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Revista Psicologia Política

On-line version ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.21 no.50 São Paulo Jan./Apr. 2021

 

ARTIGOS

 

Psicologia e trabalho social algumas configurações e problemáticas

 

Psicología y trabajo social: algunas configuraciones y problemas

 

Psychology and social work: some configurations and problems

 

 

Edlamar de Jesus FrançaI; Fernanda Spanier AmadorII

IPsicóloga, psicoterapeuta, mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul / edlamarfranca@yahoo.com.br
IIPsicóloga, Pós-Doutora em Educação/UFRGS, professora e pesquisadora do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional/UFRGS / feamador@uol.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo discutir as configurações do trabalho da Psicologia na esfera do trabalho social, em determinados momentos da história brasileira, tais como: no contexto de redemocratização e expansão de políticas públicas e no atual contexto. Analisa ainda as tessituras entre trabalho social, Psicologia e neoliberalismo através da consideração de dois processos, a saber: empresarização e universitarização. As análises visam desnaturalizar as posições que ocupamos e as funções que desempenhamos enquanto pesquisadoras e interventoras nas experiências com o trabalho social.

Palavras-chave: Psicologia; Trabalho Social; Neoliberalismo.


ABSTRACT

This article aims to discuss the configurations psychology's work in the sphere of social work, in certain moments of Brazilian history such as: in the context of democratization after the military dictatorship and expansion of public policies, and in the current context. It also analyzes the weavings between social work, psychology and neoliberalism through the consideration of two processes, namely: Companyfication and Universitarization. The analyses aim to denaturalize the positions we occupy and the functions we perform as researchers and interveners in the experiences with social work.

Keywords: Psychology; Social Work; Neoliberalism.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo debatir la configuración del trabajo de la psicología en el ámbito del trabajo social, en ciertos momentos de la historia brasileña como: en el contexto de la redemocratización y la expansión de las políticas públicas y en el contexto actual. También analiza las teselas entre el trabajo social, la psicología y el neoliberalismo a través del examen de dos procesos, a saber: Empresarization y Universitarization. Los análisis pretenden desnaturalizar las posiciones que ocupamos y las funciones que realizamos como investigadores e interventores en las experiencias con el trabajo social.

Palabras clave: Psicología; Trabajo Social; Neoliberalismo.


 

 

Introdução

Este artigo possui como tema a atuação de psicólogas/os na esfera do trabalho social em suas conexões com o neoliberalismo. As análises realizadas neste estudo visam desnaturalizar as posições que ocupamos e as funções que desempenhamos enquanto pesquisadoras e interventoras nas experiências com o trabalho social. Além disso, analisar os efeitos de um agenciamento do trabalho na contemporaneidade que atravessam o campo do trabalho social. Por trabalho social entendemos um conjunto de práticas e discursos que configuram o social em momentos históricos situados e que disputam lugares de enunciação (Silva, 2005).

Segundo Silva (2005), as primeiras aproximações da Psicologia científica em direção ao social colocam em evidência a dicotomia entre indivíduo e sociedade, tornando o indivíduo a matriz para compreender a dinâmica do social, produzindo assim um processo de individualização do social e uma dessocialização da subjetividade e que é a base do modo de subjetivação das sociedades de controle.Outras tendências mais críticas da Psicologia também fincaram raízes em solo brasileiro. Contudo, é essa Psicologia individualizante que teremos fartamente acesso para lidar com as questões sociais nos primeiros trabalhos em comunidades no Brasil, por justamente coadunar com um projeto de sociedade e de indivíduo característicos de sociedades industriais e liberais. Essas ideias influenciaram fortemente o trabalho nos serviços sociais realizados, sobretudo, em comunidades pobres, em que a maior parte da população é negra, periférica e principal usuária de serviços efetivados pelas políticas públicas. Trabalho este em que diversas forças concorrem, atuando na produção de práticas neste território, por exemplo, a igreja e as organizações políticas, como sindicatos e partidos.

Assim, nos perguntamos como se deu este trabalho aqui no Brasil. Nesse sentido, faremos uma análise do trabalho social e da atuação da Psicologia no contexto de redemocratização do país e implementação de políticas públicas, explorando suas nuances em relação ao neoliberalismo. Em relação a este último, concordamos com Dardot e Laval (2016) e Mbembe (2017) que o neoliberalismo não é apenas uma ideologia ou doutrina econômica, mas um sistema normativo que expande a lógica do capital nas mais diversas relações sociais e em todas as esferas da vida. Trata-se de um sistema que tem produzido um modo de subjetividade, denominados por estes autores de o homem empresário de si, em relação à qual discutimos as tessituras entre trabalho social, Psicologia e neoliberalismo, através da consideração de dois processos, a saber: empresarização e universitarização.

 

A configuração do trabalho social num contexto de redemocratização do país e de políticas públicas

No período da transição democrática, houve uma intensa mobilização popular com a participação de diversos segmentos da população, como sindicatos, militância de partidos políticos, sociedade civil, intelectuais e profissionais autônomos engajados e setores progressistas da igreja católica. Uma conjugação de forças no campo considerado progressista, no sentido de redefinir as regras políticas e estabelecer um Estado democrático de direito, que culmina com a Assembleia Nacional Constituinte. Essa marcada, também, por disputas políticas ferozes e o desejo de grande parte dos brasileiros por mudanças sociais mais amplas (Yamamoto & Oliveira, 2010, Reis, Guareschi, Hüning, & Azambuja, 2014). Do embate político-ideológico no Congresso Nacional resultou a chamada Constituição Cidadã, promulgada em 1988. A carta magna constitui, então, avanços no campo social, como a garantia do direito à educação, à saúde e à previdência social. Mas também mantém aspectos conservadores em sua formulação como a noção de família tradicional. Contudo, um ganho importante no campo institucional e jurídico das políticas sociais é que estas deixaram de ter um caráter assistencialista e passaram a ter um caráter universalista e igualitário, sendo entendidos, portanto, enquanto direitos de todos os cidadãos e dever do Estado, independentemente de contribuição. (Yamamoto & Oliveira, 2010; Reis et al., 2014).

