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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.19 no.1 Rio de Janeiro jun. 2016

 

ARTIGOS

 

Trauma, sofrimento psíquico e cuidado na Psicologia Hospitalar1

 

Trauma, psychic suffering and care in Hospital Psychology

 

 

Daniel Kupermann2

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP

 

 


RESUMO

Pretende-se problematizar, a partir de um enfoque psicanalítico, os meios encontrados pelos sujeitos em estado de adoecimento para lidar com o seu sofrimento entre o tempo do jogo ilusão/desilusão, os tempos do trauma e os tempos do cuidado. Para esse fim, parte-se de uma ilustração encontrada no romance O cisne negro, de Thomas Mann, no qual a personagem, frente à realidade trágica da existência, reconhece e, imediatamente, obtura a verdade dolorosa, reproduzindo o movimento psíquico descrito por Freud no jogo do carretel. Já no que concerne às relações de cuidado propostas pela psicologia hospitalar, mostrar-se-á de que modo é o fracasso do testemunho da experiência de dor que configura a dimensão traumática do adoecimento. Nesse sentido, indicam-se os tempos do adoecimento entre o tempo do indizível, o tempo do testemunho e o tempo da indiferença desautorizadora. No que concerne aos tempos do cuidado, o autor indica os tempos da hospitalidade, da empatia e da Saúde do cuidador.

Palavras-chave: sofrimento; dor psíquica; trauma psíquico; cuidados; psicanálise.


ABSTRACT

This conference is intended to discuss, from a psychoanalytical approach, the means found by subjects in state of illness to deal with their suffering between the time of the game illusion/delusion, the times of trauma and times of care. To this end, the conference begins with an illustration found in the novel The Black Swan, by Thomas Mann, in which the character, when faced with the tragic reality of existence, recognizes and immediately obturates the painful truth, replaying the psychic movement described by Freud in the reel game. In regard to the relations of care proposed by the hospital psychology, the conference shows how the failure to witness the experience of pain sets the traumatic dimension of illness. Accordingly, the times of illness are indicated between the time of the unspoken time, the time of witnessing and time of deauthorizing indifference. With regard to the times of care, the author indicates the times of hospitality, empathy and caregiver health.

Keywords: suffering; psychic pain; psychic trauma; care; psychoanalysis.


 

 

Introdução

Em primeiro lugar gostaria de agradecer o honroso convite que recebi dos organizadores do 10º Congresso da Sociedade Brasileira de Psicologia Hospitalar (SBPH) para proferir esta conferência de abertura; agradeço, em especial, a Silvia Maria Cury Ismael, presidente da SBPH.

Este convite foi, para mim, ainda mais significativo, porque minha primeira atuação como psicólogo concursado no serviço público foi justamente em um hospital no Rio de Janeiro, o Instituto Estadual de Hematologia Arthur Siqueira Cavalcanti, onde atuei por cerca de cinco anos, tendo sido inclusive chefe do setor de psicoterapia.

Naquela época, falo do início dos anos 1990, a psicologia hospitalar não era ainda uma área de atuação tão desenvolvida como é hoje, e nós não tínhamos formação universitária adequada para nos preparar para a realidade que encontraríamos no hospital. O problema da identidade do psicólogo hospitalar era tamanho que pode ser exemplificado pelo fato de que discutimos, por muito mais tempo do que o razoável, a cor do jaleco que usaríamos – pensávamos que deveria ser diferente do branco, para que não fôssemos confundidos com os médicos, enfermeiros, nutricionistas, assistentes sociais etc. (para os mais curiosos: a cor escolhida foi a verde).

Claro que, como se pode também imaginar, esse tipo de problema servia para obturar a angústia provocada pelo enfrentamento das situações de intenso sofrimento humano, o que, sem formação adequada e sem o mínimo de identidade profissional na instituição hospitalar, tornava-se tarefa ainda mais penosa (cf. Moretto, 2001).

