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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.21 no.52 São Paulo set./dez. 2021

 

DOSSIÊ BIOPOLÍTICAS E COVID-19

 

Inumeráveis e pandemia: a memória como resistência à quantificação da vida

 

Innumberable and the pandemic: memory as resistance to life quantification

 

Los innumerable y la pandemia: la memoria como resistencia a la cuantificación de la vida

 

 

Gerusa Morgana BlossI; Lucas de Oliveira AlvesII

IPsicóloga. Psicanalista. Doutoranda em Psicologia Social e Cultura - PPGP/UFSC. Bolsista Capes. E-mail: gebloss@gmail.com
IIPsicólogo. Psicanalista. Mestrando em Psicologia Social e Cultura - PPGP/UFSC. Bolsista Capes. E-mail: lukass.oliveira@hotmail.com

 

 


RESUMO

Esse artigo visa discutir alguns aspectos da gestão política da pandemia causada pelo coronavírus, bem como analisar projetos memorialísticos que se contraponham ao discurso de quantificação da vida engendrado por esferas do poder. Partimos dos conceitos de biopolítica e tanatopolítica, respectivamente em Foucault e Agamben, para refletirmos sobre a lógica de manejo da vida e da morte que se desdobra e se agudiza durante a pandemia no Brasil. No que tange à memória, resgatamos e articulamos o pensamento de Freud e Benjamin como modo de pensar uma memória que seja individual e coletiva, articulada ao luto e à possibilidade de narrar o tempo em que vivemos. Destacamos obras de Ai Weiwei e o projeto Inumeráveis no Brasil, buscando refletir sobre como essas obras memorialísticas podem resistir a uma política de apagamento do valor singular da vida.

Palavras-chave: Biopolítica; Luto; Memória; Pandemia; Tanato política.


ABSTRACT

This article aims to discuss some aspects of the political management of the pandemic caused by the coronavirus, as well as to analyze memorial projects that oppose the discourse of quantification of life engendered by spheres of power. We started from the concepts of biopolitics and thanatopolitics, respectively in Foucault and Agamben, to reflect on the logic of managing life and death that unfolds and worsens during the pandemic in Brazil. Regarding memory, we rescued and articulated the thoughts of Freud and Benjamin as a way of thinking about a memory that is individual and collective, articulated to grief and the possibility of narrating the time in which we live. We highlight works by Ai Weiwei and the project Inumeráveis in Brazil, seeking to reflect on how these memorialistic works can resist a policy of erasing the singular value of life.

Keywords: Biopolitics; Grief; Memory; Pandemic; Thanatopolitics.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo discutir algunos aspectos de la gestión política de la pandemia causada por el coronavirus, así como analizar proyectos de memoria que se oponen al discurso de cuantificación de la vida engendrado por las esferas de poder. Partimos de los conceptos de biopolítica y tanatopolítica, respectivamente en Foucault y Agamben, para reflexionar sobre la lógica de gestión de la vida y la muerte que se despliega y se agrava durante la pandemia en Brasil. En cuanto a la memoria, rescatamos y articulamos el pensamiento de Freud y Benjamin como una forma de pensar una memoria que es individual y colectiva, articulada con el luto y la posibilidad de narrar el tiempo que vivimos. Destacamos las obras de Ai Weiwei y el proyecto Inumeráveis en Brasil, buscando reflexionar sobre cómo estas obras memorialísticas pueden resistir una política de borrado del valor singular de la vida.

Palabras clave: Biopolítica; Luto; Memoria; Pandemia; Tanatopolítica.


 

 

Introdução

Vivemos um momento histórico que nos convida a refletir sobre a vida, a morte e suas relações com agenciamentos políticos. Nesse cenário de pandemia do coronavírus1, nos direcionamos a pensar o laço social e os efeitos que as narrativas promovem ao nos depararmos com a finitude. No presente artigo, propomos uma discussão que abrange as esferas da política e da memória, onde destacamos expressões artísticas que buscam fazer frente e denunciar o horror que vivemos quando as vidas de entes queridos e de diversos brasileiros são tomadas simplesmente como números em expressões estatísticas.

Temos como objetivo enfatizar a importância da nomeação para uma politização articulada à memória. Nesse movimento, destacamos as obras de Ai Weiwei e a produção coletiva "Inumeráveis" (2020). As obras são enlaçadas pela constituição de uma narrativa histórica que envolve as esferas da ética e da política. Contrapomos essas produções aos discursos que se dirigem aos mortos como números e aproximam o cenário atual a um quadro genocida - cenário onde o argumento "a economia não pode parar" - é usado para justificar a barbárie de um governo que se aliou ao vírus e à morte.

"A economia não pode parar", as vidas podem? Quando obrigados a escolher entre o emprego e a vida, somos subjugados a uma lógica que tira o valor da humanidade, que é virtualmente apreendida sob a forma de um número. Dessa forma, números tanto no âmbito da economia quanto em uma contabilização dos corpos adquirem conotações ambíguas e encobrem os perigos a que estamos submetidos: o vírus e o autoritarismo. Esse argumento falacioso e mortífero produz uma espécie de camada que impede que muitos percebam o óbvio: as vidas importam e importam independentemente de vínculos imediatos e reconhecíveis (família, amigos, grupo identitário), posto que vivemos em uma dinâmica de interdependência, vinculados por afetos, desejos e memórias que nos constituem individualmente e coletivamente. Freud (1889/1996) destaca que nossa condição primordial é a do desamparo. É pelo desamparo que nos unimos ao outro e construímos modos possíveis e heterogêneos de viver em sociedade. O desamparo se apresenta, portanto, como condição política essencial, potência para resistências, levantes e modos outros de viver com o outro, abrangendo as esferas da sobrevivência e da convivência (Butler, 2019; Safatle, 2018).