O que se destaca de fato, nesse momento histórico, é a mobilização política dos movimentos sociais por direitos sociais e pelas mudanças advindas daí, pois os avanços esperados com tais políticas públicas na agenda do então governo Sarney não foram satisfatórios. Pelo contrário, a máquina pública continuou operando de modo seletivo, compensatório, fragmentado, setorizado, centralizado e altamente burocratizado. Contudo, naquele momento, se configurou um sistema de proteção social, em meio a uma crise econômica mundial com uma fortíssima recessão, quando a agenda neoliberal era vendida como solução da crise (Yamamoto & Oliveira, 2010). Vale ressaltar que, em momentos de crise econômica, a agenda neoliberal sempre se coloca como um remédio, uma alternativa cujas medidas austeras de governo, supostamente, minimizariam os impactos da crise e resolveriam as questões da falta de emprego pleno, das desigualdades sociais, das dívidas interna e externa dos Estados, da produção e da competitividade das empresas dentre outros.Esta agenda é um conjunto de proposições políticas conservadoras, inspiradas no darwinismo social1, que, para levar adiante seu projeto, definiu como foco estratégico a produção de uma cultura e subjetividade empresariais. O objetivo maior é estabelecer o mercado como instância mediadora, tornar o Estado mínimo e fortalecer a lógica meritocrática. Essa agenda se materializa de acordo com as conjunturas nacionais específicas e por meio de: redução considerável da emissão monetária; aumento das taxas de juros; diminuição da taxação sobre grandes salários e grandes fortunas; do não controle sobre os fluxos financeiros; redução de postos de trabalho, elevando os níveis de desemprego em massa; controle e repressão do movimento sindical; corte de gastos sociais com a desmontagem dos serviços públicos; um programa feroz de privatização de estatais (Yamamoto & Oliveira, 2010; Dardot & Laval, 2016; Mbembe, 2017); e acrescentamos ainda, dos recursos naturais.

Essa situação constitui um flagrante da manutenção de uma herança escravocrata, produzida pela hiperexploração das Américas e espoliação da mão de obra de povos indígenas e africanos escravizados, que se materializam nas relações econômicas desiguais, atualizadas e reforçadas por famílias tradicionais da elite política e econômica do nosso país, herdeiras de famílias colonizadoras. Um aspecto histórico que devemos evocar nas análises de como o neoliberalismo se institui nas mais diversas relações sociais e aspectos da vida no Brasil. Em relação a esse processo, Achille Mbembe (2017) afirma que este é marcado por três momentos na história. O primeiro diz respeito à espoliação organizada do tráfico atlântico, entre os séculos XV e XIX, em que mulheres e homens africanos foram capturados, tornados objetos e propriedade de outros homens que faziam uso de seus corpos hostilmente. O segundo momento, entre o final do século XVIII e final do século XX, quando os negros acessam a escrita e articulam uma linguagem para si, foi um período marcado por revoltas pela independência, pela abolição do tráfico e da escravidão, pelas descolonizações africanas, pelos direitos civis nos EUA e contra o apartheid na África do Sul. Já o terceiro momento, início do século XXI, corresponde à nossa época atual, marcada pela globalização dos mercados, privatização de bens, serviços e recursos naturais em escala mundial, sob a batuta do neoliberalismo, do crescimento da economia financeira, do complexo militar pós-imperial e das tecnologias eletrônicas e digitais (Mbembe, 2017).

Colocadas as contribuições de Mbembe (2017) para compreendermos essa herança histórica das desigualdades e processos de exclusão, podemos considerar que o processo de configuração de um sistema de proteção social foi comprometido por governos elitistas e inspirados pelo neoliberalismo. No que diz respeito ao período de transição democrática, essa interferência no processo de efetivação de tal sistema teve seu início no governo Collor em 1990 (Yamamoto & Oliveira, 2010). Governo este que levou o país a aprofundar a crise que atravessava, tendo como feitos mais lembrados deste governo: o sequestro das aplicações nas poupanças dos brasileiros; o rombo no INSS; e os sucessivos casos de corrupção, envolvendo o então presidente, que o levaram, inclusive, ao impeachment.

Mas, a agenda neoliberal ganhou mais força nos governos de FHC (1995-2003), que implementou um programa de Reforma do Estado bem centrado no que prescreve esta agenda. Sem deixar, contudo, de efetivar mesmo que, de modo compensatório e focalizado, algumas políticas sociais como o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, o Benefício de Prestação Continuada e o Bolsa-Escola. Isto porque a situação de desigualdade social e o número de pessoas abaixo da linha de pobreza eram alarmantes (Yamamoto & Oliveira, 2010). Percebe-se, contudo, neste cenário de efetivação de algumas políticas sociais, a precarização e a privatização dos serviços como tônica desta "Reforma". A precarização se dá a partir da descentralização dos serviços com a transferência da responsabilidade pela oferta de serviços deteriorados e sem financiamento aos governos locais (estadual e municipal) e corte de natureza discriminatória para o acesso aos serviços sociais básicos pela necessidade de comprovação da "condição de pobreza" (Yamamoto & Oliveira, 2010). Já a privatização, parcial ou total dos serviços, se dá pela mercantilização dos serviços sociais, transformando-os em mercadorias, inserindo-os em nichos de mercado e ofertando ao consumidor, configurando também uma atualização da espoliação da força de trabalho do trabalhador (Yamamoto & Oliveira, 2010). Um outro ponto, não menos importante, é a instituição da terceirização nos serviços públicos realizada nos governos FHC, que já anunciava uma fragilização dos direitos dos trabalhadores e uma reorganização do mundo do trabalho, de modo a atender à lógica neoliberal. Ou seja, via serviço público, as empresas lucravam com a intermediação de mão de obra de trabalhadores, que ganhavam menos que um servidor público, para desempenhar as mesmas funções e cuja relação de trabalho era mais desprotegida, algo que não difere da situação atual dos trabalhadores terceirizados. Pelo contrário, a situação parece estar ainda mais crítica e atinge a estabilidade de servidores públicos operadores de políticas públicas. A reforma trabalhista em vigor prevê terceirizações, trabalhos intermitentes, demissão em comum acordo sem direito ao seguro desemprego, fim da contribuição sindical obrigatória e acordos coletivos que prevalecem sobre o legislado, por exemplo. Uma reforma que coloca trabalhadores em situação desvantajosa frente ao empregador.