Abordarei, primeiramente, buscando permanecer fiel ao tema do Congresso, "O tempo da vida e a vida do nosso tempo", as peculiaridades do sofrimento psíquico que encontramos na realidade hospitalar; em seguida, apresentarei o que entendo como os princípios para uma ética do cuidado passível de nortear a atuação do psicólogo hospitalar. A guisa de ilustração do argumento que pretendo desenvolver, me remeto à história de uma personagem do escritor alemão Thomas Mann, Nobel de literatura, em seu romance O cisne negro, publicado originalmente no início dos anos 1950.

 

O tempo da vida

A protagonista é Rosália von Tümmler, uma viúva de aproximadamente 50 anos de idade, que vive em Düsseldorf com a filha Ana e o filho temporão Eduardo (Mann, 1989). Rosália é uma mulher bonita, sensual e amante da natureza. A história se passa em dois planos: a sucessão dos acontecimentos, ou seja, o enredo em si; e as conversas de Rosália com a filha Ana. Ana é, por sua vez, uma moça com uma deficiência congênita que a faz mancar, e que terminou por afastá-la, defensivamente, dos prazeres do corpo e das dores do amor. Ana é cerebral, intelectual, e sublima sua sensualidade por meio da atividade artística; é pintora. Nas suas conversas, Rosália enaltece a beleza da natureza, a vitalidade do corpo e as razões do coração, enquanto Ana retruca com uma racionalidade descrente à beira da melancolia. Uma cultua o corpo, a outra a alma. Uma é romanticamente esperançosa, a outra lucidamente desiludida. Apesar disso, Rosália sofre com a sua condição de mulher madura, já na menopausa, reconhecendo-se como "matrona". Um espelho da sua condição é a história bíblica de Sara, que engravidou em idade bastante avançada, da qual se recorda com inveja.

O clímax do romance se dá quando Rosália se apaixona por Ken, um jovem americano que frequenta sua casa na condição de professor de inglês de Eduardo. Duas vezes por semana Ken janta na sua casa depois das aulas de inglês e, assim, vai tornando-se íntimo da família. Envergonhada pela diferença de idade e pela condição imposta pela menopausa, Rosália resiste a esse amor por considerá-lo antinatural, no que recebe o apoio da filha.

Um belo dia, no entanto, no auge da paixão, Rosália volta a sangrar como mulher. Somos levados pelo escritor a acompanhar esse verdadeiro milagre, o que mais uma vez a faz recordar a matriarca bíblica. Ela diz que não quer rir como Sara, mas aceitar a graça de voltar a ser mulher. Diz Rosália:

Eu, eu não quero rir-me. Quero acreditar no milagre da minha alma e dos meus sentidos, quero adorar o milagre da Natureza, a dolorosa e vergonhosa Primavera da minha idade e dos meus sentidos, e a minha confusão não terá outro motivo senão a graça que me é dispensada por esta tardia visitação. (Mann, 1989, p. 24)

De fato, em função da energia despertada pela paixão, todos dizem o quanto ela está bela e rejuvenescida. "Coisas do coração, minha filha. Coisas da Natureza, a maravilhosa, a enigmática, a toda poderosa", continua Rosália, "que algumas vezes age sobre nós de maneira tão estranha e contraditória que é quase incompreensível" (Mann, 1989, p. 30).

Mesmo Ana é obrigada, ainda que desconfiada da diferença de idade existente a mãe e Ken, a reconhecer o milagre, mas teme pelo sofrimento que o amor não correspondido poderá causar à mãe. Ela tenta combater o romantismo recorrendo a uma figura oriunda do iluminismo, a "Luz do dia". Ana diz à mãe: "Não poderias tentar vê-lo um instante, um só instante - talvez isso te fosse salutar - não já à luz transfiguradora do teu amor, mas à luz do dia na sua realidade" (Mann, 1989, p. 32).

Rosália, cega pela paixão, recusa a racionalidade da filha, e chega mesmo a recriar a história bíblica. Sara não teria rido do anúncio dos anjos em função da sua idade, mas em função da idade do marido, Abrão, que era centenário (convém recordar que nos tempos bíblicos não havia Viagra).

Finalmente, Rosália profere a Ana um discurso que resume sua leitura do ocorrido, proclamando que a Natureza:

Demonstra assim que era um erro e restabelece a harmonia entre a alma e o corpo, mas de maneira diversa da que tu desejavas. Não é a alma que aceita, com submissão, que o corpo actue sobre ela, e se deixa transferir por ele ao digno estado de matrona, mas o inverso, o inverso, querida filha, de forma que é a alma que se revela senhora do corpo. (Mann, 1989, p. 39).