O método do artigo consiste na análise e discussão, articulando autores da filosofia e da psicanálise, de políticas que se desdobram no contexto da pandemia, mas não se restringem a ela, bem como em modos de resistência a alguns de seus efeitos a partir da memória. Refletimos sobre as narrativas de produtividade e quantificação da vida emanadas de esferas do poder, resgatando o conceito de biopolítica de Michel Foucault, articulado à noção de tanatopolítica como desenvolvida por Giorgio Agamben. Esses conceitos nos auxiliam a refletir sobre os discursos que ecoam no Brasil durante a pandemia, engendrando atos de insensibilidade e violência frente à dor daqueles que enlutam suas perdas. Após, desenvolvemos reflexões acerca do luto e da memória a partir da leitura psicanalítica de Sigmund Freud, bem como da leitura filosófica de Walter Benjamin, autores que articulamos por meio da obra do teórico Georges Didi-Huberman. Somam-se à discussão algumas contribuições de Judith Butler e de teóricos brasileiros como Vladmir Safatle, Edson Sousa e Maria Rita Kehl.

As obras de arte que destacamos são tanto desencadeadoras das discussões sobre a memória articulada à resistência política quanto um recorte de abrangência de nossas leituras; essas se enlaçam a outras e apontam para novos encadeamentos. Apresentamos as mesmas na discussão do artigo também como exemplos do que pode ser feito de diferente em meio ao caos e à ameaça de esfacelamento da singularidade da vida: tratam-se de vestígios de memórias, lampejos de esperança, maneiras de ensejar um luto coletivo. Na discussão, partimos da obra "Reto" de Ai Weiwei, produção monumental de origem chinesa, exposta em 2018 no Brasil e em diversas cidades do planeta desde 2012 (Dantas, 2018). A obra, articulada a outros gestos do artista, bem como de seus colaboradores pelo mundo, é paradigmática ao revelar o valor do luto e da memória como tática de guerrilha, forma de resistir a uma política autoritária que quantifica vidas e mortes.

Estamos em meio a uma tarefa complexa: vivemos a pandemia que aterroriza o mundo e em meio a ela buscamos questionar o movimento de uma história difícil de ser assimilada. Essa tarefa nos interroga acerca de um posicionamento ético que permite relançar questões e fazer valer, frente a políticas burocráticas e autoritárias de controle da vida e da morte, o valor da memória, da singularidade e da vida. Ao nos referirmos à vida estamos incluindo a dos mortos, às marcas que caracterizam cada experiência como "inumerável" e memorável. Desse modo, seguindo o mesmo trajeto do vírus que hoje nos assola, partimos das obras de Ai Weiwei, fruto de suas experiências estéticas e políticas na China, para analisar e discutir criações memorialísticas que emergem hoje no Brasil, apostando no valor analogamente contagiante, coletivo e transcontinental da arte, bem como em seus efeitos de criação de memórias compartilhadas; memórias que nos vinculam a despeito das fronteiras e nos apontam caminhos possíveis para modos de vida que se pautem em nossa irrevogável condição de sujeitos desamparados (Safatle, 2018), precários e interdependentes (Butler, 2019).

 

Biopolítica e Tanatopolítica: quantificação da vida e da morte

Foucault (1979/2019), em suas incursões arqueológicas e genealógicas, analisa o modo como o controle e a distribuição dos saberes, alinhados às políticas de Estado, tornam-se indispensáveis a partir dos séculos XVIII e XIX para a estruturação e regulação da sociedade capitalista. Estes saberes, articulados às redes de poder, circulam e são controlados de maneira dominante, mas não exclusiva, por diferentes aparelhos (universidade, exército, meios de comunicação, instâncias jurídicas), tornando-se objeto de difusão e consumo. O saber como insígnia do poder é ora autorizado, ora proscrito, ora restrito, ora disseminado, ensejando diferentes formas e amplitudes para o poder que se exerce sobre si e sobre o outro em macro e microcosmos de vigilância e dominação.

Foucault (1970/2014, 1979/2019) aponta, na vinculação do discurso científico aos aparelhos políticos e econômicos, uma tentativa de estabelecer a universalidade do saber, certa homogeneização das relações com o corpo e com a verdade. O discurso "científico-capitalista" passa a atuar sobre os corpos, classificando-os como doentes ou saudáveis, produtivos ou improdutivos. Na esfera populacional, estes corpos são manejados como números, dados estatísticos imprescindíveis às análises econômicas e políticas por meio de questionamentos periodicamente reformulados: quantas e quais vidas são necessárias para o governo e suas engrenagens econômicas?

De acordo com Foucault (1979/2019, p. 144): "O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo." Essa ideia expressa a concepção de biopolítica, expondo como o controle social - ordenação tanto dos corpos individuais quando do corpo político - passa invariavelmente pela perscrutação do corpo em seu estatuto biológico. Não por acaso, a medicina emergiu como ciência hegemônica no século XIX, servindo às políticas públicas sanitárias e epidemiológicas. O corpo torna-se uma realidade biopolítica, peça chave para a economia, e a ciência uma indispensável estratégia para a investigação e o manejo (médico, jurídico, educacional) dos corpos e da população. Ao discorrer sobre a transição das monarquias com seu poder soberano para as formas de governo burguesas, o filósofo afirma:

A população aparece, portanto, mais como fim e instrumento do governo que como força do soberano; a população aparece como sujeito de necessidades, de aspirações, mas também como objeto nas mãos do governo; como consciente, ante o governo, daquilo que ela quer e inconsciente em relação àquilo que se quer que ela faça. (Foucault, 1979/2019, pp. 425-426)

É nessa transição que a biopolítica toma forma como exercício hegemônico de poder, instaurando discursos e instituições de diversas ordens para normatizar formas de vida, autorizar ou coibir discursos e ações, controlar doenças e epidemias. A população passa a ser autorizada a demandar e criticar práticas do Estado sem, contudo, deixar de ser objeto de seu controle, objetificada e instrumentalizada para os interesses do governo.A biopolítica, nesse sentido, direta ou indiretamente, seja pelo investimento na qualidade de vida da população ou, ao contrário, por descaso, negligência e práticas de extermínio como as guerras - tanto as declaradas ao estrangeiro quanto a grupos internos do Estado - delibera sobre a vida e a morte.