Houve ainda, nos governos de FHC, a atualização da assistência filantrópica em resposta à questão social, que acontece com a transferência de parte da responsabilidade por ofertar serviços sociais, sobretudo para populações consideradas excluídas e vulneráveis, para a sociedade civil que realiza trabalhos voluntários. Essa atualização da filantropia desembocou também no aparecimento de organizações não-governamentais (ONGs), que configuraram o chamado "terceiro setor" (Yamamoto & Oliveira, 2010).

A parceria entre o Estado, o mercado e a sociedade civil (ação solidária, filantrópica, voluntária) produziu consequências que interferiram nos processos de efetivação das políticas sociais, por exemplo: atendimentos segmentados em serviços de qualidade diferenciada, conforme o poder aquisitivo dos usuários. Interferiram também na mobilização e organização política de setores da sociedade, uma vez que a institucionalização de discursos e práticas ligadas ao mundo administrativo-empresarial foi ganhando força e enfraquecendo processos autogestionários e coletivos. Um modo de ver e tratar a sociedade civil se constituiu a partir de ONGs, que atendem as mais diversas questões sociais, e não mais dos movimentos populares de décadas anteriores. Um processo que também produziu uma certa despolitização dos conflitos sociais (Yamamoto & Oliveira, 2010). Essas organizações passam a receber recursos públicos via editais, convênios, e mais tarde, parcerias público-privadas. O que nos remete a um funcionamento que engata ao mesmo tempo um processo de terceirização dos serviços públicos, a precarização dos mesmos e o desmantelamento das políticas sociais, uma vez que os recursos públicos para as políticas sociais são drenados para estas organizações do terceiro setor. Podemos dizer que o terceiro setor foi a porta de entrada das empresas e se mostrou como alternativa de eficácia para a gestão de políticas sociais. Com argumentos, não sem fundamentos, de que a gestão pública é ineficiente, carente de planejamento e de ferramentas de gestão administrativas. O planejamento, acompanhado de monitoramento, busca por resultados e avaliação dos mesmos, se constitui como principal ferramenta nas mudanças de gestão das políticas sociais, em detrimento de uma gestão com perspectiva de processos e da qualidade das relações e serviços disponibilizados.

Nesse processo de descentralização das competências do Estado para as ONGs voltadas para os interesses coletivos, acreditava-se que estas seriam capazes de realizar ações em seus projetos de maneira integrada e intersetorial, envolvendo outras organizações, formando uma rede que respondesse às demandas da população. Daí o discurso empresarial de que, para efetivar as políticas públicas de modo eficaz e eficiente, seria necessária uma mudança na cultura organizacional das instituições públicas, gestoras de tais políticas, e a incorporação de organizações autônomas privadas, estas supostamente competentes na administração de recursos.

No que diz respeito à oferta de serviços sociais enquanto um nicho bastante rentável para empresas, a denominação de "empresas responsáveis socialmente", garante um diferencial num mercado altamente competitivo, pois agrega valor à marca, ao produto e ao nome da empresa que disputa a preferência de consumidores. Junto com isto, toda uma produção de teorias e técnicas para garantir uma gestão de qualidade, tornando as empresas mais eficientes, eficazes, "eticamente responsáveis", mais competitivas e lucrativas, além de atrativas a investidores e a formalização de convênios e contratos com empresas estatais para a realização de variados serviços. Percebemos isso com a instituição dos sistemas de certificação de qualidade das empresas, como o ISO 9001.

E os profissionais da Psicologia neste contexto? Ao longo das décadas de 1980 e 1990, estes profissionais foram se inserindo em espaços institucionais de atendimento às populações mais pobres, consideradas vulneráveis socialmente, em diversos projetos de assistência social e saúde em organizações governamentais e ONGs. Concordamos com Yamamoto e Oliveira (2010), que foi através das discussões e dos movimentos sociais pela saúde pública e reforma sanitária e o trabalho com a saúde da população, que colocava em questão a situação de grande parcela da população brasileira, que os psicólogos se inseriam no movimento dos trabalhadores da saúde. Talvez aqui tenhamos indícios de um processo de proletarização dos profissionais da Psicologia, sua entrada nos serviços públicos, como também uma participação política no que tange aos direitos dos trabalhadores num contexto de reorganização do mundo do trabalho e uma configuração do trabalho social de psicólogos no âmbito das políticas públicas. Muitas discussões vicejaram neste período nas entidades representativas em relação à inserção do psicólogo no espaço público. Também o Conselho Federal de Psicologia (CFP) divulgou a minuta "A atuação do psicólogo na promoção da saúde", com diretrizes para atenção psicológica no sistema público, no sentido de esclarecer, delimitar e identificar as atividades deste profissional na área da saúde (Yamamoto & Oliveira, 2010). Podemos considerar tal minuta como algo que se desenvolverá e constituirá mais tarde o Centro de Referência em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP). Este foi constituído para a produção de referências técnicas das práticas psicológicas no âmbito das políticas públicas, cujo objetivo é garantir uma atuação profissional comprometida ético-politicamente com as nossas questões sociais, com os direitos humanos e a participação das/dos profissionais da Psicologia na formulação, gestão e execução das citadas políticas.

Então, a entrada de grande parte destes profissionais na saúde pública e na assistência social não resulta necessariamente de um processo de conscientização profissional em relação ao seu papel junto às populações mais pobres. Essa entrada está relacionada também com a crise geral do capitalismo, que gerou um grande número de desempregados, diminuindo o padrão de consumo da classe média, em que se encontrava grande parte da clientela de serviços psicológicos. A falta de clientes no mercado de trabalho e as discussões acadêmicas em relação à importância social da profissão impeliram o psicólogo a buscar trabalho em outros espaços capazes de absorver sua mão de obra. Não havia um modelo de trabalho nestes lugares, então grande parte dos profissionais acabava por reproduzir no atendimento junto às pessoas pobres a psicoterapia realizada nos consultórios (Yamamoto & Oliveira, 2010).