Rosália decide declarar-se a Ken, e convida a todos para um passeio de domingo no Castelo de Holterhof, onde lembra com nostalgia dos cisnes negros no lago do parque que circunda o castelo. Sobem o rio Reno de barco e passam um dia idílico, durante o qual ela e Ken se beijam e prometem dormir juntos à noite. Mas quando retorna à sua casa Rosália tem um grande sangramento e é hospitalizada. Os médicos descobrem uma metástase generalizada de um câncer uterino e ovariano. E Rosália não sai mais do hospital.

A novela termina com uma última conversa entre mãe e filha: Rosália pede para Ana não amaldiçoar a Natureza. Ao contrário, mostra-se grata por ter tido a chance de uma paixão tão intensa antes de morrer. E conclui: "A natureza, eu sempre a amei... e ela testemunhou amor pela sua filha" (Mann, 1989, p. 62).

Em O cisne negro, Thomas Mann pretende uma evidente crítica, no contexto do pós-guerra, a uma vertente do Romantismo alemão que pretendia um retorno à Natureza e as raízes do povo, e que promoveu tanta destruição com a deflagração da Segunda Guerra Mundial. O escrito pretende, assim, denunciar o quanto de ilusão, e mesmo de arrogância, se pode encontrar nos fundamentos dessa modalidade de pensamento. E o quanto de defesa narcísica ele camufla frente à impotência que pode ser provocada pela experiência de finitude humana. Afinal, como nos recorda Cazuza, o tempo não para, e muito menos anda pra trás! De fato, a novela de Thomas Mann pode inspirar, inclusive, uma reflexão acerca de o quanto o nosso tempo, marcado pelo primado da técnica e das tecnologias de prolongamento e manutenção da vida – ainda que em estado precário –, pode incitar o recurso defensivo à ilusões e à arrogância que pretendem reverter o estado de desamparo – Hilflosigkeit – que, segundo Freud, é próprio do humano.

No entanto, há, por outro lado, algo no processo de elaboração, por parte de Rosália, do tempo que passa, que também reflete uma importante característica do humano, e com o qual trabalhamos cotidianamente em nossos hospitais: a ilusão criadora. Mas antes de me deter nisso vou propor um détour por um ensaio célebre de Freud, intitulado "Sobre a transitoriedade", publicado em 1916, que nos ajuda a pensar algumas das questões tratadas por Thomas Mann.

Sobre a transitoriedade

Freud (1916[1915]/1980) relata um passeio de primavera pelas Dolomitas acompanhado de um amigo e de um poeta romântico que, sabemos, trata-se de Rainer Maria Rilke. A paisagem era belíssima, mas o poeta não conseguia desfrutá-la pela dor causada pela ideia de que toda aquela beleza primaveril seria destruída pelo inverno. Como se pode perceber, não estamos tão longe assim do cenário (tanto poético quanto geográfico) de O cisne negro.

Segundo Freud, há duas reações habituais frente à inexorável decadência da beleza, seja a do corpo humano, das obras de arte e edificações, seja a da natureza: de um lado, o penoso desalento, como o que abateu o poeta romântico; de outro, a revolta. No entanto, Freud aventa uma terceira saída psíquica possível frente à experiência da transitoriedade: o fato de a beleza ser efêmera poderia aumentar, e não diminuir, nossa fruição. Uma espécie de benção à transitoriedade. Porém, essa terceira saída, certamente mais saudável e madura, parece guardar algo de defensivo, ou mesmo de ilusório... assim como no humor de alguém que se depara com uma grande perda.