Agamben (2002, 2008), na linha de Foucault, comenta que a fórmula pré-moderna ou, ainda, pré-capitalista, instrumentalizada pelo poder soberano, era a de fazer morrer ou deixar viver (tanatopolítica). Já a fórmula moderna, na lógica do biopoder, pode ser expressa pelo deixar morrer e fazer viver (biopolítica). O século XX e a experiência dos Estados totalitários (fascistas e nazistas) fazem as duas fórmulas coexistirem por meio de ideologias racistas, desdobradas em ações políticas de exclusão e genocídio. Os estados de exceção produziram cadáveres em escala industrial, ao mesmo tempo em que procuraram melhorar a vida de determinados grupos. A aplicação simultânea das duas fórmulas, ao invés de desaparecer com o fim dos totalitarismos, tornou-se cada vez mais próximo da regra, moldando as formas atuais de exercício de poder. Agamben usa como exemplo as experiências paroxísticas dos regimes fascistas europeus, pois a escalada de mortes nos campos de concentração e nos campos de batalha, associada a políticas de melhoria para alguns grupos (no caso da Alemanha nazista, os "verdadeiros arianos') evidenciaram a conjunção das duas fórmulas na modernidade. Contudo, a conjunção bio-tanatopolítica foi e continua sendo igualmente aplicada em regimes não-totalitários como democracias liberais, onde o investimento na qualidade de vida de uma parcela da população convive com práticas de extermínio de alguns grupos vulnerabilizados, minoritários, etc.

Dessa forma, aproximando da realidade que vivemos com a atual pandemia, podemos observar como os aparelhos de poder contemporâneos atuam na melhoria da qualidade de vida da população e, concomitantemente, sustentam um neoliberalismo desenfreado, ocasionando indiretamente doenças e pandemias2, gerando morte em escala global. Nessa dinâmica, o cálculo da vida e da morte que os agentes políticos detentores do poder efetuam, fica mascarado pela ideia falaciosa de um indivíduo autogestor de si, independente de seu coletivo, inteiramente responsável por sua saúde (corporal, financeira) e, em última instância, por sua vida. O caráter explicitamente biopolítico, como investimentos em saneamento, saúde e educação é exposto sem, contudo, revelar a lógica capitalista que o impulsiona, sobretudo quando essa lógica visa precarizar a vida de algumas parcelas da população em nome da economia e daqueles que veladamente a controlam. A biopolítica e a tanatopolítica se coadunam ao discurso do mercado e suas oscilações, operando sobre valores e, de modo similarmente calculista e burocrático, sobre os corpos dos vivos e dos mortos.

Segundo Foucault (1979/2019), o indivíduo é um efeito do poder. Não se trata, portanto, de pensar o indivíduo como o outro do poder, passivo em relação a seus efeitos, mas pensá-lo como seu efeito primeiro. O indivíduo, essa ideia de um "eu imperativo" prescindindo do outro, é essencial para o exercício e manutenção das expressões neoliberais de mercado, onde o papel do Estado se torna o de um facilitador dos interesses do mercado financeiro. A afirmação da individualidade, como destacam autores como Butler (2019), Safatle (2018) e o próprio Foucault, por outra abordagem, age de maneira despolitizadora, fazendo as pessoas acreditarem na sua total independência em relação ao outro e defenderem uma política econômica baseada no mercado financeiro de valores, onde as vidas tornam-se abstrações do mesmo modo que investimentos e ações da bolsa.

Birman (2009) e Sousa (2011) demarcam a diferença entre individual e singular, afirmando que singular é característica do sujeito com história, memória, constituído pelo outro e pela dimensão da narrativa e da experiência. O indivíduo, por seu turno, é aquele que, na esteira do pensamento moderno - e seus pressupostos científico-capitalistas que deram corpo às formas de governo bio e tanatopolíticas atuais - equivale a uma dimensão totalizante, fechada, com características e formas expressas em uma identidade, buscando prescindir do outro.

São nas malhas mesmas do poder, instrumentalizadas pelas políticas de vida e morte, que as possibilidades de resistência e enfrentamento surgem em lutas perpétuas e multiformes (Foucault, 1981/2003). "As falas breves e estridentes que vão e vêm entre o poder e as existências as mais essenciais, sem dúvida, são para estas o único monumento que jamais lhes foi concedido: é o que lhes dá, para atravessar o tempo, o pouco de ruído, o breve clarão que as traz até nós." (p. 208). Esses ruídos e clarões, resistências aos efeitos nefastos do poder, compõem aquilo que o autor denominou de estética da existência (Marques & Prado, 2018), engendramentos das possibilidades de ver e sentir associadas a uma ética do cuidado de si e do outro. Podemos aproximar essa discussão do caráter singular como contraposição ao individual visto que sublinha uma ética que não prescinde do outro, mas o afirma como constituinte do que somos e podemos ser nas tessituras e hiâncias do poder.

Como maneira de nos contrapormos à política que equipara vidas a números, apostamos em uma reflexão ética acerca da singularidade do sujeito; sujeito constituído e enlaçado ao outro por meio da transmissão da experiência e da memória coletiva. Vejamos a seguir, a partir de uma interlocução com Freud e Walter Benjamin, as relações entre a singularidade, o coletivoe a memória, de modo a pensarmos em maneiras de fomentar estéticas da existência no tempo em que vivemos, interrogando, resistindo e buscando transformar a gestão bio e tanatopolítica que se desdobra na atual crise pandêmica causada pelo coronavírus no Brasil.

 

Memória, Singularidade e Narrativa

Buscamos apresentar algumas considerações acerca da dimensão da memória a partir da leitura de Freud e de Benjamin como forma de abrangermos as considerações que as experiências que vivenciamos e as obras que analisamos suscitam.

