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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.32 Rio de Janeiro jun. 2016

 

ENSAIOS

 

Par ou ímpar?1

 

Even or odd?

 

 

Elynes Barros Lima*

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
Fórum Fortaleza

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto aborda o conceito do Um a partir de algumas aulas do seminário O saber do psicanalista, nas quais Lacan argumenta sobre a emergência desse conceito a partir de um novo discurso, o discurso do analista. Ele parte da lógica e demonstra por meio da teoria dos conjuntos o fundamento do Um como lugar de uma falta, mas também de uma presença que insiste como repetição. Assim, a autora usa a metáfora do par ou ímpar para abordar respectivamente a identificação e a distinção, S1, produto do discurso do analista.

Palavras-chave: Discurso do analista, Teoria dos conjuntos, Identificação, Separação, S1.


ABSTRACT

This paper addresses the concept of the "One" from a few lessons of the seminar "The Knowledge of the psychoanalyst", in which Lacan argues about the emergence of this concept from a new discourse, the discourse of the analyst. He departs from the logic, and through the set theory, he explains the foundation of the "One" as a place where something misses, but also where there is a presence which insists to appear repetitively. Thus, the author uses the "even or odd" metaphor to respectively approach the identification and distinction, S1, a product of the analyst's speech.

Keywords: The analyst's discourse, One, Set theory, Identification, Separation, S1.


 

 

Que saber da clínica? Ou poderíamos perguntar de outro modo: que saber está em jogo na clínica, par ou ímpar? Um saber enlaçado, que faz par com o outro, ou o saber do Um sozinho, desenlaçado?

Lacan (1971-72/inédito, aula de 04/11/1971), no ciclo de palestras que proferiu em Sainte-Anne, afirma "o que a psicanálise revela é um saber não sabido por si mesmo". Esse saber inédito e surpreendente é o inconsciente, que se articula como uma linguagem. Mas qual linguagem seria essa, capaz de vincular o saber inconsciente? Lacan (Ibid.) responde dizendo que, quando fala de linguagem, "se trata de traços comuns a encontrar na alíngua (…) A linguagem de que se trata (…) é a linguagem na qual se pode distinguir o código da mensagem, entre outras coisas". Assim, ele distingue que a fala é a função e a linguagem é o campo. Essa distinção permite que ele situe a fala como o lugar da verdade e a linguagem como o lugar da verdade mentirosa, que ele grafou como S(), esse campo que comporta um saber, ainda que não sabido. Ímpar!

Mas, como é possível a articulação desse novo saber? Como abordá-lo clinicamente? Lacan (1971-72/inédito, aula de 03/03/1972) comenta que ele é possível a partir de um novo tipo de discurso, um discurso inédito – o discurso do analista.

 

 

A partir desse discurso, podemos vislumbrar o que está em jogo no processo analítico, ou pelo menos deveria estar. O saber em jogo é o saber inconsciente sobre o qual o analista se apoia para dirigir a cura. Cito Lacan (1971-72/inédito, aula de 06/01/1972):

O discurso psicanalítico só pode ser articulado ao mostrar que este objeto a, para que haja chance de analista, é necessário que uma determinada operação, chamada experiência psicanalítica, tenha trazido o objeto a ao lugar de semblante.

Podemos extrair daí algumas observações. A primeira que me ocorre, é que para que haja experiência psicanalítica, o objeto a deve estar no lugar de semblante. De acordo com Lacan (Ibid.), quem faz isso, coloca o objeto a no lugar de semblante, é o analisante. A segunda é que suportar esse lugar de semblante e operar a partir dele depende do analista, depende de como ele próprio vivenciou em sua análise o saber inconsciente. Lacan (1971-72/inédito, aula de 03/02/1972) diz que

[…] o essencial do saber do analista: é que esse lugar aí que eu chamei tetrápode ou quadrípede, no lugar da verdade tem-se o S2, o saber. É um saber que deve, portanto, ser sempre colocado em questão.

Como opera, então, o analista a partir desse lugar? Que ferramentas ele usa nessa operação? Freud, nos primórdios, já nos alertava para o manejo da transferência, difícil tarefa do analista! Porém, quando bem situado, ele pode operar com a interpretação. Lacan (1958/1998, p. 597) diz que: "É, pois, pelo que o sujeito imputa ao analista ser (ser que está alhures) que é possível uma interpretação voltar ao lugar de onde pode ter peso na distribuição das respostas".

Mas o que se interpreta? Tudo o que o paciente diz é interpretável? Lacan (1971-72/inédito, aula de 04/11/1971) diz que a interpretação segue um princípio: "Não há uma interpretação que não diga respeito… a quê? Ao laço do que se manifesta de fala, no que vocês escutam, o laço com o gozo". Assim, a interpretação incidiria sobre o gozo.

Lacan (Ibid.) comenta ainda que há uma insistência por parte do sujeito, e que essa insistência denuncia o gozo. Ela foi vislumbrada por Freud no início de suas formulações por meio da bipolaridade: princípio de prazer e princípio de realidade. Porém, o próprio Freud chegou à conclusão que essa dupla não era capaz de dar conta do mal-estar na civilização e forjou então o conceito de pulsão de morte. Com esse conceito, Lacan (Ibid.) diz que o que Freud queria dizer é que "não há ato senão fracassado", em suma: não há relação sexual.

E é disso que se queixam os sujeitos, é assim que chegam à análise: par! Identificados, enlaçados aos significantes do Outro, carregam amarrados em si o peso dessas identificações. O peso provém da necessidade de corresponder ao que o Outro espera dele, ou ao que ele acha que o Outro espera dele: o filho "nota dez", ou "o número 1", ou ainda "o zero à esquerda"; a esposa "fora de série"; o funcionário padrão; e todas as variações e combinações possíveis.