Por outro lado, é inegável que, a partir de 2003, com a eleição de Lula houve um investimento no desenvolvimento de políticas públicas que pudessem diminuir as desigualdades sociais. Nos governos seguintes, Lula-Dilma (2010-2016), houve um investimento no desenvolvimento das ações em saúde, na geração de trabalho, emprego e renda, recursos destinados à educação, à pesquisa e à cultura, na agricultura familiar e em obras estruturais para o desenvolvimento do país, criação de universidades públicas federais e institutos de educação, ciência e tecnologia, sobretudo nas regiões norte e nordeste. Além das políticas de reparação e promoção da igualdade racial e social como a Política de Cotas nas universidades públicas, instituiu: O PROUNI; a Política de Saúde da População Negra; a Lei nº 10. 639, que institui a obrigatoriedade da inclusão no currículo oficial da rede de ensino a temática "História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena"; demarcação e titulação de terras quilombolas e indígenas; regulamentação do trabalho doméstico, possibilitando um grande contingente de mulheres negras trabalhar com carteira assinada e usufruir dos direitos presentes na CLT; o Programa Minha Casa Minha Vida; dentre outras. Vale ressaltar que a implementação de tais políticas é fruto das lutas dos movimentos sociais, sobretudo o movimento negro, que tem sinalizado a importância, não só das políticas de reparação, como também da necessidade de pensarmos em perspectivas decoloniais, tendo em vista a herança da escravidão no Brasil e as dificuldades encontradas no processo de enfrentamento do racismo institucionalizado, que alimentam as desigualdades sociais no nosso país.

Contudo, consideramos que os governos Lula-Dilma fracassaram na tentativa de conciliação de interesses da classe trabalhadora, priorizando políticas públicas necessárias para a mobilidade social,mas também fazendo concessões às elites, cedendo às exigências de setores que representam os grandes empresários do país e do sistema financeiro mundial. As políticas públicas implementadas não foram suficientes para promover as reformas sociais tão sonhadas que radicalizariam a democracia no Brasil. Mesmo com a efetivação de algumas políticas públicas, os governos Lula-Dilma, de um certo modo, desaceleraram o avanço da agenda neoliberal, mas não deixaram de realizá-la. Foi nesses governos, com a implementação de políticas públicas, que se ampliou a possibilidade de atuação profissional do/a psicólogo/a. Esse período marca a instituição da atuação deste profissional no âmbito das políticas públicas e imprime intensa produção, ainda que incipiente, de conhecimentos teóricos e práticos neste campo, sobretudo, uma produção em torno das populações consideradas vulneráveis e em situação de risco social. Em relação a isto, Reis et al. (2014) colocam em questão a produção de conhecimento em Psicologia Social no Brasil, a partir dos enunciados que compõem especificamente o campo discursivo da Psicologia Social. Essa produção de saberes na Psicologia Social inicialmente estava voltada para movimentos sociais e lideranças comunitárias enquanto agentes de mudanças sociais. Mas ao longo dos anos foi sofrendo um deslocamento e passou a enfatizar o campo das políticas públicas, reconhecendo-as como centrais no processo de transformação social, como mecanismo de superação das condições geradoras de exclusão e opressão sociais, e espaço também de participação política. Isso fica evidente no início dos anos 2000, quando se percebe uma diminuição de trabalhos voltados para os movimentos sociais e uma grande quantidade de trabalhos versando sobre políticas públicas (Reis et al., 2014).

Uma hipótese levantada por Reis et al. (2014), e com a qual concordamos, é que a própria constituição das políticas públicas instituiu um importante espaço de trabalho para psicólogos nos últimos anos, gerando maior investimento das agências de fomento em pesquisa nesta área e o interesse de pesquisadores também. Mesmo com este deslocamento de grande parte das produções para as políticas públicas, ainda temos produções que apostam na análise dos movimentos sociais e que problematizam a cooptação dos mesmos pela política governamental (Reis et al., 2014). Contudo, estes autores apontam para os riscos que corremos, quando operamos apenas pela via do Estado, que é o enfraquecimento da noção de política enquanto relações entre as pessoas, despotencializando assim os modos de organização populares. Além disso, o foco nas políticas públicas tem levado a uma busca por soluções funcionalistas na dinâmica dos serviços públicos, de modo a responder aos entraves impostos à efetivação dos marcos legais consolidados (Reis et al., 2014). E temos percebido isso no campo de atuação de psicólogos/as na esfera do trabalho social, operando com as políticas públicas. Faremos uma análise deste ponto mais adiante, ao tratar do que chamamos de empresarização do trabalho social. Tal deslocamento parece promover uma despolitização e institucionalização dos movimentos sociais, antes vistos como protagonistas no processo de democratização do país e opacos no cenário da Psicologia Social contemporânea (Reis et al., 2014). Lembramos que não foram poucas as críticas que tentavam diminuir a importância das chamadas Jornadas de Junho de 2013, que levaram uma multidão às ruas do país, estimuladas pelas manifestações de rua disparadas pelo Movimento Passe Livre.