A questão da memória perpassa a psicanálise desde seus primórdios. Vinculada a aspectos inconscientes e pré-conscientes, pode ser compreendida, e é especialmente descrita no início da obra freudiana a partir dos traços mnêmicos que se inscrevem no psiquismo (Freud, 1900/1996). Isso marca as repre sentações que se apresentam para cada sujeito.

A memória não tem um caráter linear, uma vez que o inconsciente é atemporal (Freud, 1915/1992). Assim, há uma maleabilidade que acentua o quanto as memórias podem se reconfigurar para cada sujeito. A censura, as resistências, as diversas experiências que são vividas fazem com que ora possamos lembrar de determinados eventos, ora os esqueçamos, ora irrompam em nossa consciência, e por vezes os reinventamos e os ressignificamos.

Ao trabalhar sobre as "lembranças encobridoras" (1899/1996) Freud destaca o caráter ficcional que nos enlaça à memória e descreve os mecanismos psíquicos pelos quais uma lembrança se aproxima da outra e a modifica, de forma que o que se inscreve e é contado adquire outro contorno. Trata-se dos mecanismos de deslocamento que permitem que uma lembrança - sob a qual a censura atua, seja substituída por outra, de menor intensidade e mais assimilável no pré-consciente.

Desde as indicações acerca da histeria em que Freud refere que as histéricas o enganam, o que é destacado é o caráter ficcional da constituição do evento traumático. Ou seja, para que determinado evento adquira caráter de trauma, não necessariamente ele precisa ter sido vivido na realidade factual - ele pode ter sido experenciado na fantasia e adquirido essa densidade. A memória, atravessada pela fantasia, traz à tona eventos construídos ficcionalmente, fazendo desta uma instância que cria em uma conjunção entre a realidade vivida e a maneira como esta é processada psiquicamente, envolvendo apagamentos, deformações e sobreposições. Nesse sentido, cabe destacar que os objetos internos (realidade psíquica) são menos incognoscíveis do que o mundo externo (Freud, 1915/1992) constituindo-se como um enigma sob os quais o sujeito busca constituir a própria experiência, relançando-o a partir das narrativas e reposicionando sentidos e desejos.

Ao transitar por algumas considerações psicanalíticas sobre a memória, podemos assinalar a imbricada relação com os outros e, assim, perceber como as histórias singulares, somadas e articuladas, compõem uma memória coletiva na qual são asseguradas as condições da experiência. Assim, podemos ressaltar que a experiência não é algo que está garantido pelo fato de vivenciarmos determinados eventos, trata-se de uma implicação que permite que quem viva os fatos tenha condições de narrar, de constituir um dizer e uma articulação singular com a história.

Walter Benjamin, em seu texto "Experiência e pobreza" (1933/1987) destaca alguns aspectos que nos ajudam a situar a discussão sobre a memória. O autor trabalha sobre a experiência da perda e a perda da experiência. A experiência da perda se relaciona às situações traumáticas de nomeá-las e elaborá-las por meio do luto, ao que demanda um trabalho para que seja integrado à narrativa e adquira um sentido. A perda da experiência tem relação com a dificuldade de experenciarmos de fato as situações, integrando-as à nossa história. Quanto a esse aspecto, o autor escreve: "qual o valor de toda nossa herança cultural, se a experiência não mais o vincula a nós?" (Benjamin, 1933/1987, p. 115). É isso que a faceta tanatopolítica do governo engendra: o apagamento da memória. Sem a memória estamos fadados a uma repetição sintomática, fruto dessa experiência pobre que impossibilita a narrativa e, consequentemente, o laço que poderia ser constituído a partir dela. Em "Teses sobre o conceito de história", Benjamin situa que:

O cronista que narra os acontecimentos sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um dos seus momentos. (Benjamin, 1940/2007, p. 223)

Dessa forma, há um compromisso ao tecermos narrativas que reiteram o valor de cada pessoa no âmbito coletivo. Freud e Benjamin apresentam teorizações que se aproximam. A partir da leitura de Freud, destacamos o enlace da memória singular com a coletiva, uma vez que somos seres sociais por excelência. Com Benjamin, acentuamos a perspectiva da história para trazer as experiências à tona. Ambos os autores nos aproximam de nosso compromisso ético de questionar como podemos tecer narrativas que permitam abranger diferentes experiências de vida, a memória dos falecidos, e transmitir à nossa geração e às próximas uma postura de cuidado e de solidariedade. Todas as vidas - e cada uma delas - das que estiveram aqui e das que já não estão, das que se manterão e buscarão se questionar acerca de seu papel em um mundo que já não é mais o mesmo porque nunca pôde sustentar ser o que era - todas as vidas importam.

É por esse motivo que apostamos em uma forma de experenciar esse evento histórico em uma postura crítica, que enlaça os corpos singulares e coletivos, que acentua o valor da memória - para que não se repita. Já estamos diante de uma repetição de uma postura autoritária que, se por um lado, busca nos paralisar, por outro, evidencia a urgência de levantes.

 

Mais do que números: luto, memória e política

A violência contra aqueles que já não estão exatamente vivos, ou seja, estão vivendo em um estado de suspensão entre a vida e a morte, deixa uma marca que não é uma marca. Não haverá nenhum ato público de luto (disse Creonte em Antígona). (Butler, 2019, p. 57)

Para que a gente escreve, se não é para juntar nossos pedacinhos?

Se o passado não tem nada a dizer ao presente, a história pode permanecer adormecida, sem incomodar, nos guarda-roupas onde o sistema guarda seus velhos disfarces.