No entanto, para ilustrar sua benção à transitoriedade Freud, que queria se opor ao poeta, não poderia ser, ele mesmo, mais romântico: "Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso parece ser menos bela" (Freud, 1916[1915]/1980, p. 317). Como se sabe, o Romantismo cultuava as sombras em oposição à excessiva luz do dia que cegaria nossa sensibilidade. Mas, frente à força da imagem evocada por Freud, poder-se-ia indagar o que se considera a duração e a beleza de uma flor. A flor seria bela apenas quando totalmente desabrochada? Ou seria bela também quando botão, ou mesmo quando começa a se despetalar?3 As questões acima nos remetem, inexoravelmente, ao problema imposto pelo tempo das nossas vidas, e ao luto necessário que nossa condição de finitude nos impõe.

Justamente, esse é o enigma levantado por Freud em meio à corrupção provocada pelos horrores da Primeira Guerra Mundial: porque algumas pessoas suportam o necessário luto a que nossa existência nos obriga permanentemente, quando outras precisam se melancolizar ou, mesmo, se rebelar.

O jogo do carretel: ilusão e desilusão

Recorro, para concluir meus comentários acerca do "tempo da vida" e do sofrimento que este nos impõe, a mais uma passagem de Freud, também bastante conhecida, agora de "Além do princípio de prazer" (1920/1980): a observação do jogo criado pelo seu neto de um ano e meio de idade. O menino, que de resto tinha uma relação boa com a mãe, gostava de jogar os objetos longe, emitindo o som "Ó"... Freud (1920/1980) percebeu também uma brincadeira mais complexa, derivada da primeira, que consistia em jogar um carretel amarrado em um barbante por cima do umbral do berço acortinado, dizendo "Ó" quando o carretel sumia, e depois puxando-o, dizendo "Dá" – que ficou conhecido como o jogo do carretel ou o jogo do fort-da – ou o jogo do "embora – ali" (fort e da em alemão). Freud interpreta que o objetivo principal do jogo era controlar uma situação potencialmente angustiante, ou seja, a ausência da mãe. Ao jogar o carretel, a criança transformava-se de passiva em ativa nessa experiência, e ao puxá-lo de volta, com grande júbilo, ela confirmava seu controle sobre a situação.

Para Freud, era esse o modo de elaborar o processo inexorável de separação do primeiro objeto de satisfação. Todo o circuito posterior da perda, ou do que chamamos "castração", deve de algum modo estar referido a essa brincadeira, de modo a que o sujeito não se encontre frente a uma situação traumática. É esse um dos problemas cruciais de "Além do princípio de prazer": o trauma. Pode-se dizer, portanto, de outra maneira, que toda situação potencialmente traumática requer um processo, sempre singular, de elaboração – ou seja, requer um jogo de ilusão e desilusão.

Voltando a O cisne negro, o movimento de Rosália também parece oscilar entre os três movimentos indicados por Freud no texto sobre a transitoriedade, que podem ser articulados, por sua vez, ao jogo do carretel: o desalento, pela condição de matrona; a revolta, na forma da ilusão de ter encontrado na paixão a fonte da juventude; e ao final, a assunção da mortalidade e até mesmo uma certa gratidão, uma benção, à natureza, mesclada, decerto, de uma dose de ilusão: "A natureza, eu sempre a amei... e ela testemunhou amor pela sua filha" (Mann, 1989, p. 62). Podemos, frente ao destino que nos provoca sofrimento, abrir mão dessa dose de ilusão?

 

A vida do nosso tempo: trauma e cuidado

Tomarei o sentido de "nosso tempo" proposto pelo Congresso como o tempo que passamos tratando dos pacientes no hospital, ou seja, o tempo do trauma e os tempos do cuidado, que buscam impedir o efeito tanático da disrupção traumática. Assim, a vida do nosso tempo é o próprio objeto da clínica psicológica no hospital: transformar a mortificação em uma experiência vital.

No hospital, lidamos com situações de grande sofrimento psíquico. Gostaria de propor, apoiado na teoria do trauma de Sándor Ferenczi, que a presença do psicólogo na instituição hospitalar tem também o estatuto de testemunhar a dor do paciente, o que favorece ao sujeito em sofrimento o processo de elaboração dessa dor e de produção de sentido para experiências que são, na maior parte das vezes, disruptivas e traumáticas. De outro modo, o sujeito sofrente conta com o psicólogo para a expressão do testemunho da sua dor, física e psíquica, e é esse testemunho o que permite que o sofrimento provocado pelo processo de adoecimento, na maior parte das vezes surpreendente para o paciente, não configure uma situação apassivadora e impeditiva de elaboração4.