Destacamos ainda que o campo de produção de conhecimentos da Psicologia Social também é um campo de disputas enunciativas, que por muito tempo tem privilegiado epistemologias geralmente de origem européia. Há uma abordagem às questões sociais a partir deste olhar eurocentrado. Mas, atualmente, presenciamos um movimento nesta produção que tem colocado como pauta um saber localizado, epistemologias mais condizentes com a nossa realidade e pluralidade cultural. E tem sido crescente, por parte de trabalhadores sociais da Psicologia, o interesse por epistemologias do sul, pelos estudos pós-culturais e decoloniais, perspectiva afrocentrada, um saber que é produzido pelo subalterno, que adentra os espaços de produção de conhecimento e problematiza as referências até então consideradas cânones no trabalho social. Além de Achille Mbembe (2017), que utilizamos na produção da dissertação que originou este artigo, podemos citar alguns/umas desses/as autores que tivemos a oportunidade de conhecer: Angela Davis, Djamila Ribeiro, Carla Akotirene, Grada Kilomba, Aníbal Quijano, Gayatri Chakravorty Spivak. Por outro lado, o trabalho social por meio da luta por direitos foi se institucionalizando e se distanciando das comunidades e movimentos sociais, como mostra Reis et al. (2014). E esta luta por dentro do Estado, de um certo modo, foi estatizando a vida e exercendo um controle cada vez mais crescente das populações pelas políticas públicas, num Estado que foi se tornando neoliberal. Ou seja, o próprio trabalho social, lutando por direitos por dentro do Estado, enfraquecendo movimentos de luta externos à máquina estatal, foi engendrando e fortalecendo o modo empresa de si.

 

Trabalho social e o modo empresa de si

Por empresarização estamos entendendo o atravessamento entre as instituições empresa e trabalho social, em que acontece uma modulação da subjetividade do trabalhador social e uma composição lógica do modus operandi empresarial com as práticas desenvolvidas nos projetos e organizações sociais e, até mesmo, programas governamentais que compõem as políticas públicas na área social (CAPS, PSF, CRAS, CREAS, centros de referências, projetos de promoção e proteção aos direitos humanos etc.). No que diz respeito às políticas públicas, um dos fenômenos que a área da administração produziu, e é interessante para pensarmos em como elaborar e efetivar políticas públicas, é o diagnóstico e a planificação, duas ferramentas que auxiliam a lidar com o uso dos recursos públicos para atender às demandas da população. Contudo, pensamos que é preciso nos atentarmos aos modos de governo que vêm junto com essas ferramentas da administração.

Assim, ao elaborar e implementar políticas públicas, sem levarmos em conta os seus efeitos nos territórios, na sua microdinâmica e na vida das pessoas, estaremos a lidar com sujeitos universais e não singulares. Quer dizer, sujeitos que não são reais, que não se encaixam nas definições universais das políticas, presos a uma Psicologia positivista que tende a universalizar fenômenos por demais distintos, tomando o indivíduo como matriz na lida com a dinâmica social, como alerta Silva (2005), reproduzindo o modo de subjetivação das sociedades de controle. Como também trabalharemos mais preocupados com os resultados quantitativos (que também são importantes) do que com os resultados qualitativos dos serviços prestados por tais políticas, resultado de um processo de mercantilização dos serviços públicos, analisados por Yamamoto e Oliveira (2010), e que consideramos parte de um processo de organização do trabalho social com políticas públicas que visa ofertar ou atender uma demanda alta de necessidades da população, sem que este atendimento busque resolutividade dos casos.

Isto provoca amarras de todo tipo, uma delas é a justificação dos recursos com base no quantitativo de atendimentos e procedimentos, como se só quantitativamente pudéssemos dar conta das demandas. A demanda tem que estar sempre alta, não importa suas variações. Os números justificam os recursos. As pessoas só importam se fazem números, se reforçam a economia planejada, suas vidas e suas queixas pouco importam, produzindo assim uma certa indiferença ao outro. Essa dinâmica coloca o trabalhador social numa teia do sobretrabalho, da sobreimplicação2 e, consequentemente, do sofrimento psíquico, por não ter atingido suficientemente os resultados esperados pelas políticas públicas implementadas. Os resultados qualitativos, os quais consideramos menores, não no sentido de reduzi-los, mas no sentido das práticas que se dão no nível micropolítico e fora das grandes narrativas, estes nem sempre são aproveitados, muitos foram produzidos por trabalhos que subverteram as prescrições de funcionamento e gerenciamento das políticas públicas. Isto mostra uma das estratégias de resistência no trabalho social.Por perceber uma outra lógica operando, que é a do investimento de risco e retorno, a empresarização implica muitas vezes em um investimento de risco no profissional e espera-se dele que o mesmo dê o retorno desejado pela organização. O esperado pela organização é que ele seja um técnico qualificado, que trabalhe mais do que o contrato prescreve, que utilize seus conhecimentos técnicos para mitigar os erros de gestão que impactam na ponta do seu trabalho sem analisá-los criticamente, que não reclame, não questione, entre no jogo, obedeça e, principalmente, produza bastante, de modo a agregar valor à marca, à política e abra novos campos de exploração. Há um descompasso entre as exigências de produtividade empresarial e a busca de qualidade no trabalho social com intenção crítica, e isto acaba consumindo uma parte das energias dos psicólogos sociais e de suas práticas. Isto nos diz ainda da formação do sujeito empresa de si, que é um sujeito do desempenho, da flexibilidade e do curto prazo, conforme analisam Mbembe (2017) e Dardot & Laval (2016).

Precisamos de profissionais qualificados sim, de quadros técnicos competentes no que fazem sim, de profissionais pensantes sim, criativos e propositivos para realizar vários trabalhos. Cada trabalho, cada serviço que faz funcionar a organização da sociedade é um universo complexo e precisa acompanhar as mudanças nos processos sociais para intervir, precisa interferir com as mudanças, precisa perguntar quais mudanças precisamos fazer. Mas não é muito difícil nos depararmos com um clima competitivo entre profissionais, com a corrida por cargos públicos que auferem prestígio, bons salários, reconhecimento e notoriedade, além de agregar valor ao currículo. Por incrível que pareça, é possível encontrar funcionamentos panópticos, que podem se apresentar na relação com supervisores do nosso trabalho, assistentes ou até mesmo profissionais que exercem a mesma função que a nossa. São dinâmicas guardiãs das lógicas instituídas na organização do trabalho social. Aqueles funcionamentos que vão sempre ligar o sinal de alerta moralizante, que vão transmitir e zelar para que nada saia do lugar e se mantenha estruturalmente igual (mesmo que não esteja nada bem para ninguém), aqueles que vão dificultar o trabalho e desencorajar algumas iniciativas que podem ser interessantes, que farão questão de tornar o nosso trabalho insustentável.