O sistema esvazia nossa memória, ou enche a nossa memória de lixo, e assim nos ensina a repetir a história em vez de fazê-la. As tragédias se repetem como farsas, anunciava a célebre profecia. Mas entre nós, é pior: as tragédias se repetem como tragédias. (Galeano, 2002)

No ano de 2008, um terremoto atingiu a localidade de Sichuan, na China, destruindo escolas e matando milhares de crianças. O governo chinês se eximiu da responsabilidade por essas mortes, alegando que a causa estava estritamente ligada ao terremoto, não tendo relações com a má qualidade das construções. O fato é que diversos edifícios da região não sofreram danos daquela magnitude, levando algumas pessoas a criticarem e exigirem satisfações do Estado. Na esteira dessas críticas, o artista contemporâneo Ai Weiwei lança mão de um projeto monumental. Ele contrata um coletivo para ir até as escolas, retirar as barras de ferro retorcidas e distorcê-las em um galpão. Esse gesto deu origem à obra "Reto" (Straight), onde centenas de barras de ferro acumuladas convocam o público a investigar uma história trágica que, de modo análogo aos eventos que vivemos hoje na pandemia, associam eventos naturais a posturas de governos autoritários que, por descaso e omissão, potencializam os efeitos da tragédia e rasuram as marcas e reverberações da memória. Como forma de abafar o caso, o governo chinês deu pouca atenção às vidas perdidas no evento, levando o artista Ai Weiwei a investigar os nomes das crianças mortas na escola e divulgá-las em mídias digitais. Com o auxílio de voluntários, os nomes e datas de nascimento de 5196 estudantes foram coletados, fomentando um memorial com efeitos de luto coletivo e de resistência política (Dantas, 2018).

Judith Butler (2019) relembra o que Freud comenta em Luto e Melancolia (1917) acerca da perda e do luto. Quando perdemos alguém, não sabemos exatamente o que perdemos daquela pessoa. Um enigma se instaura a partir da morte do outro, sinalizando que algo em nós foi transformado. O que perdemos do e no outro? O que se modificou em nós com a partida daquele que nos constituía - constituía nossa rede de relações? Essas questões demonstram que o luto, associado ao exercício de memória indispensável à sua elaboração, nos defronta com a incontornável presença do outro em nós. "Quando perdemos alguns desses laços que nos constituem, não sabemos quem somos ou o que fazer. De certa maneira, acho que perdi 'você' apenas para descobrir que 'eu' desapareci também" (p. 42).

Essa afirmação da autora se articula à diferença entre o individual e o singular; diferenciação que nos permite opor o trabalho da memória, campo do sujeito constituído pelo outro, à concepção mercadológica e estanque do indivíduo, reino do eu com fronteiras bem definidas, impermeável ao outro. Se por um lado, projetos políticos alinhados ao controle numérico dos corpos exercem um efeito de dessensibilização à morte e ao luto, o trabalho de visibilidade das vidas, como o engendrado por Ai Weiwei, nos permite experienciar o que se altera em nosso entorno e em nós mesmos com a perda do outro, evidenciando nossa interdependência no laço social. Ai Weiwei faz um levantamento de nomes e histórias interrompidas, gesto político e ético que podemos aproximar a um levante, contraposição ao descaso do governo chinês. "O luto fornece um senso de comunidade política de ordem complexa, primeiramente ao trazer à tona os laços relacionais que têm implicações para teorizar a dependência fundamental e a responsabilidade ética" (Butler, 2019, p. 43). O luto coletivo ensejado pelo artista levanta os efeitos de uma memória presente, capaz de interrogar diferentes tempos e revolucionar formas de se relacionar na pólis.

O laço social brasileiro em tempos de pandemia tornou-se emblemático no mundo pelo descaso e pela incitação à violência simbólica e real do Estado e de setores do empresariado que o apoiam. Declarações do presidente da república como o "E daí?" "Eu não sou coveiro." ou "É só uma gripezinha." (G1, 2020a), em consonância a falas de empresários como o dono da rede de restaurantes Madero: "Uns 5, 7 mil vão morrer, mas a economia não pode parar." (Spautz, 2020) ou da ex-secretária da cultura Regina Duarte, que em entrevista ao canal CNN (CNN, 2020), falou que não queria transformar sua secretária em um obituário, evocando memórias saudosistas do período da ditadura civil militar brasileira - algo que o próprio presidente faz com frequência - trazem à tona uma rede discursiva que prioriza a produtividade a qualquer custo, negando ou distorcendo evidências científicas e impelindo pessoas à morte em nome de uma matemática mórbida e da saúde do mercado.

Para Foucault (1979/2019), bem como para Agamben (2002) e Butler (2019) em suas leituras foucaultianas, o poder soberano não desapareceu com a transição dos regimes absolutistas para as sociedades disciplinares amparados por aparelhos jurídicos e governamentais. Os governos democráticos mantiveram os valores e aparatos da soberania, agindo de maneira extra-jurídica e extra-democrática sempre que isso se mostrou necessário para os interesses do Estado. Butler (2019) analisa a permanência da soberania em casos como os dos prisioneiros de Guantánamo, local onde as leis são suspensas em nome da segurança da nação norte-americana. Na história, temos exemplos explícitos da suspensão do estado de direito nos regimes nazifascistas e nas ditaduras latino-americanas, onde a ameaça comunista, étnica ou religiosa serviu de pretexto para exterminar inimigos e/ou implantar modelos neoliberais na economia. Outrossim, é possível observar como o poder soberano e sua lógica tanatopolítica continua agindo mesmo nos períodos democráticos e, inclusive, em nome da democracia. O Brasil é um exemplo desse modelo, pois nossa democracia permanece autorizando tacitamente o genocídio de populações mais vulneráveis: a juventude negra nas favelas e periferias, povos indígenas e, em períodos agudos como o que vivemos, grupos mais vulneráveis ao vírus como idosos, grupos pauperizados (majoritariamente composto por negros) e estratos da classe média impelidas ao trabalho somam-se a estes.