As investigações de Ferenczi dedicadas ao fenômeno do trauma, que tiveram lugar no final dos anos 1920 e início dos anos 1930, inspiradas por sua experiência como médico do exército húngaro no front da Primeira Grande Guerra – promoveram uma transformação decisiva no entendimento acerca da importância da alteridade na produção de experiências traumáticas.

É verdade que Freud havia se debruçado sobre o fenômeno das experiências irrepresentáveis, e concebido ao menos duas teorias do trauma: a teoria da sedução (Freud, 1896/1980), na qual uma criança é violentada por um adulto e depois, na puberdade, ao se deparar com a sexualidade, esta adquire um teor traumático; e o trauma como excesso pulsional não simbolizado (Freud, 1920/1980), hipótese surgida após a formulação do conceito de pulsão de morte, em 1920. Ou seja, ainda que Freud, na teoria da sedução, tenha postulado que o outro tem um papel de agente provocador (seja em ato, seja em fantasia), é apenas por meio das contribuições ferenczianas que a comunidade psicanalítica foi convocada a indagar acerca da função – seja protetora, seja promotora de traumatismos – da alteridade neste contexto. Há, no pensamento psicanalítico, uma passagem da concepção freudiana de trauma sexual para uma concepção ferencziana de trauma social (Kupermann, 2015).

Em Ferenczi (1933/1992), o trauma é concebido como confusão de línguas, ou seja, o outro está necessariamente implicado no processo. A criança, assim como ilustra o neto de Freud, está submetida ao regime da linguagem da ternura, na qual tanto o amor quanto o ódio ou a agressividade (Ó/ dá, diz o neto de Freud) compõem um jogo cujo objetivo é a produção de sentido, a saber, criar uma palavra capaz de simbolizar a intensidade afetiva vivida pela criança e por cada um de nós em situações de desestabilização psíquica. O adulto, por outro lado, está submetido ao que se chama linguagem da paixão – efeito da culpa e do recalque. E é capaz de violências, dentre as quais a pior delas não é o atentado (sexual ou violento), mas o abandono e a indiferença em relação ao outro.

Assim, se em Freud o trauma se daria, sobretudo, por mecanismos de intrusão, em Ferenczi o paradigma maior do fenômeno traumático é o abandono, na forma da indiferença em relação à experiência de sofrimento de outro. Vejamos como opera essa teorização no exemplo do trauma sexual e, depois, no exemplo que nos concerne, no do trauma causado pela ferida narcísica provocada pelo adoecimento e, muitas vezes, pela iminência da morte.

No primeiro tempo da traumatogênese ferencziana, a criança sofre uma violência. Isso promove choque e dor, mas ainda não trauma. No segundo tempo, há sempre um movimento do violado, mais ou menos explícito, em direção a outro em quem confia para tentar, por meio do testemunho da sua dor, dar sentido ao evento desestabilizador. O trauma se constituiria, efetivamente, em um terceiro tempo no qual, ao invés de encontrar uma presença sensível capaz de testemunhar seu sofrimento, o sujeito encontra a indiferença, ou seja, o abandono traumático que desautoriza seu testemunho. Uma passagem bastante conhecida dos leitores de Ferenczi (1931/1992, p.79) diz:

O pior é realmente a negação (Verleugnung, no original), a afirmação de que não aconteceu nada, de que não houve sofrimento ou até mesmo ser espancado e repreendido quando se manifesta a paralisia traumática dos pensamentos ou dos movimentos; é isso, sobretudo, o que torna o traumatismo patogênico.

Prefiro traduzir Verleugnung, nesse contexto, por desautorização, no sentido de enfatizar a dimensão de desapropriação subjetiva promovida no sujeito em estado de vulnerabilidade pelo encontro traumático. De fato, auto, do grego, indica aquilo que é próprio, "de si mesmo", e os efeitos mais nefastos do traumatismo são o comprometimento da convicção das próprias percepções, e a anestesia da afetividade, que tornam a subjetividade incapaz de resistência, refém dos imperativos e dos ideais vigentes nas várias instituições encarregadas da transmissão do ethos cultural. Como sublinha Ferenczi (1929/1992; 1931/1992; 1933/1992), a criança traumatizada produz uma auto-clivagem narcísica entre uma parte identificada com o agressor que "tudo sabe" e sua parte sensível destruída.