Funcionamentos panópticos são aqueles ainda que resguardam a imagem de suas lideranças como deuses e os doutrinamentos da instituição a ferro e fogo, aqueles que bloqueiam o fluxo de ideias e discursos de mudança por medo, pelo não sei o quê mais. Afinal, os discursos de mudança podem se tornar uma ameaça, justamente por não afirmarem determinadas lógicas instituídas, por simplesmente se descolarem da organização e mudarem um pouco as ideias no ambiente de trabalho, por se colocarem como corpos instituintes e não se submeterem à instituição, por desacomodar a dinâmica institucional, pessoas que afirmam estes discursos acabam sendo convidadas a, ou, levadas a deixarem seu trabalho para o sossego das organizações. Estes funcionamentos panópticos são efeitos direto da lógica empresarial operando na micropolítica do trabalho social. As considerações em relação a tais funcionamentos são oriundas de leituras e do processo de análise realizados na dissertação. Por outro lado, a hierarquização, tão característica das empresas, é atualizada nas relações estabelecidas entre diretores de organizações, coordenadores de equipes e de projetos (os chamados quadros superiores e chefias) e equipes técnicas. Muitas vezes, decisões são tomadas por quadros "superiores", sem o conhecimento da realidade dos territórios nos quais atuam as equipes técnicas. Estes quadros "superiores" decidem sobre problemas que não vivenciam, em territórios nos quais não estão presentes, em que os conflitos recaíram para as equipes técnicas resolverem de acordo com o que foi estabelecido pelas chefias. E a equipe técnica ainda tem que inventar uma justificativa para os usuários de seus serviços, quando os problemas não são resolvidos a contento, como o chamado "testa de ferro."Ao analisarmos a empresarização do trabalho social, não queremos demonizar produções próprias do campo da administração. Reconhecemos que existem ferramentas de gestão que nos auxiliam a empregar os recursos que dispomos para atender às necessidades da nossa sociedade. Chamamos atenção para o uso destas ferramentas conectado à lógica empresarial, que tende a transformar bens e serviços públicos em produtos privativos num mercado concorrencial, cujas políticas públicas, enquanto um projeto de democratização da nossa sociedade e garantidoras de direitos, são tornadas em meio por onde o neoliberalismo também se faz.

 

Universitarização do trabalho social

Universitarização é um movimento de qualificação profissional permanente, cada vez mais identificado com os moldes da universidade, de modo que este processo formativo atenda à lógica, aos diversos aspectos da dinâmica neoliberal e às exigências do mercado. Esse processo não só gera sobretrabalho, como constitui um dos principais mecanismos de subjetivação do sujeito empresa de si. Entendemos que a universitarização é causada pela precarização do trabalho, com um número cada vez mais crescente de trabalhadores sociais, e entre eles, psicólogos sociais. Portanto, um excedente de profissionais para uma baixa oferta de vagas no mercado de trabalho. Isso permite aos empregadores impor exigências cada vez maiores de qualificação aos profissionais.

Tal contexto tem impelido muitos profissionais a buscarem alternativas nas universidades em seus processos formativos. Percebemos profissionais adentrarem os cursos de residência, mestrados e doutorados, tanto pela qualificação exigida, quanto pela possibilidade de remuneração. É importante destacar também que nem todos os psicólogos que buscam os cursos de pós-graduação, por exemplo, o fazem impelidos pela pressão de mercado ou tão somente pela sua pressão, mas também por pensar em problemáticas nascidas no seu campo de atuação. Muitos desses profissionais acabam tendo como horizonte o trabalho docente, campo esse que tem absorvido um número expressivo de pessoas. Os serviços efetivadores de tais políticas, como os de saúde e assistência social, por exemplo, absorviam boa parte de profissionais da Psicologia social em suas equipes multidisciplinares. Essa universitarização da profissão do psicólogo social também nos faz pensar nas exigências explícitas e implícitas por currículos profissionais robustos para o mercado de trabalho. Isso leva a uma corrida por uma qualificação profissional cada vez mais impositiva, pelo reconhecimento profissional que vem da quantidade de cursos e experiências profissionais que se coloca no lattes. Tudo isso também leva ao cerco que se fecha a quem não tem titulação. Como diz Mbembe (2017), estamos condenados à aprendizagem a vida toda, abraçados à condição de sujeito solúvel e descartável, respondendo à consigna de tornarmo-nos outro para atender à lógica e à dinâmica neoliberal. Por outro lado, a inexistência de um espaço no trabalho social em que a análise das práticas e a produção de conhecimento se pudesse dar, leva a academia a ser o espaço em que recorremos para isso.

A universitarização, como apresentada acima, é uma das problemáticas do trabalho social no atual contexto neoliberal, pois ela é resultado de alguns princípios básicos da economia capitalista. Ou seja, ela faz a formação funcionar dentro da lógica de mercado, com acentuado produtivismo. O modus operandis das empresas é imposto às organizações sociais e às instituições de ensino como se estas fossem empresas sociais. A qualificação do profissional é medida por sistemas de certificação de qualidade: títulos, premiações, lattes, publicações em revistas consideradas de alto nível (sistema qualis), empreendedorismo e meritocracia, agregar valor ao currículo (produto) e aumentar as chances de empregabilidade e renda. Além desses ganhos materiais, ainda temos muitas vezes a busca por status, uma vez que quanto maior a titulação, maior o reconhecimento social. E nessa dinâmica universitarizada, "vai-se instalando a ficção de um novo ser humano, «empresário de si mesmo», plástico e convocado a reconfigurar-se permanentemente em função dos artefactos que a época oferece" (Mbembe, 2017, p. 14).Num artigo, Gilles Monceau (2008) chama de profissionalização questões relativas à implicação profissional que tem conexão com o que chamamos aqui de universitarização. Ou seja, na visão do autor, esse fenômeno é puramente político. Trata-se de uma maneira nova de gerir as profissões. Isto é, gerir tanto as profissões quanto os profissionais, de tal forma que lhes pareça que eles são autônomos. Para Monceau (2008), esse processo se traduz principalmente como universitarização das profissões, a formação profissional se dá cada vez mais na universidade e de acordo com o modo de fazer da universidade. Monceau (2008) fala ainda que cada vez mais se produzem discursos e exigências sobre as profissões, de tal forma que uma profissão atinge seu reconhecimento quando encontra um lugar na universidade, consegue financiamentos para pesquisas e produz revistas científicas. Logo, uma profissão deve explicitar sua prática e suas consequências no cotidiano.