O panorama, como bem definiu Agamben (2002, 2008), evidencia o estado de exceção como regra, enlaçamento de uma política de morte do Estado à política de manutenção da vida econômica. Quando setores do governo, do empresariado e da mídia exortam à população ao trabalho sob o argumento de manutenção de empregos, ou quando o discurso difundido por um chefe de Estado incita aglomerações na pandemia, sistematicamente nega qualquer prestação de homenagem aos mortos e tenta esconder dados sobre os casos de contágio e letalidade3, temos uma demonstração obscena da tanatopolítica. Quadro que invariavelmente nos remete ao paroxismo do nosso estado de exceção: a ditadura civil militar (1964-1985), regime que matava e escondia corpos, primando pelo apagamento da memória e pela indiferença ao luto.

Como forma de resistência à política de morte sistêmica do Estado brasileiro, especialmente agudizada no governo Bolsonaro, destacamos a obra "Inumeráveis", cuja poética do gesto aproximamos das obras supracitadas de Ai Weiwei pela sua dimensão articuladora da memória, do luto e da política. Esse memorial é uma obra do artista Edson Pavoni em colaboração com Rogério Oliveira, Rogério Zé, Alana Rizzo, Guilherme Bullejos, Gabriela Veiga, Giovana Madalosso, Rayane Urani, Jonathan Querubina e os jornalistas e voluntários que continuamente adicionam histórias a este memorial. A obra é apresentada da seguinte maneira:

Como em todas as pandemias, pessoas tornaram-se números. Estatísticas são necessárias. Mas palavras também. Se nem todas as vítimas tiveram a chance de ter um velório ou de se despedir de seus entes queridos, queremos que tenham ao menos a chance de terem a sua história contada. De ganharem identidade e alma para seguir vivendo para sempre na nossa memória. (Inumeráveis, 2020)

De forma sensível e poética, os falecidos são apresentados nesse memorial: "Adelita Ribeiro da Silva, 37 anos. Uma heroína que perdeu a vida para salvar vidas;" "Agostinho Rodrigues Samias, 84 anos. Guardião da língua do seu povo, tinha o sonho de fazer um dicionário indígena Kokama;" "Francisco Rafael Agostinho Araujo, 36 anos. Carregava dentro de si a força de um grande defensor dos direitos humanos;" "José Mauri Freire, 51 anos. Ele expressava o seu amor nos pequenos gestos;" "Margarida Rosa de Sousa, 80 anos. Margarida Rosa: uma mulher de nome e alma florida;" "Jacqueline Hernandes, 49 anos. "Vamos comer o que tivermos vontade porque não sabemos o dia de amanhã. Miséria comigo jamais!", brincava ela" (Inumeráveis, 2020).

Esses são alguns dos homenageados. Ao clicarmos sobre os seus nomes, podemos conhecer um pouco mais da história de cada um. Podemos nos aproximar de diferentes olhares e descrições a respeito de suas vidas, podemos nos enlaçar com suas histórias, podemos nos emocionar e chorar pelas vítimas, vítimas que têm nomes, que deixaram marcas na sociedade, nos seus entes queridos e amigos.

Ao longo de suas articulações clínicas e teóricas, Freud abre caminho para que possamos trilhar aspectos do inconsciente (Freud, 1915/1992). Como seres sociais por excelência, isso não se dá sem o outro. Inicialmente com nossos pais e/ou cuidadores, vamos sendo marcados por memórias e experiências que nos situam na relação com os outros, deixam marcas no nosso psiquismo. Essas memórias contém a singularidade de quem as experencia, na medida em que são também ficcionalizadas (Freud, 1899/1996). Ao entrarmos em contato com a obra "Inumeráveis", temos a oportunidade de fazer viver em nossas memórias afetos e efeitos de sujeitos que deixaram suas marcas e um legado para a sociedade. Manter esse legado presente concede a oportunidade de assimilá-lo a nossas narrativas. Dessa forma podemos, enfim, resgatar suas memórias, na tentativa de elaboração de um luto coletivo e necessário. Com a psicanálise, percebemos que não há como esquivarmos do que vivemos, não é possível, sem efeitos catastróficos, negar os acontecimentos que, no contexto atual da pandemia, seria negar a morte de várias pessoas com as quais nos enlaçamos direta ou indiretamente.

Em junho de 2020, é realizado pela ONG Rio de Paz em Copacabana um ato relacionado aos mortos vítimas da Covid 19 (Globoplay, 2020). Na praia são feitos buracos simbolizando covas que, juntamente às cruzes que são colocadas diante de cada uma, constituem uma homenagem aos falecidos e uma forma de denúncia do descaso que vivenciamos politicamente. Somam-se a essa cena dois acontecimentos que podemos relacionar à discussão que estamos realizando: (a) um homem derruba as cruzes e diz que a questão do vírus é uma invenção comunista; (b) outro homem recoloca as cruzes no lugar - trata-se de um homem cujo filho morreu devido ao coronavírus.

Se de um lado, há uma postura que se vincula a uma negação do que está acontecendo, por outro há um familiar enlutado que não se conforma com a invisibilidade dos mortos e clama por simbolizar as perdas. De acordo com Maria Rita Kehl, o luto pelo qual estamos passando levará muito tempo para ser realizado, e se constitui como um trauma (BBC, 2020). Muitos dos familiares não conseguem se despedir de seus entes queridos devido às restrições. Isso deixa uma ferida aberta cuja reverberação no a posteriori desconhecemos. Um trabalho de enlutamento dessas vidas se faz premente para que possamos elaborar individualmente e coletivamente os eventos que testemunhamos. Nesse sentido, memoriais possibilitam a circulação da palavra e o rompimento com o silenciamento endossado pela política negacionista do governo.