No caso do adoecimento, encontramos esses mesmos três tempos. Em um primeiro tempo temos um sujeito em sofrimento inédito, e geralmente inesperado, para o qual não dispõe de repertório simbólico capaz de ajudá-lo a promover sentido para essa experiência de vulnerabilidade – o campo da psicossomática é pródigo ao mostrar como o corpo se oferece como destino para o padecimento sem nome. É o tempo que proponho nomear de tempo do indizível. No segundo tempo esse mesmo sujeito busca testemunhar seu sofrimento na presença sensível de um outro confiável. É o tempo do testemunho. O terceiro tempo é aquele que ocorre quando este outro não está disponível para escutar, ou testemunhar, o sofrimento do adoecido, porque é remetido, ele mesmo (o outro), a um estado de impotência tão angustiante que transforma o indizível da dor do doente em inaudível. É o tempo da indiferença desautorizadora5. De fato, a indiferença do outro frente ao sofrimento do doente é traumatizante por impedir o suporte, o enquadre e o compartilhamento afetivo capaz de promover sentido às experiências vividas pelo sujeito em estado de sofrimento. Justamente por isso o cuidado é a contrapartida clínica para as situações potencialmente traumáticas provocadas pelo processo de adoecimento.

Para concluir, apresento os três tempos do cuidado derivados das considerações do trauma que acabamos de tecer (cf. Kupermann, 2009).

Os tempos do cuidado na cínica: hospitalidade, empatia e saúde do cuidador

Hospes, termo latino do qual deriva a palavra hospital, significa hóspede. Retomo, no sentido de me aproximar do problema da psicologia hospitalar, uma formulação preciosa do filósofo Jacques Derrida, segundo a qual a questão da hospitalidade começa, justamente, no acolhimento da língua do estrangeiro uma vez que, se aquele que chega, solicitando nossa hospitalidade, conhecesse a nossa língua, deixaria, paradoxalmente, de se apresentar como estrangeiro. Lemos em Derrida (2003, p. 15):

Se o estrangeiro já falasse a nossa língua, com tudo o que isso implica, se nós já compartilhássemos tudo o que se compartilha com uma língua, o estrangeiro continuaria sendo um estrangeiro e dir-se-ia, a propósito dele, em asilo e em hospitalidade? É este o paradoxo.

Ora, segundo essa concepção, o estrangeiro por excelência é o próprio infans, aquele que não fala; não fala, decerto, a nossa língua. Assim, a própria condição humana, na sua origem, aquela que todos nós conhecemos no momento da nossa chegada, seria a condição de estrangeiro. Na experiência humana, trata-se, portanto, sempre de hospitalidade. E de acolher o sofrimento do outro de maneira a criar, com ele, uma língua comum6.

No que concerne à clínica, o ponto mais delicado do manejo refere-se, justamente, ao encontro de linguagens entre cuidador e paciente. Frente ao sofrimento do doente deve-se sempre se perguntar qual regime linguageiro teria uma qualidade estruturante, ou seja, não traumática, para o paciente (cf. Osmo & Kupermann, 2012).

O projeto clínico de Ferenczi, que tem em "Elasticidade da técnica psicanalítica" (1928/1992) seu marco fundador, define-se justamente pelo resgate da dimensão sensível do encontro terapêutico, e por uma crítica ao poder traumatizante do abuso interpretativo. A interpretação, ao invés de ser considerada o instrumento privilegiado do qual dispõe o psicanalista para o exercício do seu ato, tornou-se subordinada à qualidade dos afetos que circulam entre o par terapêutico. Assim, toda a trama de sutilezas afetivas implicadas na noção freudiana de ,tato clínico é evocada através do recurso a uma categoria estética bastante difundida no final do século XIX: Einfühlung, empatia, cuja tradução ao pé da letra seria "sentir dentro".