A identificação é o resultado do processo de alienação. Na tentativa de dar sentido aos significantes que não querem dizer nada, o sujeito produz um significante no lugar do Outro para fazer surgir ali o sujeito do ser, para dar conta de sua falta a ser. Essa operação deixa o sujeito desfalcado, diz Lacan (1964/1998, p. 854): "será a vida sem a bolsa". Esse é o preço da identificação, a alienação do sujeito aos significantes do Outro.

Izcovich (2011-12, p. 7, tradução nossa) introduz seu seminário dizendo que:

A identificação é alguma coisa que vem do outro. Ela se instala no sujeito. É alguma coisa que está no sujeito, mas que não lhe pertence completamente. Na experiência de análise isto se apresenta de um jeito evidente, ao ponto de o sujeito tentar se desembaraçar daquela parte do outro que está nele mesmo.

Mas como se desembaraçar do laço identificatório? Como é possível um desenlace, uma desidentificação?

É a partir da operação de separação que temos notícias do processo de alienação que funda o sujeito, porque é justamente no intervalo da cadeia que ele pode ter notícias do desejo e de sua própria falta, na forma de falta que ele supõe no Outro. A separação, que Lacan (1964/1998, p. 857) diz separare, gerar a si mesmo, imputa ao sujeito tomar partido: Par ou ímpar?

No seminário O saber do psicanalista, Lacan (1971-72/inédito, aula de 04/05/1972) retoma sua fórmula não há relação sexual, "porque dos dois, cada um permanece um. Homens e mulheres estão juntos, porém cada um do seu lado". Lacan diz que não há relação sexual, mas formula também que Há Um [Y a d'l'Un]. E então ele se pergunta se não poderíamos extrair do Há Um um conjunto que jamais foi feito para esse fim, ser um conjunto. Lacan se referia ao conjunto vazio. O Um se equivale ao conjunto vazio, na medida em quem é "reiteração de uma falta".

Assim, Lacan passa da linguística à lógica e demonstra a partir da teoria dos conjuntos o fundamento do Um como o lugar de uma falta, mas que também marca uma presença a partir da insistência, da repetição.

Explico melhor como se dá essa insistência, essa repetição do Um e sua relação com o conjunto vazio. De acordo com Lipschutz (1972), o conjunto vazio é por definição um conjunto em que não há elementos e que está contido em todos os conjuntos como conjunto, e também como elemento de qualquer conjunto. Na teoria dos conjuntos, por definição também, todo elemento é equivalente; o conjunto vazio, como elemento de um conjunto, não é imagem de nenhum dos elementos do outro conjunto, por ser vazio; ele é, portanto, um elemento distinto por sua diferença radical. Lacan (1971-72/inédito, aula de 04/05/1972) diz que é, pois como elemento distinto de um conjunto, que o conjunto vazio subsiste como um. E complementa:

[…] no discurso analítico, o Um se sugere como estando no princípio da repetição e que então aqui se trata justamente da espécie de Um que se acha marcado por não ser nunca, quanto à teoria dos números, senão uma falta, um conjunto vazio.

O conjunto vazio está presente em todos os conjuntos, porém o que sua presença marca não é outra coisa senão uma falta e ao mesmo tempo uma insistência na medida que se sua presença se impõe como repetição dessa falta marcando também uma distinção.

O que a experiência psicanalítica produz é um sujeito desidentificado, desenlaçado, distinto, o Um, ímpar! É o S1 produto do discurso analítico, que surge a cada sessão; no corte da sessão, no intervalo entre uma sessão e outra; ao final de uma análise; nas sequências.

Tem quatro teorias de árvore que eu conheço.
Primeira: que arbusto de monturo aguenta mais formiga.
Segunda: que uma planta de borda produz frutos ardentes.
Terceira: nas plantas que vingam por rachaduras lavra um poder mais
lúbrico de antros.
Quarta: que há nas árvores avulsas uma assimilação maior de horizontes
(BARROS, 2013, p. 237).

 

Referências

BARROS, M. de. (2013). "Seis ou três coisas que aprendi sozinho". In: Poesia completa. São Paulo: LeYa.         [ Links ]

IZCOVICH, L. (2012). Le choix des identifications, Inédito: aula de 16 de novembro de 2011. Cours du collège de clinique psycanalytique de Paris, 2011-2012.         [ Links ]

LACAN, J. (1971-72). O saber do psicanalista. Inédito. Publicação não comercial para circulação interna do Centro de Estudos Freudianos do Recife, 1997.         [ Links ]

__________. (1958). "A direção do tratamento e os princípios do seu poder". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998        [ Links ]

__________. (1964). "Posição do inconsciente". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.         [ Links ]

LIPSCHUTZ, S. (1975). Teoria dos conjuntos. São Paulo: McGraw-Hill Ltda, 16ª edição.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua Joaquim Marques, 20-A – Presidente Kennedy
Fortaleza – CE – CEP 60356-030
E-mail: elynesbl@gmail.com

Recebido: 10/02/2016
Aprovado: 04/04/2016

 

 

* Psicóloga, psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano e do Fórum Fortaleza.
1 Este trabalho foi apresentado durante a XIV Jornada do Campo Lacaniano de Fortaleza Que saber da clínica?, em dezembro de 2015. Agradeço à psicanalista Angélia Teixeira o incentivo na escrita deste texto, fruto das discussões em sua participação no Seminário do Campo Lacaniano de Fortaleza. Agradeço também à Vanessa Rodrigues, aluna do curso de Engenharia da Computação da UFC, a "tradução" dos conceitos matemáticos que possibilitou a articulação com a clínica psicanalítica.

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