto, tecido nas paredes: uma decoração austera e sempre muito arrumada, aparentemente neutra, mudando muito pouco de sessão para sessão ou de ano para ano. Um lugar tranqüilo, morto.

Havia pouco som. Um piano ou um rádio, às vezes; um pouco distante, alguém em algum lugar usando um aspirador de pó, ou quando o tempo estava bom e o analista havia deixado a janela aberta (ele freqüentemente arejava a sala entre as sessões), pássaros cantando em um pequeno jardim, próximo. Como eu disse, o telefone raramente tocava. O próprio analista fazia pouco barulho. Algumas vezes eu podia ouvir sua respiração, um suspiro, uma tosse, seu estômago roncando, ou o estalar de um palito de fósforo.

Eu tinha que falar, então. Era para isso que eu estava ali. Era essa a regra do jogo. Eu estava preso com essa outra pessoa naquele outro espaço. A outra pessoa estava sentada em uma poltrona, atrás de mim, podia me ver, podia falar ou não falar, e geralmente escolhia não falar; eu estava estendido sobre o divã, na frente dele, não podia vê–lo, eu tinha que falar, minhas palavras tinham que preencher aquele espaço vazio.

Falar não era difícil, de maneira alguma. Eu tinha uma necessidade de falar, e tinha todo um arsenal de histórias, problemas, perguntas, associações, fantasmas, jogos de palavras, lembranças, hipóteses, explicações, teorias, pontos de referência [repères], esconderijos [repaires].

Eu percorria, animadamente, os caminhos claramente marcados dos meus labirintos. Tudo significava alguma coisa, tudo estava ligado, tudo era claro, tudo se permitia a uma gradual dissecação, uma grande valsa de significantes expondo suas voluntariosas ansiedades. Sob o brilho efêmero dessas colisões verbais, as excitações medidas deste pequeno Édipo ilustrado, minha voz encontrava somente seu próprio vazio: nem o eco débil da minha história de vida, nem o tumulto incerto dos inimigos que eu devia encarar, mas a rotina desgastada do Papai/Mamãe, pinto/xoxota; não a minha emoção, nem meu medo, nem meu desejo, nem meu corpo, mas respostas que já vinham prontas, uma ferragem anônima, e toda a exaltação de um passeio em um trenzinho panorâmico no parque de diversões.

A intoxicação verbal desses breves momentos de delírio pansêmico não demorava a se desfazer, durava só alguns segundos – alguns segundos de silêncio durante os quais eu buscava no analista um reconhecimento que nunca vinha, e então voltava a me sentir amargo e taciturno, cada vez mais distante de minhas próprias palavras, minha própria voz.

Atrás de mim, o outro não dizia nada. A cada sessão eu esperava que ele falasse. Eu estava convencido de que ele estava escondendo algo de mim, de que ele sabia muito mais do que estava disposto a dizer, de que ele, não obstante, estava pensando nisso, de que ele tinha suas próprias idéias lá no fundo de sua mente. Era um pouco como se as palavras que passavam pela minha cabeça fossem alojar–se no fundo da cabeça dele, enterrando–se lá para sempre, dando origem – à medida que as sessões iam e vinham – a uma bolha de silêncio que era tão pesada quanto minhas palavras eram ocas, tão cheia quanto minhas palavras eram vazias.

Desse ponto em diante tudo se tornou desconfiança; minhas palavras e o silêncio dele idênticos, um tedioso jogo de espelhos no qual as imagens na banda de Möbius refletiam–se umas nas outras, interminavelmente, sonhos bonitos demais para serem sonhos. Onde estava o verdadeiro, onde o falso? Sempre que eu tentava ficar em silêncio, para não me deixar prender na armadilha daquela devolução irrisória de palavras, por aqueles afloramentos ilusórios de palavras, o silêncio de repente tornava-se insuportável. Sempre que eu tentava falar, falar algo meu, confrontar o palhaço interno que estava tão astutamente fazendo malabarismos com minha história de vida, o prestidigitador que era tão bom em enganar a si mesmo, de repente tinha a impressão de que estava começando de novo o mesmo quebra–cabeça, como se esgotando uma por uma todas as possíveis combinações, pudesse algum dia chegar à imagem que eu estava procurando.

Ao mesmo tempo, era como se minha memória estivesse arruinada. Comecei a ficar com medo de esquecer, como se, a menos que anotasse tudo, não seria capaz de reter nada da vida que estava escapando de mim. Cuidadosamente, toda noite, com uma conscienciosidade maníaca, comecei a manter um tipo de diário. Era o exato oposto de um journal intime: tudo que eu colocava ali eram as coisas “objetivas” que aconteciam comigo: a hora em que acordei, como passei o dia, meus movimentos, o que comprei, o progresso – medido por linhas ou páginas – do meu trabalho, as pessoas que encontrei ou simplesmente avistei, os detalhes da refeição que fiz à noite em algum restaurante, minhas leituras, os discos que ouvi, os filmes a que assisti etc.