Na perspectiva ferencziana, ao contrário do que uma leitura apressada poderia sugerir, a empatia não deveria ser confundida com as formas do processo identificatório em Freud (identificação narcísica ou histérica), ou com quaisquer modalidades projetivas. No campo da psicologia hospitalar, a empatia estaria referida à capacidade do cuidador se deixar afetar pelo sofrimento do doente, e também à capacidade de afetá-lo, a partir do sentido produzido pela ressonância estabelecida entre o seu corpo pulsional e o corpo pulsional daquele. O cuidador deveria, assim, operar como o "diapasão" capaz de sintonizar as modulações afetivas do paciente. Dessa maneira, empatia não se resume ao efeito imaginário de se achar que se pode sentir "dentro do outro", mas de, no encontro clínico, sentir o outro dentro de si, tornar-se outro;

nesse sentido a empatia seria a antítese da indiferença desautorizadora do sofrimento do sujeito hospitalizado.

Porém, o que um estilo clínico baseado no testemunho do sofrimento do outro exige do próprio cuidador? Como na máxima proferida por Cristo, medice, cura te ipsum, é de fato preciso dispor do cuidado de si para poder cuidar do outro. Afinal, não se trata, como no momento em que a clínica "psi" obedecia ao primado da interpretação, de falar do paciente, mas de falar com o paciente, o que implicava poder vivenciar afetos e perceptos apropriados a essa experiência (cf. Kupermann, 2008).

No campo psicanalítico encontramos o que ficou conhecido, a partir de Ferenczi (1928/1992), como a segunda regra fundamental da psicanálise: o analista deve, ele próprio, ser analisado. Ora, na época já havia sido instituída a exigência de análise para todos os candidatos em formação psicanalítica. Portanto, qual a necessidade de se formular uma segunda regra fundamental da psicanálise, complementar à regra da associação livre? Para Ferenczi, não se tratava, na análise dos analistas, de cumprir exigências institucionais, como duração e freqüência da análise, mas de o psicanalista conduzir sua análise a um termo. Afinal, era previsível que um estilo clínico baseado na hospitalidade e na empatia exigiria trabalho e disponibilidade sensível do psicanalista; tratava-se, então, de refletir acerca do que nomeou "higiene particular do psicanalista", sendo que, para as nossas finalidades nessa exposição, seria mais adequado chamar de Saúde do cuidador.

O problema que fica assim proposto para o campo da psicologia hospitalar é o das competências que devem ser produzidas e transmitidas para que o cuidador possa: oferecer hospitalidade acolhendo o sofrimento do doente, por mais impactante que possa ser estar diante da dor do outro; ser afetado pelo paciente, e afetá-lo facilitando a produção de sentido para a experiência do adoecimento, do tratamento e dos seus destinos, cura ou agravamento, exercendo sua capacidade empática; dispor da sua Saúde, de maneira a estar vivo nos confrontos cotidianos com a morbidez e a morte.

Termino com essa provocação... provocare, do latim, significa "chamar adiante", para "além" do lugar onde alguém se encontra. E no que concerne à compreensão das nossas práticas psicológicas, é a clínica que nos obriga a pensar e repensar nossa atuação.

 

Referências

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1 A partir da conferência de abertura do 10º. Congresso da Sociedade Brasileira de Psicologia Hospitalar (em 10 de setembro de 2015 em São Paulo), intitulada "O tempo da vida e a vida do nosso tempo". O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq.
2 Psicanalista, Professor Doutor do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq – E-mail: danielkupermann@gmail.com
3 Remeto o leitor à beleza da cena das tulipas se despetalando no filme "paes e tulipas", de Silvio Soldini, 2000.
4 Sobre o problema do testemunho e das possibilidades de elaboração de experiências traumáticas, ver Barbosa & Kupermann (2016).
5 Uma pesquisa acerca do tema da indiferença traumatizante vem sendo desenvolvida junto a Maria Lívia Tourinho Moretto, também professora do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Ver a esse respeito Moretto, Kupermann & Hoffmann (2016).
6 É curioso constatar como na história bíblica de Sara, tão presente no argumento de O cisne negro, que acompanhamos acima, a hospitalidade é, efetivamente, geradora de vida.

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