O autor mostra ainda que o mal estar aparece quando os profissionais não encontram mais na sua profissão os valores que o levaram a entrar nela. Isto porque o trabalho realizado pelos profissionais tem um sentido que se perde quando o valor da ação empreendida neste trabalho se perde também. Percebemos aqui uma evidência do mal estar que encontramos no trabalho social da Psicologia social, ao depararmo-nos com uma prática universitarizada e empresarizada, se distanciando de uma prática que se pretende transformadora da realidade e das relações entre sujeitos. Mas, ainda assim, uma prática que se produz por entre resistências.

Concordamos com Monceau (2008), quando ele diz que a profissionalização vai permitir reconhecer a singularidade do indivíduo, mas também pode conduzir a uma forte normalização. Já Silva (2005) traz as contribuições de Deleuze ao mostrar que a educação e o meio profissional desaparecerão em proveito de uma formação permanente, que exerce um controle contínuo sobre o operário-aluno ou o executivo-universitário. Relacionamos isso com a entrada cada vez maior de profissionais recém-formados nos programas de pós-graduação. Ainda em relação a isso, no próprio processo do pesquisar, nos vimos maravilhadas, consumindo ideias, leituras que têm a ver com nossas pesquisas, nossas lutas, nossos campos de coerência. Esquecemos que são muitas as possibilidades de relação daquilo que lemos com nossas pesquisas; e, no consumo das leituras, preenchemos os espaços necessários para o encontro com os conceitos, com os autores, os espaços das afetações necessárias para a criação numa pesquisa. A impressão que temos é que produzimos muito e nos apropriamos pouco em relação às leituras que fazemos. Não obstante, a tristeza, o sentimento de cansaço, a angústia, a vontade de parar tudo e recorrermos ao isolamento vem acompanhados da sensação de que algo está errado conosco, algo não está normal. E com isso, o pensamento de que estamos em dívida com a pesquisa, por não termos produzido o tanto que gostaríamos e no tempo que nos é prescrito; em dívida com os espaços de discussão política e ação direta, por não estarmos presentes e por não desenvolvermos um trabalho junto às pessoas que conhecemos. Como se parar de escrever e ler por um momento fosse o mesmo que negligenciar, postergar o trabalho, não ter comprometimento com a pesquisa.Atravessados pelo tempo cronológico e pela vontade de finalizar o processo da pesquisa para tão logo dedicarmos nosso tempo à ação direta, aos enfrentamentos que o contexto atual exige, vemo-nos como operários-alunos sobreimplicados, divididos entre o trabalho da pesquisa e o trabalho em ações mais diretas junto às comunidades. Mais uma dicotomização do processo pesquisar-trabalhar ou trabalhar-pesquisar, sem nos darmos conta de que é por entre a ação da pesquisa e a ação direta com os outros é que faremos o nosso trabalho e criaremos outros mundos. Talvez seja este um modo de lidar com as problemáticas do capital, num contexto que nos empurra para um contínuo formar-se empresa de si. Teremos que aprender a viver no limiar de algo, no entre mundos, provocando vazios diante da montanha de coisas e estímulos que parecem nos engolir, produzindo espaços para respirar.

Reconhecemos e achamos fundamental qualquer processo de ampliação e de mudança nos modos de ver a vida, o trabalho, as relações, o mundo. Mas temos que ficar atentos aos hipnotismos de um sistema que nos suga, que nos forma, que nos transforma em suas engrenagens. E um modo de fazermos resistência a isso é problematizando o que estamos vivendo em comum com os outros. A universidade cumpre um papel fundamental de problematizar essas formas de configuração do trabalho social, sobretudo, quando tais problematizações envolvem grupos historicamente estigmatizados e marginalizados como a população negra e pobre. Assim, a universidade se constitui em um espaço de resistência política e formativa. Além disso, questionar o seu papel na manutenção desse novo arranjo e como tem lidado com a variação de profissionais que adentram seus cursos também é algo que consideramos necessário. Vale lembrar que não tínhamos uma grande oferta de cursos de nível superior, sobretudo, programas de pós-graduação. Em relação a este último, vimos profissionais com certa expertise e tempo considerável de experiência profissional predominarem nos programas de pós-graduação.

Recentemente, com a expansão de tais programas, vimos com certa naturalidade, profissionais recém-graduados e com poucos anos de experiência adentrarem os PPGs, assim como trabalhadores estudantes ou operários-alunos, trabalhadores militantes que arriscam seus trabalhos já instáveis para fazer-lhes questões, analisando junto com pesquisadores dos PPGs como lidar com as problemáticas de seus trabalhos e criar saídas possíveis aos arranjos neoliberais que os configuram. Essa percepção não tira a importância da qualificação de profissionais, sejam eles recém-formados ou não. Esta é uma realidade que compõe o campo da academia hoje, o território dos PPGs. E com a ameaça constante de privatização das universidades públicas, consideramos extremamente necessária a entrada de trabalhadores sociais nos cursos de graduação e pós-graduação, sobretudo, negros, pobres, indígenas e LGBTTQ. Mas chamamos atenção aqui para este movimento de entrada nos PPGs, que pode potencializar ainda mais a máquina empresa de si. Cabendo à universidade, enquanto centro formador, problematizar esta questão, repensar a sua dinâmica formativa e sob quais ideias assenta suas produções acadêmicas. O que para nós tem forte relação com análise de implicação3 proposta por Lourau (2004).