Junto com esse pânico de perder o controle sobre mim veio uma fúria de preservação e classificação. Eu guardava tudo: cartas com seus envelopes, ingressos de cinema, passagens de avião, contas, canhotos de cheque, folhetos, recibos, catálogos, avisos de reunião, jornais da semana, canetas vazias, isqueiros vazios, até mesmo contas de gás e eletricidade de um apartamento onde não morava há mais de seis anos; e algumas vezes gastava um dia inteiro fazendo classificações e mais classificações, imaginando um inventário que pudesse preencher cada ano, mês e dia da minha vida.

Há muito fazia a mesma coisa com meus sonhos. Bem antes de começar a análise, tinha começado a acordar durante a noite a fim de anotálos em cadernos que mantinha sempre comigo. Logo tornei–me tão treinado nisso que meus sonhos já vinham escritos para mim, inclusive com títulos. Seja qual for a inclinação que eu ainda tenha por essas formas sucintas e secretas de palavras, nas quais os reflexos de minha história de vida pareciam atingir–me por prismas inumeráveis, finalmente tive de admitir que esses sonhos não eram vividos para serem sonhados, mas sonhados para se transformarem em textos, que eles não eram a estrada real que eu achava que seriam, mas caminhos tortuosos que me levavam cada vez mais longe do auto–reconhecimento.

Tornando–me cauteloso, talvez pelos meus estratagemas oníricos, eu não transcrevia nada, ou quase nada, da análise. Um símbolo na minha agenda – a inicial do analista – marcava o dia e a hora da sessão. No meu diário, escrevia apenas “sessão”, às vezes seguido por um adjetivo – geralmente pessimista: “triste”, “insípida”, “monótona”, “sem graça”, “uma chatice”, “uma droga”, “muito obscura”, “uma porcaria”, “deprimente”, “risível”, “anódina”, “nostálgica”, “medíocre e olvidável” etc.

Muito raramente eu descrevia a sessão a partir de algo que o analista tinha me dito aquele dia, com uma imagem ou uma sensação (“cãibra”, por exemplo), mas a maioria dessas anotações, positivas ou negativas, é hoje desprovida de sentido, e todas as sessões – exceto aquelas nas quais as palavras, que deveriam fazer da análise um sucesso, vieram à superfície – fundiram–se para mim com a memória daquela expectativa, sob o teto, do meu olhar aflito, enquanto eu procurava incessantemente, entre as manchas de mofo, pelo contorno de um animal ou de uma cabeça humana: por sinais.

Do movimento real que me permitiu emergir dessa ginástica repetitiva e cansativa, e que me deu acesso à minha própria história e voz, posso dizer apenas que foi infinitamente lento: era o movimento da própria análise, mas só descobri isso muito mais tarde. Primeiro, a carapaça da escrita, atrás da qual escondi meu desejo de escrever, teve que se desintegrar; o muro enorme de memórias já prontas teve que ruir; as racionalizações nas quais me refugiei tiveram que se tornar pó. Tive que retraçar meus passos, refazer a jornada que já tinha feito e cujos fios, todos, havia rompido.

Desse lugar subterrâneo nada tenho a dizer. Sei que aconteceu, e que daquele momento em diante, seu traço ficou inscrito em mim e nos textos que escrevo. Durou o tempo que levou para minha história se juntar. Foi dado a mim um dia, violentamente, para minha surpresa e espanto, como uma memória restaurada em seu espaço, como um gesto, como um calor que eu tinha recuperado. Naquele dia, o analista ouviu o que eu tinha para dizer para ele, aquilo que por quatro anos ele escutou sem ouvir, pela simples razão de que eu não estava dizendo para ele, porque eu não estava dizendo para mim mesmo.

 

 

Endereço para correspondência

Ana Cecília Carvalho
Rua Califórnia, 729 / 401 – 30315–500 – Sion – Belo Horizonte/MG
tel: (31) 3285–1893
e–mail: anneoakwood@yahoo.com.br

Fábio Rodrigues Belo
Rua Germano Torres, 166 / 707 – 30310–040 – Cruzeiro – Belo Horizonte/M G
tel: (31) 3225–468 6
e–mail: frbelo@terra.com.br

recebido em 17/08/04
aprovado em 24/08/04

 

Nota

I Escritor e poeta, nasceu em Paris (1936) e morreu em Ivry (1982), vivendo em Paris quase toda sua vida. Era membro do OuLiPo ( Ouvroir de Littérature Potentielle, ou “Workshop da Literatura Potencial”).
II Psicanalista; Doutora em Literatura Comparada (UFMG); Professora Adjunta no
Departamento de Psicologia da FAFICH/UFMG.

III Psicanalista; Mestre em Teoria Psicanalítica (UFMG); Professor Substituto no Setor de Psicanálise do Departamento de Psicologia da FAFICH/UFMG.
1 Traduzido por Ana Cecília Carvalho e Fábio Belo; revisado por Antonio Marcos Pereira. Extraído da coletânea Species of space and other pieces (org. John Sturrock), com o título “The scene of a stratagem”. London: Penguin Books, 1999. Publicado originalmente na revista Cause Commune (“Les lieux d’une ruse”), n. 1, p. 77–88, col. 10–18, n. 1143, 1977. Perec foi analisado por J.–B.Pontalis.