Somada a essa política negacionista em relação às mortes e a dor causada pela pandemia, há por parte do governo claras tentativas de instar memórias positivas acerca da ditadura, onde a negação do luto daqueles que perderam pessoas para esse regime se faz similarmente presente nos discursos. É notório o dizer de Bolsonaro acerca dos desaparecidos políticos da ditadura: "Quem gosta de osso é cachorro." (Fórum, 2019). Safatle (2018) comenta que nunca houve uma verdadeira democracia no Brasil, pois a ditadura sempre esteve latente (Notícias da UFSC, 2018). A lei da anistia permitiu que ficassem impunes muitos dos que estavam a frente de torturas e assassinatos daquele período. A filósofa Jeanne Marie Gagnebin, em uma entrevista, nos lembra que até a "redemocratização" era comemorada no dia 31 de março o dia da "revolução" que instaurou o regime (Youtube, 2009). Hoje esse feriado não existe, mas é possível perceber que não é ingenuidade permitir que alguns eventos históricos tenham relevância, sejam discutidos e outros não - e mais, não é sem consequência que algumas situações são negadas e insistem em se repetir na nossa história. O que gostaríamos que reverberasse na história? Um marco que caracterizou a opressão, como essa data? Um olhar sensível para as vítimas da opressão, que nos lembre de que as vidas importam?

Isso se articula ao que estamos trabalhando no sentido de que há um movimento ético e político a ser sustentado no Brasil, país que tem um escasso trabalho de memória, sobretudo quando pensamos na memória dos historicamente vitimados pelas diferentes políticas de morte aqui instauradas. Como apontado pelo psicanalista Edson Sousa (2020) em seu artigo "Por uma estética do atrito - a função utópica de um memorial" há poucos memoriais no Brasil. Apontar a necessidade dos memoriais é tomar posição no sentido de que há histórias - de pessoas, de eventos históricos, que precisam ser revisitadas e sob as quais é possível tecer novas narrativas, reposicionar sentidos e fazer algo com o que ficou. Segundo o autor:

A pergunta que se impõe é, portanto: que imagem é capaz de nos deter, de cavar um espaço de memória e escuta nos comprometendo com a função do testemunho? É esta a função de um memorial, uma espécie de ruído de fundo perturbador que injeta desordem na ordem e progresso. Memorial como um ato de amor a verdade e a história, palavra que faltou no lema da bandeira brasileira, já que a inspiração positivista de Augusto Comte propunha literalmente: O Amor por principio, a ordem por base e o progresso por fim. (Sousa, 2020, p. 41)

Consoante a essas considerações, trazemos à tona a discussão sobre imagem dialética desenvolvida por Walter Benjamin e retomada por Didi-Huberman. A imagem dialética seria aquela que convoca a um movimento crítico de sentidos e, encadeada a outras e ao discurso, nos convida a algo a mais.

Não é que o passado lança sua luz sobre o presente ou que o presente lança luz sobre o passado; mas a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação. Em outras palavras: a imagem é a dialética na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal, a do ocorrido com o agora é dialética - não de natureza temporal, mas imagética. Somente as imagens dialéticas são autenticamente históricas, isto é, imagens não arcaicas. A imagem lida, quer dizer, a imagem no agora da cognoscibilidade, carrega no mais alto grau a marca do momento crítico, perigoso, subjacente a toda leitura. (Benjamin, 1940/2007, p. 505)

Assim, a imagem dialética seria aquela que condensa aspectos históricos. Trata-se de uma imagem que possui uma densidade capaz de movimentar novas significações, ao mesmo tempo em que contempla a variedade de aspectos e de tempos heterogêneos, aparece fulgurantemente como um lampejo que reposiciona sentidos, contém a possibilidade de reconfigurar o momento ao mesmo tempo em que o apresenta.

Didi-Huberman (1998), ao tramar o conceito de imagem crítica relacionando-o com o de imagem dialética, acentua o valor do olhar para a imagem. Acentua com isso a postura ativa do observador que se permite interpelar pela obra e produzir novas relações entre imagens e discursos a partir de sua perspectiva.

A estética de gestos artísticos e políticos traz em seu bojo palavras e imagens capazes de promover uma ampliação do universo simbólico, abrindo sentidos, possibilidades de outras significações e percepções. As barras de ferro de "Reto", por exemplo, têm o poder de narrar acontecimentos com diferentes nuances e vicissitudes em sua matéria bruta, sendo simultaneamente um memorial, uma obra crítica à política do estado chinês e fruto de uma produção coletiva, envolvendo diferentes protagonistas que atuaram na coleta e distorção das barras. A obra "Inumeráveis" se constitui em uma constelação de poesias que tomam a dimensão de imagem à medida que nos permitimos nos enlaçar com as narrativas realizadas. A atualidade da obra nos lança a uma espécie de vertigem que clama por um posicionamento ético e político diante do cenário que experenciamos.

No esteio dessas discussões, remetemos a obras de arte realizadas no período da ditadura militar, onde o corpo se apresenta como possibilidade de memória e resistência às políticas autoritárias. Destacamos artistas como Arthur Barrio e suas obras "Trouxas Ensanguentadas" e "4 DIAS 4 NOITES", Hélio Oiticica com a obra "Parangolé" e Cildo Mireles com a obra "Tiradentes: totem-monumento ao preso político". Essas obras, assim como as obras de Ai Weiwei e o projeto "Inumeráveis" remetem ao corpo ou o trazem diretamente para evidenciar seu aspecto singular e memorialístico que, enlaçado ao social, se constitui, reconfigura o entorno e é insubstituível na medida em que cada uma das vidas contém sensibilidades únicas que convidam a deciframentos e novos enlaces. Assim, o valor de cada um numa história constituída por vários, deixa rastros e registros que podem ser revisitados, bem como promover um fazer político sobre o nosso contexto (Alves, Bloss, & Marsillac, 2020; Marsillac, 2018).