Essas são, portanto, algumas problemáticas do trabalho social que tem modulado este trabalho e tem transformado a experiência neste em um desafio, o qual exige de nós um olhar mais apurado, mais crítico e clínico. Exige também que pensemos em modos de agir desestabilizadores desta máquina capital, uma vez que implicados com ela todos nós estamos. Exige que aproveitemos a potência de insurgir, de rebelar-se, de estabelecer contenda, de inventar uma capoeira do trabalho social, assim como fizeram nossos antepassados no período da chamada primeira expoliação organizada analisada por Mbembe (2017).Ao analisar essas problemáticas do trabalho social, não queremos dizer que estaremos finalmente livres de sermos enredados pelo modo de subjetivação engendrado pelo capital, que purgaremos para todo o sempre o mal produzido pelo capital, mas colocá-las em evidência possibilita perceber e inventar outros modos de trabalhar que provoquem defecção desta máquina, que provoque a invenção de outras máquinas resistentes às investidas do capital, pela análise do próprio trabalho. Que nos lancem a um trabalho social que inventa outros mundos.

 

Considerações

Buscamos perceber o trabalho social que realizamos de modo a desnaturalizar as posições que ocupamos e as funções que desempenhamos enquanto pesquisadoras e interventoras nas experiências com o trabalho social. Analisando também as suas condições de emergência, vimos que o trabalho social foi um modo criado pelo Estado moderno para lidar com as contradições entre a democracia e o livre mercado. Por entre esses dois princípios, o trabalho social se atualiza e se rearranja de acordo com as condições históricas. Percebemos ainda que o trabalho social é um campo de forças em disputa que se dá em nós, nas relações, nas práticas e discursos que produzimos. Portanto, ao mesmo tempo em que potencializa o Estado capitalista em sua fase neoliberal, o trabalho social também pode fazer frente a esta ordem, provocando rachaduras, dificultando e debilitando seus movimentos.

As análises que fizemos tornaram evidentes uma configuração do trabalho social, como eco das referências de um contexto experimentado no trabalho e que nos captura e reforça um Estado neoliberal, com o qual estabelecemos relações de enfrentamento das desigualdades produzidas por este mesmo Estado. Trata-se das problemáticas universitarização e empresarização do trabalho social. Problemáticas não no sentido de conflito a ser evitado ou prontamente resolvido, mas como algo resultante de múltiplas relações que constituem uma experiência. Elas se interligam, mas consideramos que cada uma delas necessita de um estudo mais sistematizado. E isto para nós significa que o problema desta pesquisa está sendo recolocado.

Por fim, consideramos que o trabalho social da Psicologia se estatizou com a implementação das políticas públicas, se configurando entre a normatização e controle social e os movimentos de resistência que se insurgem frente ao capital. Um paradoxo com o qual temos que lidar. Não sabemos ao certo quais os efeitos do que parece configurar o trabalho social hoje. Não sabemos ao certo que configuração é esta, além do que já ganhou forma. Seguimos nos rastros das virtualidades desse trabalho social, entendendo-o como dinâmico e enquanto potência de provocação. Entendendo ainda que muitas mudanças, a partir do que já se produziu com este trabalho social, anunciaram um mundo diverso, que é recebido por velhos modos de subjetivação resistentes à sua finitude. Ou ao menos resistentes a reconhecerem que estão perdendo força. E por isto mesmo, levanta-se com fúria na tentativa de barrar o que não se pode conter: a história.

 

Referências

Dardot, P. & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal (Estado de sítio) São Paulo: Boitempo.         [ Links ]

Lourau, R. (1994). Análise Institucional e práticas de pesquisa. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio.         [ Links ]

Mbembe, A. (2017). Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona.         [ Links ]

Monceau, G. (2008). Implicação, sobreimplicação e implicação profissional. Fractal Revista de Psicologia, 20(1),19-26.         [ Links ]

Reis, C., Guareschi, N. M. F., Hüning, S. M., &Azambuja, M. A. (2014). A produção do conhecimento sobre risco e vulnerabilidade social como sustentação das práticas em políticas públicas. Estudos de Psicologia, 31(4),583-593.         [ Links ]

Silva, R. N. (2005). A invenção da Psicologia social. Petrópolis, RJ: Vozes.         [ Links ]

Yamamoto, O. H. & Oliveira, I. F. (2010). Política Social e Psicologia: uma trajetória de 25 anos. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 26(nspe.), 9-24.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 23/05/2019
Aprovado em: 23/11/2019

 

 

1 Darwinismo Social é um conjunto de ideias e práticas que tomam por base a noção de espécies aptas e inaptas aos processos de adaptação ao meio e luta pela sobrevivência, desenvolvida por Charles Darwin. Esta noção foi transposta para o modo de conceber a dinâmica da sociedade, sobretudo na emergência da sociedade moderna, criando determinismos como o biológico (as diferenças culturais e psicológicas são determinadas biologicamente) e geográfico (as diferenças do ambiente físico condicionam a diversidade cultural e o clima é fator importante no desenvolvimento e progresso de uma sociedade). O Darwinismo Social também serviu de base para teorias e práticas racistas como a eugenia, o fascismo e o nazismo.
2 Segundo Lourau (2004), a sobreimplicação é uma normativa do sobretrabalho, gestora da necessidade do implicar-se, é a "submissão a ordens explícitas ou a consignas implícitas da nova ordem econômica social, ávida por preencher as grandes brechas produzidas tanto pela desafetação quanto pela institucionalização, maior ou menor, do desemprego" (Lourau, 2004, p. 191).
3 Lourau (2004) afirma que todos/as nós estamos implicados/as em tempo integral com os objetos que criamos e os campos que constituímos. E a análise de implicação envolve um trabalho intenso de problematização do que criamos e constituímos, como também intenso processo de transformação que é a passagem de uma cultura à outra. Algo que nos auxilia a ver o pensamento em movimento e a esperar qualquer encontro e informação nova que nos ajude a rever nosso ponto de vista em relação aos objetos e campos. É como uma dissolução de algo ao mesmo tempo em que algo também está se fazendo.

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