Didi-Huberman (2017), na obra Cascas, articula sua experiência ao visitar o campo de concentração Auschwitz-Birkenau com aspectos mais amplos da cultura e acentua o valor dos vestígios e dos fragmentos na constituição de uma memória coletiva. Assim, nos leva a importantes reflexões sobre a barbárie e a cultura, sobre as narrativas possíveis de serem articuladas a partir da singularidade de quem se propõe a transitar por memórias e enlaçá-las aos contextos anacrônicos da história: do momento dos acontecimentos que marcaram o lugar e os fatos às vivências em um momento posterior - reconfigurando sentidos e atualizando-os. Nesse sentido, há uma consonância com formulações freudianas acerca da elaboração possível na análise e na cultura: a repetição, as marcas da história clamam por serem revisitadas para que não se repitam (Freud, 1914/1996).

Benjamin (1940/2007) refere que "Escrever a história significa dar às datas a sua fisionomia" (p. 506). Diante de uma política de morte e de apagamento da memória, o levantamento de nomes e singularidades se descortina como movimento contrário ao que está sendo feito (que poderia ser resumido como "ofertar números em detrimento da fisionomia"). Dar às datas e às vidas tratadas como números a sua fisionomia implica residir e resistir nas narrativas que nos constituem e nos entrelaçam politicamente.

 

Considerações finais

Governos com contornos mais ou menos autoritários e de diferentes vertentes ideológicas valem-se de dispositivos biopolíticos e tanatopolíticos como mecanismos de poder e controle da população. Nesse sentido, buscamos destacar obras de territórios e contextos diversos como forma de pensar maneiras de resistência a essas políticas que não têm propriamente uma delimitação territorial, mas pautam-se em discursos e práxis em comum: o da quantificação de vidas e mortes e a objetificação de corpos e populações como instrumento de produção ou de descarte.

Os gestos artísticos e políticos de Ai Weiwei ocorrem em embate com a política autoritária do governo chinês, onde a censura e a violência contra a vida e a memória se fazem presentes. Interessante observarmos que assim como no contexto do terremoto que originou as obras de Ai Weiwei destacadas no início da pandemia do coronavírus, o presidente chinês Xi Jinping sabia da gravidade da situação em Wuhan, epicentro mundial do contágio, mas demorou duas semanas para anunciar a epidemia (El País, 2020); gesto de omissão repetido na China e também no Brasil, onde de maneira recorrente e escandalosa, o governo Bolsonaro nega a gravidade da pandemia e dificulta as medidas de prevenção a nível nacional. É notório, também, como essa postura negacionista se coaduna à negação ou distorção de políticas autoritárias de nosso passado e presente: nossa ditadura manifesta e latente (Safatle, 2018), instaurando um modo tanatopolítico de governar - "fazer morrer e deixar viver" (Agamben, 2008) - obsceno e direto.

As artes que destacamos são algumas das inúmeras que nos apontam o valor do luto e da memória como forma de afirmar a singularidade (Sousa, 2020) e nossa condição de desamparados (Safatle, 2018), precários e interdependentes (Butler, 2019). A memória evocada por obras memorialísticas é plástica e não-linear (Freud, 1899/1996, 1914/1996), atravessa e reinventa diferentes tempos e espaços, ensejando novas imagens e narrativas (Benjamin, 1933/1987, 1940/2007). Todos os autores sublinham a necessidade do outro para a constituição do que somos a partir de nossas experiências e histórias, convocando uma ética do cuidado (Foucault, 1981/2003), da solidariedade e da elaboração pela memória.

As obras que nos propusemos a analisar convergem para um movimento de fazer da vida e da memória, poesia. Isso significa, nos pequenos e grandes gestos, perceber a humanidade em si e no outro, perceber as vulnerabilidades de si e do outro e, nesse gesto, tramar uma história conjunta. Em meio ao inenarrável das experiências de inumeráveis, cabe um trabalho sobre a memória que permita que elas continuem vivas em nossa história, uma vez que a sociedade é composta por diversas vozes que fazem laço. As histórias compartilhadas, que reverberam nas narrativas que nos constituem, são o solo da nossa experiência. Dessa forma, tornar viva a memória é um dos meios a partir dos quais procuramos atuar no sentido de uma sociedade mais justa e digna, relançando essa questão para que ecoe junto aos outros.

Nesse momento de afastamento do convívio físico, resistências e embates biológicos e políticos, somos convidados a reflexões sobre a vida e a morte. Que vida estávamos levando? Quais mortes nos deixam indiferentes e quais nos afetam? Quais memórias apagamos e quais suscitamos? As lógicas do produtivismo exacerbado, do capital regendo relações e de um perverso cálculo político sobre quem vive e quem morre, podem emergir nesse contexto como pontos a serem problematizadas, ensejando e redirecionando sensibilidades e leituras de nossas relações afetivas e políticas. O que acontecerá se nos dermos conta de que o que nos mantém em pé, nos faz tecer novos horizontes está mais próximo das criações artísticas e de seu compartilhamento do que da acumulação de capital e da afirmação da individualidade? Questões que deixamos em aberto para que as discussões desse artigo mantenham-se ressonando e fomentando reflexões sobre o tempo em que vivemos.

 

Referências

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Recebido em: 22/06/2020
Aprovado em: 27/04/2021

 

 

1 O coronavírus se desenvolveu na China e se alastrou pelo mundo, com velocidade de contágio e letalidade elevadíssima - causando a pandemia que vivenciamos em 2020.
2 Aqui estabelecemos uma relação entre a exploração do meio ambiente desmesurada, invariavelmente endossada pelo capitalismo neoliberal, e o surgimento de novas doenças. Historicamente, é movida pela expansão dos interesses capitalistas (utilização de mão de obra barata, extração de recursos, expansão industrial) que nos deparamos com micro e macro-organismos patógenos promotores de doenças humanas e, a depender das condições, de epidemias e pandemias.
3 Bolsonaro pede que o Ministério da Saúde não divulgue o número diário de vítimas e de novos casos. O site em que constava o número de óbitos foi tirado do ar e, ao voltar a funcionar, apresentava outros números, como se houvessem falecido menos pessoas (G1, 2020b).

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